21 Março 2017
“Foram postos em movimento mecanismos complexos de ‘recepção da Amoris laetitia’, que tiveram e terão consequências muito além da pastoral familiar. O caminho do sujeito familiar contribui, assim, para desclericalizar a Igreja. Portanto, para superar a sua tentação à autorreferencialidade.”
O comentário é do teólogo italiano Andrea Grillo, professor do Pontifício Ateneu Sant’Anselmo, em Roma, do Instituto Teológico Marchigiano, em Ancona, e do Instituto de Liturgia Pastoral da Abadia de Santa Giustina, em Pádua. O artigo foi publicado por Come Se Non, 19-03-2017. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
Dizia R. Strauss, o grande musicista alemão, que o fundamental em qualquer boa peça musical é como se inicia. Poderíamos acrescentar que igualmente importante é como se conclui. Incipit e explicit são chaves de leitura fenomenais para entender a qualidade e a autoridade de um texto.
Em um romance como Anna Karenina ou em qualquer grande fuga de Bach, depois de inícios solenes e longas e intermináveis peregrinações musicais e narrativas, chega a conclusão. E “você nunca sabe onde está” e “nunca está onde sabe” – como escreveu G. Caproni de modo inconfundível.
Para fazer os votos pelo primeiro ano de vida da Amoris Laetitia, eu pensei que seria muito útil relê-la de modo desinteressado, quase com distanciamento. E encontrei nela muitas outras pérolas. Assinalo apenas um incipit e um explicit valiosos, sobre os quais gostaria de formular o meu desejo.
Eis como inicia o primeiro capítulo da Amoris laetitia, no número 8:
“A Bíblia aparece cheia de famílias, gerações, histórias de amor e de crises familiares, desde as primeiras páginas onde entra em cena a família de Adão e Eva, como seu peso de violência mas também com a força da vida que continua...”
É salutar para a tradição restituir a palavra primeiro ao texto bíblico antigo, com a sua opacidade e crueza. Somente fazendo memória desses textos é que podemos permanecer “inquietos” ao ler a realidade que vivemos, que projetamos e que sofremos. A Bíblia nunca tranquiliza: torna atentos, torna inquietos. A Amoris laetitia diz isso abertamente, contra todas as tentações consolatórias e paralisantes. Não há paz sem inquietação.
As últimas linhas da Amoris laetitia são uma pequena obra-prima de síntese e de parrésia. Escutemos um trecho central do último número, o 325:
“... como recordamos várias vezes nesta exortação, nenhuma família é uma realidade perfeita e confeccionada de uma vez para sempre, mas requer um progressivo amadurecimento da sua capacidade de amar. Há um apelo constante que provém da comunhão plena da Trindade, da união estupenda entre Cristo e a sua Igreja, daquela comunidade tão bela que é a família de Nazaré e da fraternidade sem mácula que existe entre os Santos do céu. Mas contemplar a plenitude que ainda não alcançamos permite-nos também relativizar o percurso histórico que estamos fazendo como família, para deixar de pretender das relações interpessoais uma perfeição, uma pureza de intenções e uma coerência que só poderemos encontrar no Reino definitivo. Além disso, impede-nos de julgar com dureza aqueles que vivem em condições de grande fragilidade. Todos somos chamados a manter viva a tensão para algo mais além de nós mesmos e dos nossos limites, e cada família deve viver neste estímulo constante. Avancemos, famílias; continuemos a caminhar!”
À primeira leitura, não as tínhamos escutado com toda essa profundidade. O seu tom, num primeiro momento, ressoava como que abafado e silenciado. Agora, à luz desses 365 dias de recepção, escutamos novamente aqui, antecipadamente, todo o trabalho eclesial, que busca um novo equilíbrio entre impulso ideal e resistência à idealização, entre a pretensão de antecipar o definitivo e a renúncia a não se contentar com o penúltimo.
Pretensões menores de perfeição e impedimentos maiores para julgar duramente as fragilidades não são uma ameaça à doutrina, mas o único modo de torná-la fiel ao Evangelho. A incompletude e a imaginação, assim, tornam-se requisitos essenciais da consciência doutrinal e da experiência de discernimento. Pequena obra-prima de equilíbrio e de franqueza, compossíveis e, por isso, irresistíveis.
Como acontece em todos os aniversários, a pequena avaliação que podemos fazer do primeiro ano de vida do texto é muito reconfortante. Exceto em casos raros, as dioceses, as paróquias, os casais individuais e os batizados individuais se sentiram tocados, convertidos, incitados e iluminados pelo texto da Amoris laetitia.
Foram postos em movimento mecanismos complexos de “recepção do texto”, que tiveram e terão consequências muito além da pastoral familiar. O caminho do sujeito familiar contribui, assim, para desclericalizar a Igreja. Portanto, para superar a sua tentação à autorreferencialidade.
Não seria, talvez, justamente o matrimônio o “remedium concupiscentiæ”? Remédio também daquela concupiscência totalmente clerical, que, em vez da afirmação do outro, coloca, acima de tudo, a afirmação de si mesmo.
O programa de libertação da Igreja da tentação da autorreferencialidade só podia iniciar a partir do “sacramento do casal”, que é um dos dois sacramentos que tematiza não a salvação própria, mas a do outro. Embora essa intuição, a um ano de distância, se destaque muito mais claramente no horizonte do pontificado de Francisco. E o ilumine com uma luz mais quente.
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Um ano da Amoris laetitia: o "remedium concupiscentiæ" como uma libertação da autorreferencialidade. Artigo de Andrea Grillo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU