26 Março 2015
As categorias clássicas em torno do matrimônio já não são mais capazes de elasticidade, enquanto as novas ainda não estão adequadamente experimentadas. Mas, nessa difícil transição, que precisa de uma sábia transcrição e de uma corajosa tradução, estamos empenhados em dar à tradição novas palavras de fé e novas formas de vida reconhecíveis. Sem fingimentos e sem atalhos.
A opinião é do teólogo leigo italiano Andrea Grillo, professor do Pontifício Ateneu S. Anselmo, de Roma, do Instituto Teológico Marchigiano, de Ancona, e do Instituto de Liturgia Pastoral da Abadia de Santa Giustina, de Pádua.
O artigo foi publicado no blog Teologi@Internet, da Editora Queriniana, 20-03-2015. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
"A via régia da simplicidade divina e a via da mais inaudita ilusão correm paralelas na história da teologia, em todos os tempos e em todos os desenvolvimentos, separadas apenas pela espessura de um fio de cabelo."
Karl Barth
Em um dos posts deste blog, dedicado ao tema "Matrimônio e família, depois do Sínodo" [disponível aqui, em italiano], é proposta uma leitura do Sínodo à luz da obra de Walter Kasper. A análise é bastante pertinente e traz à tona uma série de questões de fundo, sobre as quais é bom se deter na reflexão.
Ao longo da sua longa história, o matrimônio despertou as mais diversas formas de "discurso eclesial". De um lado, a partir das fontes bíblicas da tradição judaico-cristã, a experiência matrimonial forneceu grande parte do imaginário de base para estruturar e articular a relação entre Deus e o seu povo, entre Cristo e a sua Igreja.
Todas as figuras da relação com o Esposo – a fidelidade e a infidelidade, a compreensão e a incompreensão, a proximidade e a distância, a honra e a desonra, a espera e o esquecimento, a vigília e o sono – marcaram a representação "nupcial" do Senhor e da sua "assembleia", da sua "sinagoga" e da sua "Igreja".
Esse imaginário bíblico e depois patrístico marcou profundamente a tradição teológica, espiritual, ministerial e litúrgica.
De outro lado, gradualmente, formou-se o repertório de uma reflexão dogmática e disciplinar sobre a união de homem e mulher, que, da Idade Média em diante, se especializou em uma preciosa análise das condições subjetivas e das modalidades de implementação do sacramento, da sua natureza e da sua eficácia, da sua validade e da sua nulidade.
Essa abordagem aprofundou as lógicas do vínculo objetivo e as da consciência subjetiva, colaborando não só com a construção da cultura moral e canônica da Igreja, mas gerando também uma cultura europeia inteira dos direitos do sujeito e do primado do "foro interno".
1. Místicas nupciais e disciplina canônica
Poderíamos quase dizer, com um pequeno, mas precioso exagero, que o primeiro filão, quente e analógico, nas últimas décadas, pôde chegar facilmente a fenômenos de superaquecimento, até a fusão mística. Enquanto o segundo destino, mais frio e analítico, levou, não raramente, a formas de verdadeiro supercongelamento, com anexas paralisia, coação a repetir e graves incomunicabilidades.
Em particular, devemos observar como, nos últimos tempos, foi-se criando uma situação paradoxal. Aconteceu, de fato, que uma espécie de "santa aliança" entre a primeira e a segunda frente da reflexão gerou um "saber sobre o matrimônio", que, ao mesmo tempo, se apresentou como quente demais e fria demais, acabando por ser também morna demais.
Em outras palavras, com isso se propõe, não sem razão, uma forte ênfase da "mística nupcial" interna à revelação cristã em geral, para depois, porém, obter daí – e, muitas vezes, sub-repticiamente – diretas ou desenvoltas consequências no plano estritamente jurídico e disciplinar.
Como se uma leitura "nupcial" da realidade revelada pudesse pretender, imediatamente, dar origem a consequências normativas unívocas e absolutamente invariáveis sobre a realidade histórica. Como se um maximalismo da mística se casasse tão facilmente com um maximalismo do direito.
2. Um defeito de tradição
Aqui nos encontramos diante de um verdadeiro "defeito de tradição". Precisamente essas acelerações – esses exagerados reaquecimentos místicos e esses resfriamentos jurídicos rápidos demais – apoiam-se sobre uma incompreensão grave do objeto/sujeito da própria tradição.
É o matrimônio como tal que, nessa passagem, corre o risco de ser incompreendido, ou por excesso de idealização, ou por excesso de administração. As palavras com as que falamos sobre isso e as categorias com que pensamos e "sentimos" isso não respeitam a sua lógica delicada e a sua trama complexa. E essa tendência não faz bem para a tradição, porque é incapaz de relançá-la e de renovar a sua linguagem e o seu estilo.
O que nos diz, de fato, a longa tradição antiga, medieval e do início da modernidade? Que o matrimônio, justamente como sacramento, não é apenas uma "reconstrução" ou uma "transfiguração" da antropologia em nível teológico, mas é uma plena assunção tanto do nível natural, quanto do nível institucional no nível sacramental.
Cada "elevação", por si só, pressupõe peso e fadiga. São precisamente as diferenças entre esses três níveis (natural, institucional e sacramental) que permitiram ler esse sacramento nupcial como "último" e como "primeiro" em relação a todos os outros.
Do ponto de vista do "sinal", foi fácil reconhecê-lo como primeiro, mas, do ponto de vista da causa, foi igualmente fácil retrocedê-lo ao "último lugar". E ele pode ser reconhecido como primeiro apenas se dele não forem removidos o fardo humano e a estrutura complexa.
3. O primeiro e o último dos sacramentos
Acredito que foi justamente essa grande complexidade de níveis, do qual o matrimônio precisa estruturalmente, que fez dele o sacramento maior, mas também o menor. Grande no fato de significar, como nenhum outro, a união entre Cristo e Igreja, mas pequeno na sua concreta e falível possibilidade de realizá-la.
Essa é a diferença estrutural que o superaquecimento místico e o congelamento jurídico – com argumentações opostas, mas agora convergentes – correm o risco de remover perigosamente. Tais lógicas redutivas – mas redutivas, atenção, por excesso – esquecem-se, quase inevitavelmente, da diferença que permanece entre abordagem mística e relação operativa com respeito ao matrimônio.
Se as analogias, belas e elegantes, tornam-se princípios de determinação da consciência alheia, as místicas transformam-se facilmente em formas de obscurantismo ou de negação do outro e do seu direito. Vice-versa, se as lógicas dos direitos e dos deveres não conseguem sequer nomear laços dignos desse nome, então todo o sistema das garantias do sujeito – hoje tão cuidadosamente desenvolvido – se transforma na quase certeza da inacessibilidade, para nenhum homem e para nenhuma mulher, de uma autêntica esfera da comunhão de vida.
Eis, então, reconduzido ao seu ponto geometral, o constrangimento que estamos vivendo nestes tempos, embora oportunos, de avaliação e de um maior relançamento do caminho sinodal: a pretensão de fazer valer os princípios gerais de relações teológicas como imediatas e evidentes soluções antropológicas ou, vice-versa, a pretensão, igualmente arriscada, de que a ponderação humana dos direitos, dos direitos e dos interesses possa se tornar, como que por milagre, verdade revelada e desígnio do Pai.
4. A indissolubilidade e a herança medieval
Uma pergunta se impõe, radical e modestamente: é mais correto conservar a unidade do amor conjugal em uma espécie de caixa-forte denominada indissolubilidade, mas da qual a todos é conhecida a combinação capaz de torná-la inconsistente; ou não seria melhor confiar a comunhão de vida do casal a um tabernáculo transparente, capaz de acolher também a história e as crises dos sujeitos que nele habitam?
O enrijecimento sobre uma noção medieval de "indissolubilidade" é um modo de assegurar à Igreja uma autêntica fidelidade ao depositum fidei, ou apenas uma tela para lhe oferecer a reconfortante aparência de tal continuidade?
Como Karl Barth escreveu certa vez, "a via régia da simplicidade divina e a via da mais inaudita ilusão correm paralelas na história da teologia, em todos os tempos e em todos os desenvolvimentos, separadas apenas pela espessura de um fio de cabelo". Esperar que a misericórdia de Deus já esteja totalmente contida na doutrina e na disciplina que soubemos construir nos últimos 800 anos em torno do matrimônio corre o risco de ser uma presunção que, facilmente, pode se inverter em desespero.
Cultivar a esperança significa, ao contrário, manter-se distante desses dois excessos: não presumir que já se resolveu teoricamente um problema que é objetivamente novo e não pensar que o novo problema não pode encontrar resposta com base em uma doutrina capaz de ser traduzida, transcrita e repensada, ao mesmo tempo, fiel e criativamente.
O matrimônio "não pode ser dissolvido": a doutrina da indissolubilidade é a forma clássica com que essa palavra de Jesus foi traduzida e transmitida. Mas as consequências disciplinares dessa forma de tradução e a sua própria adequação à palavra de Jesus não são, de fato, dados irreformáveis.
Nesse espaço realmente aberto à solicitude eclesial, o próximo Sínodo poderá se mover com audaz prudência e com justificada clarividência. A serviço de uma ecclesia que queira ser, realmente, ante et retro oculata.
5. A nulidade retroativa?
A fuga da autorreferencialidade e a busca da "aproximação" são as duas reivindicações principais desse evento eclesial [1]. O tema "matrimonial" não casualmente está no centro dessa "inclinação": o matrimônio é remedium concupiscentiae, porque, pela sua vocação, remedia o encurvamento de cada sujeito sobre si mesmo. O matrimônio é o sacramento "não autorreferencial" por excelência.
Por isso, ao mesmo tempo, o matrimônio é um radical "fazer-se próximo", aproximar-se. Talvez por causa desse "aproximar-se" constitutivo, ele seja, entre todos os sacramentos, o mais explícito e também o mais aproximativo.
Reconhecendo na mais radical "proximidade" o sinal de uma graça, a tradição eclesial deduz toda a dificuldade dos homens e das mulheres – de ontem como de hoje – a viver "não autorreferencialmente".
O Sínodo é chamado a defender, com coragem, essa "aproximação" que o matrimônio realiza, fugindo, no entanto, da tentação de uma "retrorreferencialidade", assim como resulta das inúmeras propostas de "ampliação" dos capítulos de nulidade ou de simplificação dos procedimentos do processo canônico.
6. A doutrina não é um monólito
Continua sendo fundamental, na minha opinião, salvaguardar a abordagem mais correta. Podemos inferi-la bem a partir deste belo testemunho, que nos é restituído pela entrevista concedida pelo Papa Francisco à revista La Civiltà Cattolica. Cito aqui uma passagem decisiva:
O papa neste momento se levanta e vai buscar o breviário na sua escrivaninha. É um breviário em latim, já gasto pelo uso. E o abre no Ofício das Leituras da Feria sexta, isto é, sexta-feira da XXVII semana. Ele me lê uma passagem tirada do Commonitórium Primum de São Vicente de Lérins: ita étiam christiánae religiónis dogma sequátur has decet proféctuum leges, ut annis scílicet consolidétur, dilatétur témpore, sublimétur aetáte ("Mesmo o dogma da religião cristã deve seguir estas leis de aperfeiçoamento. Progride, consolidando-se com os anos, desenvolvendo-se com o tempo, aprofundando-se com a idade").
E assim o papa prossegue: "São Vicente de Lérins faz a comparação entre o desenvolvimento biológico do homem e a transmissão de uma época à outra do depositum fidei, que cresce e se consolida com o passar do tempo. Eis: a compreensão do homem muda com o tempo, e assim também a consciência do homem se aprofunda. Pensemos em quando a escravidão era aceita ou a pena de morte era admitida sem problema algum. Portanto, cresce-se na compreensão da verdade. Os exegetas e os teólogos ajudam a Igreja a amadurecer o próprio juízo. As outras ciências e a sua evolução também ajudam a Igreja nesse crescimento na compreensão. Existem normas e preceitos eclesiais secundários que, antigamente, eram eficazes, mas que agora perderam valor ou significado. A visão da doutrina da Igreja como um monólito a defender sem nuances é errada".
"Além disso, em cada época, o homem procura compreender e exprimir melhor a si mesmo. E, portanto, o homem, com o tempo, muda o modo de perceber a si mesmo: uma coisa é o homem que se exprime esculpindo a Nike (Vitória) de Samotrácia, outra a de Caravaggio, outra a de Chagall e outra ainda a de Dalí. As formas de expressão da verdade também podem ser multiformes, e isso, ao contrário, é necessário para a transmissão da mensagem evangélica no seu significado imutável" [2].
A imutabilidade do significado do matrimônio não equivale a uma doutrina monolítica e a uma disciplina imutável. Precisamos redescobrir que uma Igreja não só "retro", mas também "ante oculata", precisa de coragem. A coragem de expressar de forma mais adequada a beleza da fidelidade, junto com a compreensão da fraqueza, da dificuldade, da fragilidade. As categorias clássicas já não são mais capazes de elasticidade, enquanto as novas ainda não estão adequadamente experimentadas.
Mas, nessa difícil transição, que precisa de uma sábia transcrição e de uma corajosa tradução, estamos empenhados em dar à tradição novas palavras de fé e novas formas de vida reconhecíveis. Sem fingimentos e sem atalhos. Isso nos pede o Espírito, precisamente no nosso tempo. E pede justamente a nós.
Notas:
1. Na verdade, o número exato dos "placet" e dos "non placet", indicado escrupulosamente ao lado de cada número da Relatio Synodi, assim como aparece nas últimas páginas da publicação oficial do documento sinodal, é o último ato do Sínodo extraordinário, mas talvez também seja o mais explícito. E mais na forma do que no conteúdo.
2. Antonio Spadaro. Entrevista com o Papa Francisco. In: La Civiltà Cattolica 3918/III (2013), p. 449-477, 475s.
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Um Sínodo não autorreferencial: por uma Igreja 'ante et retro oculata'. Artigo de Andrea Grillo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU