31 Janeiro 2017
Longe de ser uma intervenção autocrática nos assuntos de um Estado “soberano”, a decisão do papa de anunciar um delegado para comandar a Ordem de Malta após a renúncia de seu grão-mestre reflete o seu dever de cuidado para com uma organização católica que necessita de uma reforma séria. Apesar das tentativas de retratar Francisco como um autocrata, ele tem feito nada mais do que os papas sempre fizeram por grupos católicos em circunstâncias parecidas.
A reportagem é de Austen Ivereigh, jornalista inglês, publicada por Crux, 29-01-2017. A tradução é de Isaque Gomes Correa.
Quando chegou, a escaramuça foi breve. Na sequência de um impasse tenso entre o comando dos Cavaleiros de Malta e o Vaticano, o seu grão-mestre, Matthew Festing, concordou em renunciar na semana passada após um relatório que documenta sérios erros em seu mandato.
O relatório, feito por uma comissão papal, destaca a necessidade de uma reforma do grupo que lidera a ordem, que conta com 50 cavaleiros “professados”, que prestam votos e que são tradicionalmente membros de famílias nobres europeias.
O papa nomeou um destes Cavaleiros, o seu Grande Comendador, Ludwig Hoffmann von Rumerstein, como interino até que um substituto seja nomeado.
Alguns especularam que o Conselho Soberano da ordem poderia rejeitar a intervenção de Francisco. Mas quando chegou sábado, os membros concordaram com a necessidade de mudança.
O Conselho aceitou por maioria a renúncia de Festing, concordou em nomear Rumerstein e reinstalou o ex-Grande Chanceler, Albrecht Freiherr von Boeselager. Foi a retirada de Boeselager por Festing e outro capelão da ordem, o cardeal americano Raymond Burke, para o artigo publicado hoje o que desencadeou a intervenção vaticana.
Apesar de Festing antes ter dito que o papa não tinha o direito de intervir na Ordem de Malta porque era um “Estado soberano”, a nota do Conselho Soberano rechaçou essa ideia. As decisões de Francisco foram “cuidadosamente tomadas em consideração e com respeito à ordem, com a determinação de fortalecer a sua soberania”, lê-se no texto.
No comunicado, a ordem também prometeu “colaboração plena” com o delegado papal a ser nomeado, que irá supervisionar a “renovação espiritual da ordem, especificamente a de seus membros professos”.
Nenhuma menção foi feita a Burke, que não esteve presente no encontro de sábado. Líder de uma cruzada contra o papa desde o início deste papado, Burke foi removido em 2014 da presidência da suprema corte do Vaticano, a Assinatura Apostólica, por causa de sua oposição à reforma no processo de anulação matrimonial.
Ele também é o agente principal por trás da carta tornada pública em novembro passado em que quatro cardeais desafiam o papa sobre a ortodoxia de sua exortação apostólica voltada à família, documento intitulado Amoris Laetitia.
Foi a tentativa de Burke de usar a autoridade do Papa Francisco como parte de um jogo de poder interno na ordem para remover o seu rival Boeselager o que levou à intervenção papal.
Figura de destaque dos cavaleiros de língua alemã, Boeselager alegou que a sua destituição era ilegal e inconstitucional. Os seus apoiadores descreveram a situação como a mais recente de uma série de tentativas ditatoriais de Festing em abafar as críticas e consolidar o seu poder sobre a ordem.
Os Cavaleiros de língua alemã ficaram cada vez mais frustrados com a forma como as mudanças necessárias estavam sendo impedidas por Festing e pelo Conselho Soberano, eleito do pequeno grupo de membros professos – predominado por ingleses e italianos.
O presidente da Associação Alemã da ordem, Erich Lobkowicz, descreveu essa luta como uma “batalha entre tudo aquilo que o Papa Francisco representa e um minúsculo grupo de ultraconservadores – pessoas que perderam totalmente o respeito”.
O grupo próximo a Festing é conhecido pelo seu amor à liturgia do rito antigo e por suspeitar do Papa Francisco. Os reformadores querem focar o trabalho humanitário da ordem entre os pobres, minimizar a pompa cerimonial e alinhar a ordem mais à visão papal de uma Igreja evangelizadora, missionária.
Mas Francisco não tentou remodelar a ordem à sua própria imagem, e sim tentou reduzir aquilo que chama de “mundanismo espiritual”, o uso da Igreja para finalidades autointeressadas. É o nexo pouco saudável dos interesses – financeiros e eclesiásticos – o que enfraquece o bom nome da ordem.
“Os alemães querem uma operação muito mais transparente e dentro da legalidade”, disse um embaixador próximo aos cavaleiros falantes de língua alemã. “Eles estão preocupados com que o bom trabalho acabe minado pelos escândalos”.
Ele deu um exemplo. Quando Boeselager teria feito objeção à nomeação de dois comerciantes de armas a cargos de envergadura na ordem, argumentando que as nomeações não caíam bem com a condenação do Papa Francisco ao comércio de armas de pequeno porte, Festing o ignorou e os nomeou mesmo assim.
Os críticos também apontam para a falha de Festing em lidar com um escândalo em 2014 na Inglaterra, em que um companheiro pedófilo da ordem foi considerado culpado de possuir arquivos de pornografia infantil em videoteipes. Uma investigação conduzida por Julia Cumberledge, que já presidiu investigações de abuso sexual na Igreja, revelou uma série de erros ocorridos na época.
Num sinal de aparente desprezo de Festing ao dano que tais escândalos causaram à ordem, um dos três cavaleiros criticados no relatório, Duncan Gallie, foi mais tarde nomeado para o Grande Conselho e vive em Roma.
Os reformadores ficaram particularmente irritados pela indulgência de Festing com o ramo italiano da ordem, que possui relações estreitas com a rica e poderosa ordem na Argentina. Há tempos ambos têm estado associados a jogos de poder na política italiana e na alta finança, bem como a redes conservadoras no Vaticano.
“Parte disso é uma organização humanitária maravilhosa, mas parte dela é uma máfia, pura e simples”, diz ao sítio Crux um observador próximo do papa.
Francisco viu, em primeira mão, a dupla agir quando ele próprio foi alvo de uma tentativa, em 2008, de removê-lo do posto de arcebispo de Buenos Aires. Queriam substituí-lo por um bispo que era capelão da ordem na Argentina.
Uma tentativa igualmente sem sucesso foi feita em novembro passado por Burke e Festing para destituir Boeselager, cujas críticas ao comando de Festing serviram para irritar ainda mais o membro inglês. Incentivado por Burke, Festing tentou sacar Boeselager no começo de dezembro com base na desobediência, depois que o alemão se recusou a renunciar a pedido do próprio Festing.
A base para a sua retirada foi produzida por uma organização tradicionalista militante próxima a Burke, o Instituto Lepanto para a Restauração de Todas as Coisas em Cristo (“Lepanto Institute for the Restoration of All Things in Christ”), que se descreve como “dedicado à defesa da Igreja Católica contra ataques de fora bem como de dentro”.
Burke pediu que se investigassem as acusações de que Boeselager havia aprovado a distribuição de camisinhas enquanto fora o chefe do braço humanitário da ordem anos atrás. A questão já havia sido abordada em investigação interna da Ordem de Malta um ano antes, que esclareceu que o alemão não fizera nada de errado. O Vaticano também tinha sido informado à época.
No entanto, o presidente do Lepanto, Michael Hichborn, ouviu de Burke que ele estava “trabalhando em algo” em resposta.
Dias depois, Burke conversou com Francisco. Sabendo que Festing não conseguiria sacar uma figura de tal cargo sem o apoio do papa – Boeselager é uma figura importante na Alemanha, próximo dos cardeais alemães e de muitas autoridades do alto escalão do Vaticano –, Burke contou ao papa sobre o relatório de 10 de dezembro.
Em sua carta após a reunião, o pontífice deixou claro que os preceitos morais católicos devem ser seguidos, mas que as diferenças deveriam ser resolvidas por meio do diálogo e não expulsões.
Porém a carta foi usada por Burke como uma justificativa para destituir Boeselager contra o desejo expresso do papa. Acusando o alemão de ser um “católico progressista”, Festing e Burke pediram que ele se retirasse e, quando se recusou, o desligaram com base na quebra do voto de obediência.
Mas o verdadeiro problema era a desobediência de Burke ao papa. O cardeal italiano Pietro Parolin, secretário de Estado do Vaticano, escreveu duas vezes ao cardeal americano para que deixasse claro que o papa não havia aprovado uma tal ação. Ele também deixou claro que Boeselager deveria ser reinstalado, e que as diferenças entre eles deveriam ser resolvidas por meio do diálogo.
Incitado por Burke, que insistia que o Vaticano não tinha direito de intervir na ordem, Festing não quis ceder. A essa altura, o papa nomeou uma comissão para investigar o caso. Em uma nota surpreendentemente agressiva, Festing procurou afirmar que a investigação não tinha validade legal nenhuma, com base em que a Ordem de Malta – fundada no século XI – era um “Estado soberano”.
Esse argumento era espúrio. A ordem possui personalidade jurídica internacional e os ornamentos de um Estado (tais como embaixadores e passaportes), mas não conta com um território além de seu palácio em Roma, na Via Condotti. Qualquer que seja o seu status temporal, ela é também um instituto religioso de leigos cujos membros professam lealdade ao papa, e como tal está sujeita – como estão todas as organizações católicas reconhecidas – à jurisdição da Santa Sé em matéria religiosa.
O argumento da soberania carecia de fundamentos, tendo em vista que a tentativa de Burke de usar o papa para justificar a retirada de Von Boeselager por Festing trouxe o papado para dentro dos assuntos da ordem.
A essa altura também, pouco antes do Natal o papa criava uma comissão para investigar as circunstâncias em torno da remoção, e para colher o testemunho dos cavalheiros sobre questões mais amplas relacionadas ao comando da ordem cavalheiresca.
Em 10 de janeiro, Festing voltou atrás, descrevendo a destituição de Boeselager como um “ato interno de governança”. Desprezou a comissão papal como “irrelevante em termos legais” dada a soberania da ordem. Também ordenou, sob a pena da obediência, que os cavalheiros apoiassem a sua decisão de destituir Boeselager – exigindo, com efeito, que rejeitassem expressamente os desejos do papa.
A Santa Sé calmamente manifestou confiança em seu grupo de investigadores, liderado pelo arcebispo italiano Sivano Tomasi, que continuou a ouvir testemunhos. Em nota, o Vaticano disse que estava aguardando o resultado da investigação, “a fim de adotar, dentro de sua área de competência, as decisões mais adequadas para o bem da Soberana Ordem Militar de Malta e da Igreja”.
As provas reunidas pelos encarregados papais não deixavam dúvida sobre a necessidade de uma reforma. Na terça-feira da semana passada, Festing foi chamado por Francisco e ouviu o conteúdo do que fora recolhido. No fim da reunião, Festing se sentou e escreveu a sua própria renúncia – o primeiro grão-mestre em séculos a se retirar antes do fim de seu mandado.
Festing, que tem tido graves surtos de doença trazidos em parte pelo estresse dessas disputas internas, “ficou aliviado”, diz um funcionário do Vaticano que conhece o ex-grão-mestre. Fontes dizem que as notas agressivas emitidas pela ordem não eram comuns na pessoa de Festing, e que provavelmente foram elaboradas por Burke.
Mesmo depois de Festing concordar com o pedido de renúncia do papa, Burke tentou persuadi-lo a não se retirar, com efeito dizendo-lhe para continuar contrariando o papa, segundo fontes tanto da ordem quanto do Vaticano.
A reação dos tradicionalistas e críticos do papa vem sendo apoplética, em que buscam retratar Francisco como sendo um autocrata que impõe sua visão de Igreja a uma ordem conservadora infeliz. Na verdade, ele não está fazendo nada além do que os papas sempre fizeram com as organizações católicas que sofrem com lideranças abusivas ou inoperantes, que minam o testemunho a ser dado.
Francisco fez o mesmo com outras ordens ou sociedades religiosas, como o Sodalitium no Peru. Bento XVI fez o mesmo com a Legião de Cristo, entre outros.
Por que os críticos de Francisco deveriam achar que este caso é diferente? Infelizmente, alguns acabaram tão investidos na campanha de Burke contra o Papa em Amoris Laetitia que não conseguem perceber o que representa toda essa situação.
Francisco não tem a intenção de fazer de Burke um mártir sacando-o. Na verdade, ele nem precisa. O canonista americano é oficialmente o elo da Santa Sé com a Ordem de Malta, mas o delegado papal irá reduzir esta função a um mero papel titular.
Na carta, Francisco diz que o delegado vai ser o “porta-voz exclusivo durante o seu mandado” no tocante às relações entre a Santa Sé e a ordem.
O principal, porém, da investigação não é silenciar Burke, e sim reformar a constituição da ordem e seu comando de modo que melhor sirva aos propósitos para o qual existe.
A carta do papa aos cavalheiros enfatiza que o caráter único da ordem, tanto como instituto religioso de leigos quanto como um sujeito no direito internacional, deveria ser a “base para um serviço mais efetivo de acordo com o seu carisma antigo porém sempre relevante”, a saber, a defesa da fé e a assistência aos pobres.
Em outras palavras, a sua autonomia jurídica está a serviço da sua missão, não sendo o propósito dela, e não pode ser usada para outros fins – vantagens em assuntos empresariais, digamos, ou o desafio da autoridade papal por arquitradicionalistas.
Longe de ser algo do tipo uma invasão de um “país” por outro, como certos canonistas têm dado a entender, a intervenção de Francisco na Ordem de Malta é o dever do cuidado por um papa que não quer que o testemunho da Igreja à misericórdia cristã seja corrompida pelo privilégio e pelo mundanismo espiritual.
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Papa Francisco e os Cavaleiros de Malta: uma oportunidade para reformas - Instituto Humanitas Unisinos - IHU