03 Dezembro 2025
"O fim - por completo - da violência de gênero ocorrerá quando formos capazes de tecer novas formas de sociedade, que não sejam fundadas nas lógicas da exploração e do patriarcado", escreve Rosana da Silva Cuba, socióloga, doutora em Educação e especialista em Gênero e Diversidade na Escola.
Eis o artigo.
O duplo feminicídio cometido por um servidor público da Educação - João Antônio Miranda Tello Ramos contra as também servidoras públicas Allane Pedrotti e Laysa Pinheiro no Centro Federal de Educação Tecnológica Celso Suckow da Fonseca (Cefet), unidade Maracanã, zona norte do Rio, no último dia 28 de novembro é uma tragédia hedionda e indigesta para todos - e mais ainda a todas - nós, trabalhadores da área da educação, estudantes e demais sujeitos das instituições de ensino. Algumas evidências parecem apontar - digo isto porque as notícias que temos são poucas e recentes, portanto, podem carecer de confirmação - que o servidor tinha sido afastado por não aceitar a chefia imediata de mulheres, chegou a ser lotado em outra instituição, mas posteriormente retornou ao trabalho na unidade Maracanã, local dos “conflitos que culminaram no crime”. Esse trecho entre aspas foi retirado - ipsis literis - do portal de notícias Metrópoles, de texto de notícia acerca do crime [1].
A seguir, faço uma breve digressão para pensar nas estruturas que nos formam, na sequência menciono algumas das conquistas da luta feminista e, por fim, trago estatísticas e uma breve reflexão sobre um viés de análise possível desse crime: expressão de uma espécie de reação violenta daqueles que tem perdido os seus privilégios ou autorização para dominar o outro, no caso, as mulheres. Vale apontar que o texto foi escrito em 30 de novembro, ainda sob um profundo pesar, sem muitas informações, o que em alguma medida, julgo procedente, no que diz respeito à memória das mulheres vitimadas. Essa tentativa de escrever/refletir sobre uma tragédia de tal monta, foca na violência de gênero, mas não se fecha a outros apontamentos relevantes, que certamente não estarão aqui, dada a tentativa de síntese.
Somos parte de uma sociedade cujas raízes estão fincadas no patriarcado, no racismo e no capital, iniciada a partir dos séculos XV e XVI, primeiramente sob o mercantilismo. A modernidade teve início, dentre outras muitas transformações, com o aprofundamento da dominação sobre as mulheres, arrancando delas o conhecimento [2] e negando direitos que permitiriam a participação decisória a elas no espaço público e na economia. No plano da superestrutura foram mantidas concepções religiosas que associam as mulheres a um ser maligno, transgressora, responsável pela queda do paraíso, conforme narram os livros do cristianismo. A essas camadas religiosas, foram sedimentadas mais algumas: tratados biológicos (século XVIII) que construíram a diferença e a oposição entre mulheres e homens, construindo uma ideia de natureza humana associada ao sexo biológico e conveniente à dominação masculina.
As mulheres não seriam seres adequados à política, pois são pouco racionais, sujeitas a oscilações hormonais e naturalmente propensas ao cuidado, ao espaço doméstico. No plano da infraestrutura, os Estados construíram constituições e códigos civis que negavam o direito aos estudos, à herança, o direito ao voto, ao divórcio, etc. Nos países que foram colonizados, considere-se nessa breve linha do tempo a escravidão imposta aos povos sequestrados de África e a extensão da violência praticada contra as mulheres negras e aos povos originários, apesar das tantas formas de enfrentamento e resistência. Pense no quanto esse machismo permeia a nossa cultura e o nosso modo de vida, expresso na linguagem, nas artes, na educação, nos currículos (quantas mulheres cientistas, além de Marie Curie, estão em seus materiais didáticos?), na política, na razão econômica, etc.
A ruptura de parte dessa estrutura foi conseguida a partir de muitas lutas, tendo tido eco e ressonância na academia e como uma das consequências a reformulação de muitas leis e políticas públicas, às quais vivenciamos hoje, ainda que de forma desigual. A partir da luta dos movimentos feministas, no início do século XX descortinam-se direitos fundamentais e preciosos às mulheres: na União Soviética (1918) nasceu o primeiro código civil - chamado de Código da Família - igualitário, tendo as mulheres o mesmo status social, jurídico e político que os homens (Goldman, 2007). Nos Estados Unidos, a socióloga Anna Julia Cooper, pioneira do movimento feminista negro, lutava por meio da educação, para desmentir as teses acerca da inferioridade e submissão das pessoas negras e/ou ex escravizadas. Ainda nos Estados Unidos, nos anos 30 a antropóloga Margaret Mead desmentia as teorias que formulavam uma natureza humana feminina e uma natureza humana masculina (Sexo e Temperamento), universais. Em 1975 a luta avança e realiza-se a Primeira Conferência Mundial sobre a Mulher da ONU na Cidade do México. A conferência resultou na adoção da "Declaração do México sobre a Igualdade das Mulheres e sua Contribuição para o Desenvolvimento e a Paz" e estabeleceu a década de 1975-1985 como a Década das Nações Unidas para a Mulher.
No Brasil, em plena ditadura militar, nos anos 70, Lélia Gonzalez inicia seus estudos e reflexões sobre negritude, gênero e racismo e questionando o mito da democracia racial, alimentado pelo Estado brasileiro. Aqui poderíamos apontar inúmeras outras representantes da luta que articulavam - e articulam - gênero, raça e classe, como Beatriz do Nascimento, Sueli Carneiro, produzindo luta e teoria e pressionando para que o Estado materialize, de fato, direitos historicamente básicos negados ou negligenciados às mulheres pretas. Em 1983 Maria da Penha Maia Fernandes é vítima de duas tentativas de assassinato por seu (então) marido, tendo sobrevivido e se tornado um símbolo da luta por uma legislação que combata a violência oriunda do machismo e, ainda, pela responsabilização e por justiça a quem cometa violência doméstica.
A Lei Maria da Penha, de agosto de 2006, reconhece as cinco formas de violência doméstica (moral, psicológica, patrimonial, física e sexual), além de instituir medidas protetivas. Para coroar os exemplos sobre as conquistas das mulheres, oriundas das lutas feministas, do movimento negro e classista, em 2015 foi sancionada a Lei 13.104, considerando o feminicídio como circunstância qualificadora do crime de homicídio. Lei essa alterada em outubro de 2024 (Lei 14.994), tornando o feminicídio crime autônomo e agravando a sua pena e a de outros crimes praticados contra a mulher por razões da condição do sexo feminino, dentre outras alterações. Vale assinalar que é triste que um país tenha que aprovar uma lei deste tipo, pois a legislação é resultado do reconhecimento de que é necessário coibir relações sociais opressoras, posto que parte dos homens ainda trata as mulheres como cidadãs de segunda classe (para dizer o mínimo). Negar o direito à vida por que se é mulher é inconcebível.
Pois bem, retornamos ao fato, propriamente dito, narrado por parte da imprensa como um “crime ocasionado por conflitos anteriores”. Ora, é preciso nomear as coisas como elas são: trata-se de dois feminicídios e ponto. Às mulheres que ocupavam seus postos de trabalho, seja em cargos de chefia, de coordenação ou simplesmente para realizar o trabalho ao qual foram designadas, não podem ser atribuídas a responsabilização por um crime que as vitimou de forma letal. Não temos a exata dimensão do que as notícias, de forma geral, chamam de “conflitos”, mas pode se dizer que divergir de posicionamento ou de decisões tomadas - seja na forma de discordâncias verbais, de posições de ideias que não ferem a Constituição Federal de 1988 e a LDB (Lei de Diretrizes e Bases da Educação, que rege a todas as instituições escolares no Brasil desde 1996) e o Código Penal, dentre outros estatutos com força de lei - é absolutamente legítimo e pode ocorrer no plano institucional nos órgãos de classe ou deliberativos existentes.
Os crimes de violência contra as mulheres, na forma de feminicídios, seguem sendo um número elevado, embora saibamos de todas as subnotificações de outras formas de violência e mesmo de feminicídios qua assim não são notificados, por ocorrer fora do ambiente doméstico. Segundo a Anuário Brasileiro de Segurança Pública [3], nos últimos dois anos o número de feminicídios aumentou no Brasil e isso ainda tem um componente de intensidade, quando se analisa a proporção em relação aos homicídios de mulheres. Conforme os dados, em números absolutos, no Brasil, em 2023 houve 1475 feminicídios e em 2025, 1492. Quando se verifica a proporção de feminicídios em relação aos homicídios de mulheres, a proporção aumentou de 37,5% em 2023 para 40,3% em 2024. Para realizar um recorte aqui, de dois estados: Rio de Janeiro (onde está o CEFET/Maracanã) e Santa Catarina, de onde escrevo, os números mostram algo semelhante: no Rio o número de feminicídios em relação ao número de homicídios saltou de 34,1% para 47,5% e em Santa Catarina, de 53,3% para 61,4%. O próprio anuário destaca que os dados de feminicídios em 2024 é o maior desde 2015, quando a lei entrou em vigor: “no último ano, todos os dias, ao menos quatro mulheres morreram vítimas de feminicídio no Brasil” [4]. O caso específico sobre o qual dialogamos aqui se afasta de dois pontos em relação a alguns outros dados: não é o caso de mulheres negras (63,6% das vítimas) e a morte delas não decorreu do uso de arma branca, utilizadas por companheiros em ambiente doméstico (48,4% das mortes).
Em aberto e que ainda pode ser investigado, no caso em tela, é se houve - como na maioria dos casos, conforme aponta o próprio Anuário 2025 - um continuum de violência perpetrada contra as vítimas até o momento letal. A se confirmar, é preciso que as instituições de educação estejam atentas para o fortalecimento de políticas públicas de saúde para todos/todas os/as servidores, bem como aos estudantes e toda a comunidade acadêmica. Assinalamos que mais precisamente às mulheres (inclusive mulheres trans), que são as vítimas da violência de gênero. Precisamos falar e formar sobre gênero e misoginia nas instituições, para além de setores, grupos de trabalho ou núcleos institucionais (Núcleos de Gênero/Neges, dentre outros, comuns nas instituições de educação superior federais), bem como instâncias de representação (Diretórios Acadêmicos estudantis ou Sindicatos dos trabalhadores). Instâncias como aquelas em que ocorrem mediações de conflitos - reconhecendo as especificidades daqueles permeados por questões de classe, raça ou gênero - também podem ser ambientes de escuta e promoção de prevenção a violências, embora tenha que se levar em conta também certa predisposição individual para refletir acerca das próprias visões de mundo e subjetividades. Esse homem ao qual referimos aqui muito provavelmente teve chefes e colegas homens dos quais discordou e/ou recebeu ordens, mas foi contra duas mulheres que ele resolveu atirar.
João Antônio Miranda Tello Ramos - que se suicidou após os feminicídios, impondo também a si mesmo o fim da própria vida - corresponde à estatística do Anuário da Segurança Pública (2025), que aponta para a autoria dos feminicídios: 97% são cometidos por homens, evidenciando “que há uma estrutura social que legitima, permite e naturaliza o uso da violência por homens contra mulheres” (p.162 do Anuário). A violência naturalizada e reiterada contra as mulheres e a população LGBTQIAPN+ continua sendo minimizada e ao mesmo tempo encorajada por alguns dos parlamentares brasileiros e muitos oriundos de frações de classe que se veem ameaçados quando as mulheres alçam igualdade de condições para ocupar postos de trabalho ou para libertar-se do jugo de relações afetivas violentas - em suas múltiplas formas - para elas. Essa espécie de reação inclui também a mobilização de saberes supostamente “jurídicos”, abrindo brechas para projetos de lei e de jurisprudências que colocam as mulheres em risco.
A luta contra a violência de gênero, considerando as relações entre raça e classe, precisa ser enfrentada nas estruturas e instituições, muito embora estejamos sob o guarda-chuva das políticas neoliberais que apontam apenas para o absenteísmo diante da organização coletiva e o alívio individual cotidiano como saídas possíveis. O fim - por completo - da violência de gênero ocorrerá quando formos capazes de tecer novas formas de sociedade, que não sejam fundadas nas lógicas da exploração e do patriarcado. A coexistência humana sob outras formas de organização econômica, política e social necessita estar no horizonte e a cada política pública de prevenção e de combate à violência, talvez nos aproximemos da utopia.
Notas
[1] O texto foi lido e acessado em 30 de novembro de 2025. Disponível aqui.
[2] Silvia Federici descreve bem o processo mencionado em Calibã e a Bruxa. Mulheres, corpo e acumulação primitiva. Tradução Coletivo Sycorax. Editora Elefante, 2017.
[3] Disponível aqui.
[4] FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA. 19º Anuário Brasileiro de Segurança Pública. São Paulo: Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 2025, p.147. Disponível aqui. Acesso em: 30/11/2025.
Referências
GOLDMAN, Wendy. Mulher, Estado e revolução. São Paulo: Boitempo; Iskra, 2014.
FEDERICI, Silvia. Calibã e a Bruxa. Mulheres, corpo e acumulação primitiva. Tradução: coletivo Sycorax. São Paulo: Elefante, 2017.
FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA. 19º Anuário Brasileiro de Segurança Pública. São Paulo: Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 2025. Disponível aqui. Acesso em: 01/12/2025.
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