22 Setembro 2021
O racismo estrutural permeia todas as esferas da vida em sociedade, uma das camadas mais atingidas por essa segregação são as juventudes, principalmente a juventude negra. Para abordar essa problemática, no dia 17 de setembro, o CEPAT, junto com diversos parceiros, promoveu o debate Juventude negra e o racismo: lutas e desafios, pela série de debates [online] Sociedade e Racismo, com a participação dos debatedores Diego Henrique da Silva, da Parafuso Educomunicação, e Bruna Fernandes Marcondes, do espaço Afro-Sul Odomode e do Coletivo Dandara.
Durante o encontro, os convidados abordaram os desafios da juventude negra no contexto do racismo brasileiro, com foco prioritário na educação, trabalho, segurança, violência, projetos sociais de inclusão, políticas públicas e acesso à cultura da juventude negra.
Diego Henrique da Silva, da Parafuso Educomunicação, Igor Borck, do CEPAT, Bruna Fernandes Marcondes, do espaço Afro-Sul Odomode e do Coletivo Dandara, na atividade "Juventude negra e o racismo: lutas e desafios".
Em sua intervenção, Bruna Fernandes Marcondes priorizou as questões vinculadas ao acesso ao ensino superior, educação e militância da juventude negra. Já Diego Henrique da Silva falou dos projetos sociais exitosos de empoderamento da juventude negra através da cultura e da educação.
O encontro foi uma troca de saberes e vivências de dois jovens negros que trabalham e estudam a temática da juventude negra. Na sequência, apresentamos um depoimento escrito por Bruna Fernandes Marcondes que sintetiza um pouco de sua participação na atividade e que também apresenta aspectos de sua história de militância no movimento negro.
Durante a minha fala no evento Juventude Negra e o racismo: lutas e desafios, falei dos primeiros momentos de militância e a Universidade, das ações afirmativas e, por fim, tratei de perspectivas para o futuro nas lutas da Juventude. Compartilhei meu conteúdo por meio de um método muito utilizado por pessoas pretas dentro e fora da academia, a escrevivência. Falei sobre a juventude negra e as suas reinvindicações políticas, a partir da minha biografia e de parte da minha trajetória como militante. Acredito que exercitar a escrevivência é falar da nossa história a partir de um lugar de autoestima e de poder.
Além disso, enxergo outra questão poderosa. Acredito que a minha vida tem duas transições importantes: a primeira, mais pessoal, de estar na escola pública, um ambiente de maioria pobre, e, depois, ir para a universidade pública, um ambiente de maioria da elite, sobretudo na Faculdade de Direito.
Depois, veio uma mudança nacional importante: a transição da institucionalização da Lei de cotas em 2012. Eu entrei na universidade em 2009, a lei de cotas já vinha sendo aplicada de forma esparsa na UNB (em 2002), na UFRGS (em 2006/2007) e na UFMT, que tinha um programa para estudantes indígenas. A lei que no ano que vem fará 10 anos de vigência, inspirou vários movimentos de ações afirmativas.
Quando eu saí da Universidade, formada em Direito na UFRGS, no ano de 2016, participei da ocupação do Balanta. Ocupação que aglutinou diversos coletivos negros da Universidade e que reivindicava a manutenção das ações afirmativas e aplicação da lei, para ampliar a permanência e preservar a aplicação da lei em favor dos estudantes negros e negras.
Paulo Borges, da ACNAP, Igor Borck, do CEPAT, Bruna Fernandes Marcondes, do espaço Afro-Sul Odomode e do Coletivo Dandara, Diego Henrique da Silva, da Parafuso Educomunicação, na atividade "Juventude negra e o racismo: lutas e desafios".
É importante considerar que o movimento negro é muito heterogêneo nas suas formas de resistência política, o que, claro, também vale para a juventude. Nos últimos anos, luzes vêm sendo lançadas para reconhecer esses múltiplos espaços de resistência em lugares que, originalmente, a esquerda branca não via como espaços de luta política. Como, por exemplo, os clubes negros, o carnaval, o terreiro e outros territórios sagrados, as organizações de trabalhadores negros escravizados pela liberdade e condições de dignidade, os movimentos e militâncias de favelas e bairros, as rodas de samba... Há um processo de reconhecimento desses espaços de luta, na Universidade também. Foi onde, depois, me descobri militante, mesmo que antes não me visse com essa titularidade.
O convívio na Universidade também foi um espaço para presenciar o racismo. Um racismo à brasileira, um racismo que, naquele contexto, se desnuda sobretudo pelo convívio cotidiano com pessoas brancas. O racismo carrega uma ideia de inferioridade, mas é dialético, portanto, tem relação imediata com o outro grupo, os brancos.
Essa diferença fica sensível pela desigualdade material e de acessos em relação ao que as pessoas brancas, simplesmente, possuem. Mas também pela diferença de tratamento recebida entre os grupos: a Universidade não estava (e não está, creio eu) preparada para estudantes negros, mas, sim, para negros e negras enquanto objeto de estudo.
Fica mais cotidiana e frequente a nossa percepção sobre nós mesmos, não há como esquecer que você é negro na Universidade. Esse espaço tem muitos e sofisticados mecanismos de exclusão, um deles é o epistemicídio: um apagamento estrutural dos saberes e da produção de conhecimento não assimilados pela branquitude.
Esse mecanismo nem sempre é consciente, mas está em professores que rejeitam trabalhar com produções de autoria negra ou com recortes de raça, no compartilhamento de uma visão docilizada e romântica da escravidão, no apagamento e invisibilidade de espaços e movimentos de resistência de pessoas negras, históricos ou contemporâneos.
Esse racismo vai mobilizar uma consciência de que é preciso se enquadrar, se moldar a essa estrutura para sobreviver, como explica Fanon, o desejo de imitar vai se tornando muito forte. Faz sentido que eu tenha largado a dança, nesse período, e, claro, mobilizado muitos sofrimentos internamente para seguir naquele projeto de embranquecimento.
Esse fenômeno de orientar a subjetividade para a reprodução de um padrão atinge muitas pessoas negras. Faz sentido, igualmente, que muitas lideranças mais antigas de movimentos negros venham apontando a ausência da juventude, beneficiada pelas cotas há pelo menos duas gerações, nos espaços de militância, dentro das raízes e dos movimentos de luta da negritude.
Esse processo de embranquecimento é um esquecer e um negar as próprias referências de resistência. E isso possui uma dimensão muito importante, afinal, para fazer luta política é preciso se perceber como um ator político. Contudo, enxerga-se pessoas negras como passivas, que aceitaram a escravidão ou ainda que durante esse tempo sequer produziram algo substantivo de luta para emancipação e liberdade dos negros e negras... o que isso significa?
Meu ingresso no Coletivo Dandara foi uma resposta ao episódio em que um estudante desenhou uma suástica no banheiro da Faculdade com os dizeres “morte aos negros e aos gays”. Quando senti que o meu silêncio não me acolheria, mas, sim, os meus. O Coletivo Dandara foi criado para ser um espaço seguro para lidar com essa pressão, cotidiana, de ser uma pessoa negra na Faculdade de Direito.
Sobre as ações afirmativas, busquei elaborar uma breve reconstrução histórica. De Oliveira Silveira e o Grupo Palmares que, há 50 anos, reivindicaram símbolos e signos da luta e resistência negra no Brasil, a partir de Palmares e de Zumbi, passando pelo movimento “Reparações Já”, organização que reivindicava indenização para os descendentes de pessoas escravizadas no Brasil. Esse movimento, articulado no pós-democratização, atuava a partir de duas ideias importantes: a primeira desafiava o mito da democracia racial, expondo que a desigualdade de raça é perceptível por vários indicadores (como moradia, escolaridade, renda), e a segunda, a exigência de que a desigualdade racial é um problema do Estado e deve ser resolvido por ele.
O compromisso em desmascarar o racismo do mito da democracia racial foi enfrentado por diversos intelectuais, como Sueli Carneiro e Luiza Bairros, e pelo Movimento Negro Unificado. A demanda por indenização também não era nova, àquela altura, estava presente em movimentos políticos pelo mundo. Mas fez uma diferença brutal na organização dos movimentos políticos da negritude do Brasil!
O tensionamento do mito da democracia racial associado à demanda por políticas públicas que atenuassem a desigualdade racial, em conjunto, vão redundar nas ações afirmativas e vão reverberar em diversas discussões e projetos importantes na institucionalidade brasileira. Ainda assim, as ações afirmativas são um produto possível do jogo político, em relação à agenda original das indenizações econômicas.
Essas ações, inclusive, sofreram outras mudanças na correlação de forças e da defesa do projeto da Branquitude. Apenas um quarto das vagas na escrita da lei foram destinadas exclusivamente para pessoas negras. Faz sentido que ações afirmativas sempre estivessem na ponta da faca!
Em 2016, quando ocupamos a Universidade, a ameaça era substantiva. Havia demandas por permanência, haja vista as muitas dificuldades atravessadas pelas pessoas negras para permanecer na universidade, como sobrecarga, falta de acessos, desprestígio, discriminação. Assim como a demanda para assegurar o uso das vagas para pessoas negras, com a ampliação do controle de fraudes e mecanismos para assegurar o uso das cotas em conjunto com o acesso universal.
Ter sido jovem na universidade, que é uma das formas de ser jovem, ou seja, não é uma experiência universal da juventude negra, é um processo de ruptura dos seus marcos de resistência. Ainda assim, as ações afirmativas possibilitaram um aumento da quantidade de pessoas negras naquele ambiente, facilitando encontros e aquilombamentos que fortalecem o caminho de resistência. Caminhos que vêm sendo percorridos com uma demanda por protagonismo e um olhar de reconhecimento dos espaços de resistência negra, históricos e contemporâneos, interpretando-os como resistências políticas (territórios sagrados, carnaval, quilombos urbanos).
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
A juventude negra e os lugares que a esquerda branca não via como espaços de luta política - Instituto Humanitas Unisinos - IHU