11 Agosto 2025
Agredida com 61 socos em 35 segundos, vítima dá nome, rosto, cor, voz e história à alarmante guerra em curso contra milhares de brasileiras.
O artigo é de Manoela Miklos, Silvia Chakian e Samira Bueno, publicado por Folha de S. Paulo, 10-08-2025.
Manoela Miklos é mestre e doutora em Relações Internacionais e pesquisadora do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
Silvia Chakian é mestre em direito (PUC-SP) e promotora de Justiça (MP-SP).
Samira Bueno é diretora-executiva do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
Eis o artigo.
A cena é insuportável de se ver: dentro do elevador de um prédio residencial em Natal, por intermináveis 35 segundos, Juliana Garcia dos Santos, 35, é brutalmente espancada pelo namorado, que desfere 61 socos contra o seu rosto, desfigurando-a. O agressor tem nome: Igor Eduardo Pereira Cabral, 29. O pior? O caso impressiona não pelo que tem de extraordinário. As imagens impressionam pelo que têm de comum.
De acordo com o recém-lançado Anuário Brasileiro de Segurança Pública, regularmente publicado pelo Fórum de Segurança Pública, o Brasil registrou em 2024 o maior número de feminicídios da história, com 1.492 vítimas. O número de tentativas de feminicídio também bateu recorde e, com um crescimento de 19%, resultou em 3.870 mulheres vítimas. Assim como Juliana, que escapou por pouco de ser morta graças a mobilização do porteiro e de alguns moradores, que rapidamente intervieram.
O perfil das vítimas segue o mesmo: 63% são mulheres negras e cerca de 70% têm entre 18 e 44 anos —ou seja, mulheres em idade reprodutiva são as mais vulneráveis. A maioria dos crimes ocorre dentro de casa (64%), e 97% dos agressores são homens. Em 8 a cada 10 casos, o feminicídio é cometido por companheiros ou ex-companheiros da vítima.
E é preciso lembrar: o feminicídio não é um incidente isolado, é a misoginia expressa em sua forma mais brutal e definitiva. Como diz a escritora canadense Margaret Atwood, os homens temem que as mulheres riam deles. As mulheres temem que os homens as matem.
Temos marcos legais que são referência na prevenção e enfrentamento da violência de gênero. A mais célebre das leis que versam sobre violência de gênero no país, a Lei Maria da Penha, completou 19 anos na quinta-feira (7) e merece o prestígio que tem. Mas abundam desafios de implementação que não permitem que o Estado, em boa parte do país, chegue até as brasileiras em risco a tempo e as ajude a romper o ciclo de violência em que estão inseridas.
O alto número de medidas protetivas de urgência concedidas e de medidas descumpridas pelo agressor comprovam essa avaliação. Em 2024, tivemos 6,6% mais medidas concedidas, mas as violações por parte dos agressores cresceram ainda mais —10,8%.
Outros dados ajudam a compor esse cenário alarmante. Com dois acionamentos por minuto, o 190, número de emergência das Polícias Militares, revela um quadro de mais de 1 milhão de atendimentos em decorrência de violência doméstica: o retrato de um país verdadeiramente em guerra contra as brasileiras.
Em suma, o Brasil tem enorme dificuldade em fazer segurança pública da porta para fora, mas a dificuldade é ainda maior quando se trata de fazer política pública da porta para dentro. Vivemos num país onde a misoginia impera, e que reage brutalmente à busca por emancipação das mulheres. Apesar dos avanços legislativos, ainda estamos distantes de romper com as raízes culturais que naturalizam as desigualdades de gênero, o controle e o sentimento de posse masculino.
É por isso que casos como o de Juliana não surpreendem. Juliana é regra, não exceção.
Seu caso confere tangibilidade aos dados. Dá a eles nome, rosto, cor, voz e história. Desperta emoções que os dados, frios, não dão conta de trazer à tona. E, assim, contribui para a construção de uma realidade mais digna para as brasileiras. Afinal, nas palavras da feminista norte-americana Cheris Kramarae, precisamos defender a noção radical de que as mulheres são seres humanos.
Juliana, naquele elevador, precisa marcar nossa retina para sempre e nos lembrar cotidianamente que mulheres são seres humanos. Não é pedir muito, é?
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