06 Dezembro 2025
Vídeos altamente compartilhados promovem comportamentos de humilhação, controle e desconfiança contra mulheres.
O artigo é de Ana Carolina Marsicano, publicado por Brasil de Fato, 03-12-2025.
Ana Carolina Marsicano é doutora em Sociologia pela Universidade Federal de Pernambuco (PPGS/UFPE). Pesquisadora do Laboratório de Estudos de Religião e Política (Laberp/Fundaj/UFPE) e do Instituto de Estudos da Religião (ISER).
Eis o artigo.
Um relatório recente do Observatório da Indústria da Desinformação e Violência de Gênero nas Plataformas Digitais, produzido pelo NetLab/UFRJ em parceria com o Ministério das Mulheres, mostra um crescimento acelerado da chamada “machosfera” no YouTube.
Desde 2022, conteúdos masculinistas ganharam projeção, impulsionando narrativas que combinam teorias conspiratórias, desinformação sobre gênero e ataques ao feminismo. Esses vídeos promovem comportamentos de humilhação, controle e desconfiança contra mulheres, frequentemente apresentados como “estratégias de valorização masculina”. Pesquisadores associam esse fenômeno ao aumento da violência simbólica e psicológica, e, sobretudo, à normalização pública de um ethos misógino.
O avanço desses discursos se articula a uma reação diante das transformações culturais e das políticas de igualdade de gênero. Homens que vivenciam perda de status, insegurança econômica ou frustração afetiva tornam-se terreno fértil para influenciadores que prometem restaurar uma masculinidade “autêntica”. Nesse imaginário, a crise contemporânea seria consequência da erosão da autoridade masculina e da desordem moral trazida pelo feminismo. Assim, emerge uma “retórica da perda” que transforma ressentimento em identidade política, alinhando-se ao conservadorismo religioso e à extrema direita.
Esse cenário encontra respaldo em obras como Masculinidade, Política e Ressentimento (2024), de Danielle Brasiliense e Paulo Vaz, que mostram como modelos de masculinidade operam como recurso político. A força, a autoridade e a tradição tornam-se bandeiras mobilizadas para reorganizar hierarquias sociais e justificar projetos culturais de restauração.
Inseridos nesse ambiente, influenciadores católicos como Lucas Scudeler, Ítalo Marsili, Guilherme Freire e Dário Leitão ocupam posição de destaque na circulação de discursos tecnoconservadores que conectam moral religiosa, masculinidade disciplinada e terapia motivacional. Eles oferecem cursos de “transformação masculina” e “reconquista afetiva” que prometem ensinar os homens a recuperar liderança, firmeza e direção emocional, frequentemente emdetrimento da autonomia feminina. Produtos como o curso de Dário Leitão, “De contatinho a namorada”, reforçam a ideia de que cabe ao homem conduzir o ritmo da relação e “tomar a iniciativa”, reproduzindo lógicas de controle e sedução que naturalizam desigualdades.
Lucas Scudeler critica abertamente a “desconstrução masculina” e a figura do “homem doce”, afirmando que homens emocionalmente vulneráveis “não oferecem segurança” às mulheres. Para ele, a masculinidade exige firmeza e uma “fúria sob controle”, agressividade domada, mas nunca abolida. Ítalo Marsili propõe um ideal de virilidade baseado em disciplina, hierarquia e autoridade paterna, enquanto Guilherme Freire, defensor da restauração da ordem tradicional, associa masculinidade à coragem, combate e liderança moral.
A influência desses criadores não se limita ao campo religioso. Suas narrativas convergem com o universo redpill — ecossistema que incentiva a desconfiança nas mulheres, a ideia de que homens estão “em desvantagem” nas relações e a defesa de táticas de manipulação afetiva. Em comum, reforçam uma masculinidade reativa, que responde ao avanço de direitos das mulheres com apelos à autoridade, ao controle e à virilidade combativa.
Ao transformar ansiedade relacional em guerra cultural, esses influenciadores alimentam um ambiente que legitima condutas abusivas e dificulta o enfrentamento da violência contra a mulher. O resultado é a consolidação de uma pedagogia afetiva que, sob o rótulo de autodesenvolvimento e moral cristã, reembala velhos padrões patriarcais como soluções para o caos contemporâneo.
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