14 Março 2017
O dia de hoje marca o aniversário de quatro anos do papado de Francisco, o que os estadunidenses podem considerar como o fim do seu "primeiro mandato". Olhando para trás, os últimos quatro anos compõem uma história de algumas claras vitórias papais, algumas decisões contraditórias e várias questões em aberto.
O comentário é de John L. Allen Jr., publicado por Crux, 13-03-2017. A tradução é de Luísa Flores Somavilla.
O papado de Francisco completa quatro anos hoje, o que leva os estadunidenses a sugerirem que é o fim do seu primeiro mandato. (Claro, não é assim que as coisas funcionam no Vaticano, os papas não concorrem à reeleição, mas isso não vai impedir que muitos deles atribuam uma ressonância especial ao marco de hoje.)
O que quer que se pense do Papa Francisco, seja que ele é inspirador ou irritante, não há dúvida de que os últimos quatro anos foram um terremoto na Igreja Católica. Francisco consquistou o mundo inteiro e abalou as estruturas da Igreja que ele lidera de várias formas, cujas completas implicações provavelmente não ficarão claras por bastante tempo.
Para fazer um balanço, o seguinte texto traz algumas das principais vitórias conquistadas por Francisco ao longo dos últimos quatro anos, algumas decisões contraditórias e três incompletas. Não se propõe a ser uma análise exaustiva, já que não há como desligar o dínamo papal e tentar classificar tudo o que ele disse e fez ao longo destes últimos quatro anos seria perder o todo de vista.
Vitórias claras
Os líderes não podem mudar o mundo se ninguém sabe quem são. Portanto, o primeiro obstáculo à eficácia é estar sempre no centro das atenções. Nesse quesito, Francisco é um sucesso absoluto, tendo capturado a imaginação do mundo desde o início.
Mesmo que hoje compartilhe o título de personalidade pública mais fascinante do mundo com Donald Trump, continua sendo um time muito seleto.
Em quatro anos, o fascínio por Francisco não parece estar diminuindo. Seu apelo é claro em várias frentes, desde os seguidores das suas nove contas do Twitter, que somam mais de 30 milhões, até pesquisas de opinião em todo o mundo mostrando índices de aprovação extraordinariamente elevados, sem falar na constante cobertura da mídia de praticamente qualquer coisa que ele diga ou faça.
É possível que Francisco detenha o maior "púlpito formidável" de qualquer líder global e, portanto, o modo como ele escolhe utilizá-lo pode ter enormes consequências.
Como gosta de dizer o Bispo Auxiliar Robert Barron, de Los Angeles, a genialidade do Papa Francisco é que ele não mudou o dogma do catolicismo, mas certamente mudou o diálogo sobre ele.
Antes de sua eleição, o debate público sobre o catolicismo era amplamente focado em um cânone restrito de questões profundamente polêmicas: aborto, contracepção, homossexualidade e casamento gay, sem mencionar os escândalos de abuso sexual. Embora nenhuma dessas questões tenha desaparecido, Francisco conseguiu levantar uma gama muito maior de preocupações católicas, como os pobres, os migrantes e refugiados, o meio ambiente e a resolução de conflitos.
Nenhuma delas é nova em conteúdo, mas a ênfase e o orgulho do lugar que ocupam no papado de Francisco parecem novos para muitos analistas, o que ajudou a reestruturar as impressões da Igreja.
Além disso, o estilo aberto e direto de Francisco agradou vários setores do mundo que haviam passado a ignorar a Igreja, criando pelo menos a possibilidade de um novo dinamismo evangélico. Como relatou Claire Giangravè, da Crux, Francisco até estampou a capa da edição italiana da revista Rolling Stone recentemente, em uma versão elogiosa ao papa, celebrando seu encanto em relação aos Millennials.
Ainda não se sabe o quanto o catolicismo consegue explorar essa oportunidade, mas o simples fato de gerá-la tem que entrar no rol de seus ganhos.
Até agora, viajar tornou-se parte instrínseca do trabalho de um papa. Por enquanto, Francisco fez 17 viagens ao exterior, visitou 26 países e está com vários outros planejados para 2017, incluindo a possibilidade de ir para a Ásia, a América Latina e a África.
Em qualquer avaliação razoável do que conta como uma viagem papal "bem-sucedida", Francisco tirou dez.
Público? Considere que ele reuniu cerca de três milhões de pessoas em sua primeira viagem, ao Rio de Janeiro, no Brasil, em julho de 2013 no Dia Mundial da Juventude, contra uma estimativa de 3,5 milhões que lotaram a Praia de Copacabana em 1994 para ouvir Rod Stewart. Depois, o papa dobrou seu próprio recorde em Manila em 2015, quando atraiu aproximadamente seis a sete milhões em uma ocasião que agora é considerada como o maior evento na história papal.
Cobertura da mídia? A presença do papa atrai um intenso interesse da mídia, não importa onde ele vá, inclusive nos Estados Unidos, onde os seis dias que Francisco passou entre Washington, Nova York e Filadélfia, em setembro de 2015, foram cobertos como uma cerimônia de posse de uma semana de duração e seu discurso a uma sessão conjunta do Congresso, como se fosse o discurso do Estado da União.
Impacto? Embora nem todas as viagens sejam exatamente iguais, a visita de Francisco na República Centro-Africana, em novembro de 2015, foi amplamente creditada pela autoconfiança suficiente do país para realizar pacificamente as eleições e a transferência de poder, três meses depois, reduzindo significativamente, se não acabando, com o que tinha sido um dos mais sangrentos conflitos internos do mundo. Como disse o arcebispo Dieudonné Nzapalainga: "neste momento, no meu país, todo mundo diz a mesma coisa. Sejam muçulmanos, protestantes, católicos, todos! Eles dizem: o Papa Francisco trouxe frescor ao nosso país e às nossas vidas individuais".
Nada mal, como dizem por aí, para um dia de trabalho.
Por mais que o papa não seja um político, fundamentalmente, ele é um líder moral, afirmando princípios relevantes para a vida social e política. No caso do papa Francisco, ele demonstrou ser hábil em levar a cabo estes princípios.
Em setembro de 2013, por exemplo, ele liderou a condenação moral de uma proposta de intervenção militar ocidental na Síria, após acusações de que Bashar al-Assad havia utilizado armas químicas em áreas controladas pela oposição ao redor de Damasco. Francisco lançou uma iniciativa diplomática contra o aumento do conflito e mais tarde foi considerado decisivo pelo presidente russo Vladimir Putin para frear este impulso, juntamente com o G8, no sentido de apoiar a iniciativa.
Quando os Estados Unidos e Cuba anunciaram a retomada das relações diplomáticas no final de 2014, tanto o líder cubano, Raul Castro, quanto o presidente dos EUA, Barack Obama, consideraram que a liderança do papa ajudou a criar um clima que possibilitou grandes avanços. Da mesma forma, muitos líderes mundiais que se reuniram em Paris para um encontro sobre mudança climática patrocinado pela ONU, no final de 2015, reconheceram o apoio moral de Francisco à proteção ambiental, também impulsionando um acordo contundente.
Isso não quer dizer que todos os esforços diplomáticos do Papa Francisco tiveram bons frutos. Até agora, por exemplo, as tentativas do Vaticano de promover um acordo de paz na Venezuela não obtiveram sucesso. No entanto, não há dúvida de que Francisco fortaleceu a relevância do Vaticano e da Igreja como atores globais. Há muito poucos conflitos no mundo hoje em que não seja possível, pelo menos teoricamente, que uma intervenção papal no momento certo faça a diferença.
Quando o Papa Francisco iniciou o árduo processo de convocar dois Sínodos dos Bispos sobre a família separadamente, em 2014, ele disse que queria que o resultado final fosse um forte consenso entre os bispos e a Igreja mais ampla sobre o rumo certo a tomar. Seja lá o que essa odisseia tenha produzido, no entanto, "consenso" não parece ter sido o caso.
Pelo contrário, não há questão mais controversa na vida interna da Igreja Católica hoje do que a decisão que consta no documento de Francisco de abril de 2016 que resume os dois sínodos, Amoris Laetitia, e sua cautelosa abertura para a comunhão dos católicos divorciados e recasados civilmente.
Muitos veem esse passo como uma expressão de caridade pastoral há muito esperada, sem falar na confirmação do que secretamente já era prática pastoral da Igreja em muitos lugares. Há também um grupo considerável que o considera uma reversão preocupante dos ensinamentos da Igreja sobre o matrimônio e os sacramentos, o qual os debates não parecem diminuir.
Depois do surgimento do documento, bispos de todo o mundo começaram a emitir orientações ou fazer declarações sobre a sua implementação, e os sinais que eles enviaram foram bastante conflitantes. Já que Francisco indicou que não pretende fazer quaisquer declarações vinculativas sobre o assunto, pelo menos por enquanto, parece que a diversidade de abordagens veio para ficar.
É possível, é claro, argumentar que é extremamente limitado de Francisco não resolver a questão por simples decreto papal, sem falar que estaria de acordo com seu desejo diversas vezes reiterado de uma maior colegialidade no espírito do Concílio Vaticano II. Seja como for, a verdade é que tratando-se do cuidado pastoral do matrimônio, uma de suas prioridades mais claras, Francisco ainda não conseguiu fazer com que importantes setores da Igreja e de sua liderança fiquem totalmente alinhados com sua visão.
Uma das descrições tradicionais do papel do papa na Igreja Católica é ser fonte de unidade para toda a Igreja. O catolicismo é um conjunto muito diversificado de 1,3 bilhão de pessoas em todos os cantos do planeta e para evitar que tudo entre em colapso, um centro forte é essencial.
Ao longo dos últimos quatro anos, no entanto, Francisco, por vezes, semeou a divisão tanto quanto o espírito de causa comum.
Para cada católico inspirado pela visão social do papa e por seu estilo reformador, geralmente há outro que acha que ele é demais - espontâneo demais, desdenhoso demais da tradição e das convenções, inflamável demais e, acima de tudo, para católicos mais conservadores, liberal demais. A irritação que tudo isso produz em alguns setores tornou-se inconfundível e os recentes cartazes contra Francisco em Roma foram mera expressão visível disso.
Para ser justo, nenhum papa está livre de controvérsia. Todos os papas desde o início enfrentaram críticas e repercussões inesperadas e de certa maneira a única diferença hoje é que na era das mídias sociais tudo fica maior e circula mais rápido.
Por simples questão descritiva, no entanto, pode ser justo dizer que, como Francisco é um líder extraordinariamente ativo e conhecido, ele provoca inspiração e consternação mais intensamente que a maioria. Talvez isso não passe do preço do envolvimento, mas é, no entanto, fato da vida atual que o papa não é apenas um agente de unidade, mas também, e ao que parece às vezes igualmente, um bode expiatório.
Francisco foi eleito em março de 2013 em um mandato de reforma e começou uma revisão abrangente das estruturas financeiras do Vaticano em prol de um novo clima de transparência e responsabilidade. Rapidamente, porém, essas estruturas ficaram estagnadas em conflitos burocráticos internos e até agora não mostraram totalmente a que vieram.
A reforma começou há quatro anos e ainda estão faltando três peças-chave do quebra-cabeça:
Uma declaração financeira anual credível, que vá além de uma simples lista de faturamentos e perdas, mas forneça uma visão abrangente dos bens sob controle do Vaticano e como estão sendo usados.
Uma auditoria anual consistente, conduzida por um auditor externo ou pelo próprio novo cargo de Auditor Geral do Vaticano, que impõe uma real prestação de contas.
Processos e condenações por crimes financeiros no âmbito da nova legislação criados tanto durante o papado de Bento XVI quanto de Francisco. Até agora, pelo menos quarenta deles foram encaminhados aos advogados do Vaticano, mas não houve imposição de punições, o que a maioria dos analistas acredita ser essencial para convencer as pessoas de que o sistema pode ser eficaz.
Ainda há tempo para tudo isso acontecer, mas quanto mais demorar para estas peças do quebra-cabeça se encaixarem, mais aparenta ser uma reforma de fachada.
Logo no início, Francisco inspirava confiança entre os sobreviventes de abuso sexual clerical e seus defensores, pois prometeu apoio inabalável a uma política de "tolerância zero" e parecia preparado para apoiá-la, criando uma nova Comissão Pontifícia para a Proteção de Menores, liderada pelo Cardeal Sean O'Malley, de Boston.
Mas com o passar do tempo a confiança começou a diminuir. Em partes, isso se deve a alguns passos percebidos como insensíveis às vítimas de abuso, como a nomeação de um bispo no Chile com um histórico de apologia ao padre abusador mais conhecido no país. E também ao fato de que algumas medidas prometidas para a reforma têm demorado a sair do papel, como um novo mecanismo para disciplinar os bispos que lidam com denúncias de abuso de maneira inadequada.
Recentemente, a última sobrevivente que era membro ativo da comissão antiabuso do papa, Marie Collins, da Irlanda, saiu por estar frustrada com o que ela descreveu como uma resistência burocrática da Cúria Romana ao trabalho do grupo.
Assim como a limpeza financeira, muitos analistas continuarão considerando as promessas de Francisco como meramente retóricas, até que haja pelo menos alguns casos claros de bispos sofrendo as consequências de não seguir os protocolos de "tolerância zero". Novamente, ainda há tempo para que isso aconteça, mas muitos sobreviventes e outros analistas continuam se questionando por que já levou tanto tempo.
Francisco tem dito repetidamente que quer reforçar o papel das mulheres na Igreja Católica, inclusive no Vaticano e em outras áreas onde a autoridade é exercida e a liderança, adotada. Até agora, porém, sua abordagem para fazer isso acontecer tem sido variável.
Ele ainda não nomeou nenhuma mulher para liderar qualquer departamento do alto escalão do Vaticano e perdeu oportunidades que pareciam óbvias em outras áreas. Ao criar um novo Conselho de Economia, marcando a primeira vez em que leigos estiveram em completo nível de igualdade com cardeais em um órgão responsável pelas decisões no Vaticano, Francisco colocou apenas homens e muitos ficaram se questionando se realmente não havia pelo menos uma profissional qualificada na área financeira do sexo feminino.
Ele descartou a ideia das mulheres sacerdotes e, em geral, parece cético sobre o que considera uma tentativa de "clericalizar" as mulheres. (As possíveis implicações desta perspectiva nos resultados de uma comissão que ele criou para estudar as diáconas mulheres permanecem no ar.)
Francisco ainda não foi pioneiro, no entanto, em pensar em uma estratégia eficaz para não clericalizar, mas reforçar o papel das mulheres em uma Igreja onde o poder por tanto tempo esteve tão vinculado ao status clerical. Ele certamente ainda tem tempo para isso, mas alguns não podem não se questionar: se isso fosse realmente uma prioridade, será que teria ficado para o período que equivale ao segundo mandato do pontífice?
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Primeiro mandato do Papa: claras vitórias, decisões contraditórias e questões em aberto - Instituto Humanitas Unisinos - IHU