A última família palestina do vale vive trancada em sua própria casa: “Quando os colonos nos veem sair, abrem fogo”

Foto: Anadolu Ajansi

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04 Dezembro 2025

A família Daghamín é a última que resta em um vale ao sul da cidade palestina de Hebron, suportando o assédio constante dos colonos que se instalaram em frente à sua casa. Eles relatam ao elDiario.es o ataque violento que sofreram recentemente, junto com suas ovelhas.

A informação é de Miguel Flores, publicada por El Salto, 04-12-2025. 

A família Daghamín foi atacada por colonos israelenses, que borrifaram gás de pimenta dentro de sua casa, situada no sul da Cisjordânia ocupada.

Os galos de Iyhish costumavam acordar sete famílias todas as manhãs. Neste vale arenoso ao sul de Hebron, na Cisjordânia ocupada, havia trigo e grão-de-bico suficientes para que vivessem dele os Nawaya, os Rawashdeh e outras cinco famílias, cada uma com seu rebanho, cada uma com uma fome de forragem que a terra conseguia saciar.

Um dia, pouco depois do início do genocídio em Gaza, em outubro de 2023, os pastores da área perceberam que alguém havia montado uma barraca no morro em frente. Pouco depois, uma caravana móvel substituiu a tenda, e nela se instalou uma família israelense. Em dezembro de 2023, confirmou-se que a guerra havia se estendido àquele pequeno vale da Cisjordânia: o Exército decidiu transformar em zona militarizada as sete casas de Iyhish, seus poços de água, suas ovelhas, suas galinhas, seus cultivos, seus filhos e suas vidas.

Aquela caravana hoje é um posto avançado (assentamentos considerados ilegais inclusive pela legislação israelense) onde vivem cinco famílias de colonos israelenses. Desde as duas torres erguidas nas extremidades do posto, os novos habitantes vigiam a área vestidos com uniformes militares. A poucos centenas de metros, do outro lado de Iyhish, sobra apenas um reduto de vida humana: a família Daghamín.

Mahmud, Wafa e seus quatro filhos — dois deles nascidos após outubro de 2023 — entram agora em seu terceiro ano de confinamento. Pelas câmeras de segurança de sua casa, viram como expulsaram seus vizinhos, como a terra que antes lhes dava cevada virou um deserto e como agora circulam livremente por ali jovens colonos que lhes proíbem de descer ao campo. “Quando veem alguém sair, abrem fogo ou vêm direto para cima de nós”, explica o pai de família ao elDiario.es, dez metros distante da porta de sua casa — o ponto mais longe ao qual pode chegar sem correr riscos.

Colonos muito violentos

No último mês de outubro — o mais violento na Cisjordânia desde que o Escritório da ONU para a Coordenação de Assuntos Humanitários (OCHA) tem registros —, os Daghamín sofreram um dos 264 ataques ocorridos neste território ocupado, ataque que deu a volta ao mundo pela brutalidade capturada pelas câmeras de segurança.

No dia 27, em plena luz do dia, os colonos perderam o pudor e romperam as regras do “esconde-esconde” que vinham mantendo. Pelas câmeras instaladas em sua propriedade, Mahmud viu oito homens se aproximarem com porretes e passamontanhas do seu pequeno rancho. Eles destruíram os vidros do carro e viraram o tanque d’água — comprado depois que lhes proibiram usar o poço. Wafa colocou os quatro filhos na sala e trancou a porta. Ainda assim, os colonos chegaram, quebraram uma janela e borrifaram o cômodo com grande quantidade de gás de pimenta.

“Ficamos um tempo sem respirar ar, só gás de pimenta”, relata a mãe ao elDiario.es. Um dos filhos, Saddam, de um ano e sete meses, desmaiou e bateu a cabeça. Sob o hematoma, seus olhos ainda lacrimejavam dez dias depois do ataque. O pequeno Omri, de apenas seis meses, tem sido levado todos os dias ao hospital de Al Samua (o centro urbano mais próximo), porque agora respira com a ajuda de máscaras de oxigênio.

Depois de deixar as crianças sem ar, os agressores passaram ao estábulo. Lá, os Daghamín guardavam vinte ovelhas, sacos de grãos e blocos de concreto com os quais sonhavam ampliar sua modesta casa. Os colonos se concentraram nos cordeiros: esmagaram no chão, apedrejaram com o concreto e espancaram até a morte as dez crias que havia. Das dez ovelhas adultas, bateram em todas, algumas até sangrarem, e incendiaram o grão e a palha até que vizinhos de Al Samua chegaram e conseguiram expulsá-los.

Desde então, Mahmud não descola os olhos das câmeras de vigilância. Mas, de pouco serviram as gravações. “Nós contatamos a polícia várias vezes e não moveram um dedo. Nem sequer pediram os vídeos”, lamentou ele por WhatsApp no fim de novembro. A polícia israelense tem competência de segurança nessa área da Cisjordânia (área B, segundo os Acordos de Oslo), mas não prendeu nenhum dos agressores. Tampouco haviam prendido em anos anteriores, quando os mesmos jovens — que Mahmud reconhece apesar dos passamontanhas — espancaram seu vizinho de 60 anos, da família Nawaya. Praticamente todos os ataques de colonos ficam impunes.

Um vale sem paz

Os palestinos da Cisjordânia esperavam que o pico de violência em outubro fosse exceção. Os ataques costumam aumentar na época da colheita da oliva e na festividade judaica de Sucot (meados de outubro). Além disso, o cessar-fogo em Gaza em 10 de outubro e a aprovação preliminar de duas propostas de lei que buscam legalizar a anexação dos assentamentos na Cisjordânia encorajaram ainda mais os colonos, cuja violência superou a registrada nos últimos 19 anos.

Mas novembro não foi melhor: registraram-se cerca de 100 ataques de colonos — quase o dobro da média entre janeiro e setembro.

Armas e conivência do Exército

Em Iyhish, sabem que a ameaça não vem apenas dos colonos. Em outubro de 2023, pouco depois de Israel lançar a ofensiva de castigo contra Gaza (onde matou mais de 70 mil palestinos), as autoridades israelenses confiscaram os canos que os moradores do vale haviam comprado para ter água encanada.

Depois veio a declaração de zona militar e, desde então, o assédio dos colonos tornou impossível a vida no lugar. Para isso, foi crucial a colaboração do Exército, que fornece drones, veículos e armas aos assentamentos. No posto avançado que vigia os Daghamín — que não tem nome conhecido — há armas com as quais, no passado, dispararam contra a família, apontaram para Wafa e sequestraram Mahmud para espancá-lo.

Apesar de tudo, os últimos habitantes do vale garantem que não irão embora. Nem eles, nem os cordeiros, nem as crianças, que ficaram mais de uma semana sem dormir uma noite inteira depois do ataque. “Quero que vivam aqui e que vejam os colonos. Que saibam quem tenta tirar deles sua terra”, dizia Mahmud, apontando para Saddam, que corria no único perímetro onde pode fazê-lo, perto de uma jaula com algumas galinhas.

“Ele vai crescer e terá gravado na cabeça tudo o que agora nos fazem. E isso é o que eu quero. Seja médico ou pastor, o que quero é que não esqueça toda essa injustiça”, acrescenta o pai, insistindo que, se qualquer um dos colonos que vivem em frente e atormentam sua família tivesse medo da Justiça, outro galo cantaria.

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