27 Novembro 2025
Para muitos ativistas, este encontro, que deverá reunir dezenas de milhares de pessoas sob o lema "Reparação e Boa Vida", inspira e marca um caminho rumo à inclusão no continente.
A reportagem é de Soledad Domínguez, publicada por El País, 26-11-2025.
Neste dia 25 de novembro, Brasília será palco de um evento singular: a Marcha das Mulheres Negras, cujo lema é Reparação e Bem Viver. “Precisamos construir outro mundo, imaginar mundos possíveis e unir forças para termos uma estratégia transnacional de denúncia e construção”, afirma Naiara Leite, 40, salvadorenha, coordenadora do Instituto Odara e do Comitê Nacional da Marcha. “No país, somos quase 60 milhões de mulheres negras. Se conseguirmos conscientizar mais de um milhão delas, já estaremos em boa situação”, assegura Leite.
Os dados do PNUD confirmam essa magnitude: as mulheres negras representam 28,5% da população brasileira, mas enfrentam as maiores desigualdades, uma realidade que se repete em toda a América Latina. Os organizadores esperam cerca de 300 mil participantes. A marcha conta com um comitê global que coordenou meses de trabalho regional e internacional para reunir mulheres afrodescendentes da América Latina, do Caribe e de outros continentes. A noção de A-Méfricanidade, cunhada pela filósofa brasileira Lélia González, ressoará em novembro pelas ruas da capital brasileira: um processo vivo de resistência e criação enraizado nas tradições africanas que forjou uma identidade única nas Américas.
Mas a marcha não é um evento isolado. Brasília está fervilhando com mais de 50 atividades — diálogos, encontros, definição de agendas — que buscam fortalecer as lutas por igualdade, democracia, justiça climática, combate ao racismo religioso, direito ao território e uma vida livre de violência para a juventude negra. Em sua arquitetura futurista, a cidade de concreto e vidro abriga uma mobilização centrada no Museu Nacional, na Praça dos Três Poderes.
Esta edição é uma continuação direta da marcha de 2015, que reuniu quase 100 mil mulheres negras e consolidou um novo ciclo na organização política e na visibilidade desse movimento. “Desde então, vimos um enorme aumento no número de candidatas negras, e [a vereadora negra assassinada no Rio de Janeiro] Marielle Franco também é fruto desse processo”, explica Ingrid Farias, diretora de extensão do Update Institute. Ela acrescenta que, desde 2016, “muitas organizações coletivas de mulheres negras surgiram e ditaram o tom dos debates sobre raça, beleza negra e estética positiva”.
No entanto, a lacuna na inclusão política das mulheres em geral, e das mulheres afrodescendentes em particular, continua enorme. Segundo o ranking da União Interparlamentar (UIP), o Brasil ocupa a 132ª posição no mundo em termos de representatividade feminina, com menos de 19% de parlamentares mulheres, abaixo de países como Jordânia e Turquia.
Apesar disso, Amanda Hurtado, antropóloga, ativista antirracista e pré-candidata ao Senado pelo Pacto Histórico, reconhece a influência das mulheres brasileiras na luta. Para ela, a experiência brasileira não só inspira, como também define um rumo. “Tive conversas muito importantes com minhas companheiras brasileiras — Ingrid, Fabiana — e sempre trocamos ideias. Esse tem sido o legado do movimento brasileiro”, afirma. Esse legado, acrescenta, é duplo: demonstrar que é possível para mulheres negras se engajarem na política radical e disputarem, sem medo, posições de poder.
Hurtado enfatiza que o movimento brasileiro combinou precisamente a força do movimento social com a do sistema partidário. “Vejo-o como um movimento que compreende diferentes mecanismos de acesso ao poder”, afirma. Essa articulação — seu “partido-movimento” — é, para ela, uma das lições mais poderosas que o Brasil oferece hoje ao progressismo e à esquerda antirracista: transformar estruturas exige ocupar tanto as ruas quanto as instituições.
No México, lar de mais de 2,5 milhões de afro-mexicanos, metade dos quais mulheres, a ativista e líder comunitária Mijane Salinas encara a Marcha Global com esperança e cautela. Para muitas mulheres afro-mexicanas, participar é praticamente impossível: faltam recursos, existem barreiras linguísticas e a informação não chega às suas comunidades. Mesmo assim, ela reconhece o surgimento de novos coletivos e jovens lideranças. Para ela, o propósito do encontro é claro: coletivizar a luta, reconhecer umas às outras e se organizar diante do racismo e da violência. E ela enfatiza algo mais: este deve ser o momento em que digam juntas: “Aqui estamos, precisamos de uma oportunidade”.
Vinda do Uruguai, Tania Ramírez — membro do coletivo Mizangas e coordenadora regional da Update — concorda que o Brasil é um farol político para a região. “Nossas irmãs brasileiras sempre foram um exemplo e um ponto de referência para muitas de nós”, diz ela antes de viajar para Brasília, lembrando como cada avanço repercute no Uruguai, na Argentina e no Paraguai. Mas o que mais a comove é o que ela traz de volta: “Não se trata apenas de ir marchar, mas de retornar e desafiar a narrativa, mostrando que existe um movimento feminista negro e diaspórico, imaginando outros futuros possíveis”.
Em Brasília, a marcha sintetiza todas essas necessidades urgentes. É o resultado de um trabalho coordenado nos 27 estados brasileiros, com comitês estaduais, municipais e regionais liderados pelas próprias mulheres, além de 16 comitês formados por latinas e mulheres de outros continentes. “Marchamos por reparações, que é a dívida que o Estado tem com as mulheres negras e as famílias das vítimas da violência estatal”, afirma Fabiana Pinto, do Mujeres Negras Deciden (Mulheres Negras Decidem).
O slogan não é abstrato: a mega operação policial no Rio em outubro, que deixou 121 mortos, deixou mulheres — em sua maioria negras — caminhando entre os corpos para identificar seus parentes.
Buen Vivir propõe o oposto: uma vida plena e livre de violência. “Não se trata apenas de sobreviver, mas de viver com dignidade, com território, saúde, memória e um futuro”, resume Pinto. Essa visão também norteou o Plano de Ação para Buen Vivir, apresentado na COP30, que convoca a participação política de mulheres amazônicas no enfrentamento do racismo ambiental.
O documento final da marcha definirá uma agenda coletiva voltada para a reparação histórica do racismo e um modelo de sociedade onde as mulheres negras sejam reconhecidas como sujeitos políticos e guardiãs da vida e dos territórios.
No fim, o que acontece em Brasília não fica em Brasília. A marcha abre um horizonte que transcende fronteiras e é interpretado regionalmente, ancestralmente e em termos de futuro. A afro-uruguaia Ramírez resume isso em uma imagem altamente simbólica: o Sankofa, um dos símbolos Adinkra do povo Akan de Gana. Ele tem duas formas clássicas: uma é a de um coração, presente em muitas construções em nosso continente; e a outra é a de um pequeno pássaro com o bico voltado para trás, guardando um ovo, mas voando para a frente. “O passado, mas caminhando em direção ao futuro”, explica ela.
Essa memória viva se conecta com o que Amanda Hurtado vislumbra para a Colômbia: que a marcha impulsione uma plataforma política regional, capaz de conceber um projeto para a maioria latino-americana que transcenda as políticas identitárias. Em suas palavras:“ A vergonha que Donald Trump nos infligiu não foi apenas para os negros, foi para toda a comunidade latina.”
Nessa encruzilhada de memórias, lutas e futuros, a marcha revela o que talvez seja sua essência mais profunda.
Como afirma Hurtado: “A Marcha das Mulheres Negras no Brasil é um farol de esperança… para todos os movimentos globais antissistêmicos e antirracistas. Das mulheres negras surge uma visão coletiva da humanidade.”
Assim como as Sankofas que Ramírez evoca, as mulheres negras da América Latina, do Caribe e de todas as partes do mundo avançam sem soltar o ovo do futuro: guiadas pelas ancestrais, sustentadas pela memória e prontas para imaginar – e exigir – os outros mundos possíveis que esta marcha ousou nomear.
Leia mais
- COP30 frustra lideranças da Marcha das Mulheres Negras: “não conseguimos avançar”
- Que COP30 foi essa? Entre as mudanças climáticas e a gestão da barbárie. Artigo de Sérgio Barcellos e Gladson Fonseca
- “Não podemos mais achar que esse sistema vai resolver os problemas”, diz CEO da COP30
- A menos de um mês da COP30, Marcha das Mulheres Negras lança Manifesto por Justiça Climática
- 'Estamos pedindo ao mundo que aja': mulheres africanas na linha de frente das mudanças climáticas exigem justiça na COP30
- Mulheres negras no topo, como deve ser
- Como as mulheres negras são vistas pela sociedade?
- “Quando a mulher negra se movimenta, toda a estrutura da sociedade se movimenta com ela”
- Mulheres negras católicas falam sobre racismo, aborto e esperança em meio à candidatura de Harris
- Síntese dos indicadores sociais das mulheres no Brasil
- “Não é possível pensar um projeto de Brasil sem pensar na importância das mulheres negras”. Entrevista com Djamila Ribeiro
- “O racismo estrutura a sociedade brasileira, está em todo lugar”. Entrevista com Djamila Ribeiro
- “O feminismo negro não divide”. Entrevista com Djamila Ribeiro
- Racismo no Brasil: todo mundo sabe que existe, mas ninguém acha que é racista, diz Djamila Ribeiro
- ‘Ser negra aqui é ser estrangeira no próprio país’, diz Djamila Ribeiro
- Mulheres sofreram mais os efeitos da pandemia no mercado de trabalho, principalmente as negras
- Mortalidade materna entre mulheres negras supera em 78% a de mulheres brancas