Caso Marielle: o Estado organiza o consórcio do crime que movimenta a economia da matança – Parte I. Entrevista especial com Jacqueline Muniz

Na última semana saiu a condenação dos executores de Marielle Franco e Anderson Gomes – Ronnie Lessa e Élcio Queiroz, mas o julgamento dos investigados por serem os mandantes do crime ainda não tem data marcada

Arte: Marcelo Zanotti | IHU

Por: IHU e Baleia Comunicação | 06 Novembro 2024

Os autores do assassinato da vereadora carioca Marielle Franco e seu motorista Anderson Gomes, em março de 2018, foram julgados e condenados em 30 outubro passado. Ronnie Lessa e Élcio Queiroz foram condenados pelo Tribunal do Júri, a 78 anos e 9 meses de prisão e 59 anos e 8 meses de prisão, respectivamente. No entanto, o tempo em regime fechado será menor, entre outras razões, pela delação premiada que ambos realizaram, mas que precisará ser provada criminal e juridicamente. Os acusados de serem os mandantes do crime, o delegado Rivaldo Barbosa, o parlamentar Chiquinho Brazão e seu irmão, conselheiro do Tribunal de Contas do RJ, Domingos Brazão, serão julgados pelo Supremo Tribunal Federal – STF, tendo em vista que um dos acusados é deputado federal.

Pensando o caso Marielle para além da atrocidade do crime, mas vendo-o um pouco mais de longe, é possível compreender quais são suas condições de emergência. “O caso Marielle e Anderson, que foi um assassinato político, desde a sua ocorrência em 2018 é uma explicitação de como se governa com o crime no Rio de Janeiro e não contra ele, de como é o Estado que opera como uma grande imobiliária que arrenda territórios para grupos criminosos e que funciona como uma agência reguladora do crime. Ele constitui o crime, estabelecendo quem mata e quem pode morrer. Então, matar, deixar matar e deixar morrer é parte da gestão do Estado”, explica a antropóloga Jacqueline Muniz em entrevista por videoconferência ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU.

Para a pesquisadora, no Rio de Janeiro há um projeto de insegurança pública que é sistêmico e antigo. “Vamos lembrar que o Rio de Janeiro, nos últimos 20 anos, teve seis governadores afastados, sendo que cinco foram presos, além de quatro chefes de polícia também presos; o Rivaldo [Barbosa] não é o primeiro”, recorda Jacqueline. “O próprio Ronnie Lessa é um matador assim como Adriano [da Nóbrega], que foi assassinado, era um matador, ambos saídos da polícia com um lastro e uma blindagem política. Portanto, a impunidade é uma mercadoria política de elevado valor. Por isso eu digo que a assassinato da Marielle foi um presente”, ressalta.

Diante de um cenário verdadeiramente desesperador, uma espécie de beco sem saída, a sociedade fluminense fica à mercê de discursos messiânicos que, em vez de resolver os problemas, estes acabam sendo agravados. “O medo é péssimo conselheiro. Diante do medo, abrimos mão das garantias individuais e coletivas em favor do primeiro ‘fortão’ de ocasião, do primeiro maluco que nos proteja, que nos prometa proteção. O protetor de hoje será o tirano de amanhã”, sublinha a entrevistada. “Faz-se a guerra contra o crime para vender a paz da propina, a paz do arrego, a paz do cemitério para subir o preço do alvará, do arrendamento dos territórios para subir o preço de funcionamento da firma criminosa”, complementa.

Publicamos a seguir a primeira parte da entrevista com Jacqueline Muniz

Jacqueline Muniz (Foto: Frame da videoconferência com o IHU)

Jacqueline Muniz é graduada em Ciências Sociais pela Universidade Federal Fluminense – UFF, mestre em Antropologia Social pelo Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, em e doutora em Ciência Política pelo IUPERJ, Universidade Candido Mendes (1999) com a tese Ser policial é, sobretudo, uma razão de ser: cultura e cotidiano da PMERJ.

Confira a entrevista.

IHU – Como é sua vivência com as polícias e de onde vem seu interesse pelo tema?

Jacqueline Muniz – Eu rodei quase todo o Brasil fazendo trabalho de campo a convite das polícias e fui muitas vezes ao Rio Grande do Sul. Como antropóloga, dei palestras para as polícias militar e civil, sobretudo para a Brigada, que tinha um núcleo de pesquisa e acompanhei de perto algumas reformas que estavam acontecendo. Houve um processo de democratização das polícias no Rio Grande do Sul.

Em minha tese de doutorado sobre as polícias, começo contando uma história em que eu estou sentada na margem do Rio Guaíba, em Porto Alegre, com policiais que na época eram tão novos quanto eu, que a Brigada colocava para me acompanhar.

Essa história que conto é que eu estou com um desses oficiais jovens, que estão me ciceroneando e preocupados. Estávamos em uma mesa comendo pizza, e eles contando o dia a dia deles, policiais e bombeiros. Eles contam sobre o atendimento a um incêndio e alguns deles relatam que não conseguem salvar todo mundo – naquele momento os bombeiros e a Polícia Militar, no RS e em São Paulo, eram unificados. Eles vão falando o passo a passo um caso – eu fico arrepiada –, porque, não sendo experientes, ficam traumatizados, porque alguns deles resolveram ir casa adentro pegando fogo, pois tinha uma mãe dizendo: “ainda tem meus filhos”. Eles não conseguiram tirar todos.

Na história narrada, eles se emocionam e choram. Mas o quão interessante é essa história e sua dramaticidade? Um deles disse: “Fiz tudo o que eu podia. Eu tenho filhos. Voltei para casa”. Você e eu contamos nosso dia de trabalho, mas e eles? Um perito conta sobre o seu trabalho para a família? Um policial que naquele mesmo dia já trocou tiro, já resgatou a pessoa que estava quase morrendo, já participou de uma situação traumática como essa, não.

À medida que contavam suas histórias, as pessoas das mesas ao redor iam saindo, porque aquele assunto não é um assunto para se ouvir. Eu sou antropóloga, estou observando. Quando percebo, estamos em uma ilha, todo mundo afastado. E eu disse que ninguém quer ouvir a nossa conversa. Aí os policiais mudaram, começaram a falar das viagens que tinham feito, do que eles iam programar para as férias.

Isso quer dizer o seguinte: eles só podem contar esses episódios para eles mesmos.

Esse lugar é um lugar interessante para entendermos a subjetividade e a solidão desse mundo que lida com o pior de nós, que é o mundo da segurança pública. Então, eu começo a escrever a partir desses dilemas, da construção dessa subjetividade, desse saber de rua e tudo o que me envolve, inclusive milicializando.

Quando defendi minha tese em 1999, o CNPq não tinha uma linha de pesquisa sobre segurança pública e polícia. Então, vou ao Congresso para reclamar que há um problema gritando na rua. Eu acompanhei as greves de polícia no Rio Grande do Sul, fui ao Congresso, à Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul, falar das questões de reforma da Polícia Civil e da Polícia Militar, avaliar alguns programas da época.

A polícia gaúcha me levou para todos os cantos do estado porque que ela queria aprender, mesmo sem dinheiro. Com eles, acompanhava o cotidiano da gestão da segurança pública na Região Metropolitana.

O nome da Brigada Militar vem desde a Guerra do Paraguai. Inclusive, o uniforme dos brigadianos é antigo, vem desde o Estado Novo. Essa polícia estava diretamente implicada na questão das fronteiras, nos processos possíveis de independência do Rio Grande do Sul naquela época. Então a construção da tradição brigadiana vem desse período após o fim da guerra.

Cada PM é uma PM em si. Então, para entender este mundo das polícias, precisei ir para dentro da Brigada [Militar no RS], para dentro da polícia do Rio de Janeiro, de São Paulo, de Minas Gerais, que são as maiores polícias do país, e também do Nordeste e do Centro-oeste, que tem histórias muito peculiares.

IHU – Falando sobre o Rio de Janeiro, o que as revelações sobre o assassinato de Marielle Franco e Anderson Gomes demonstram das relações entre o crime organizado e o poder instituído do Estado?

Jacqueline Muniz – O caso Marielle e Anderson, que foi um assassinato político, desde a sua ocorrência em 2018 é uma explicitação de como se governa com o crime no Rio de Janeiro e não contra ele, de como é o Estado que opera como uma grande imobiliária que arrenda territórios para grupos criminosos e que funciona como uma agência reguladora do crime. Ele constitui o crime, estabelecendo quem mata e quem pode morrer. Então, matar, deixar matar e deixar morrer é parte da gestão do Estado.

Insisto que a insegurança pública é um projeto de poder que tem dado certo. Vamos lembrar que o Rio de Janeiro, nos últimos 20 anos, teve seis governadores afastados, sendo que cinco foram presos, além de quatro chefes de polícia também presos; Rivaldo [Barbosa] não é o primeiro. Por isso, não a prisão e o envolvimento me surpreenderam, pois era óbvio que um crime como aquele só podia demorar esse tempo todo para ser resolvido – as idas e vindas e a lambança investigativa – porque envolvia autoridades.

A morte da Marielle foi uma elevada mercadoria política, extremamente valorizada. A morte dela custou muito caro, porque foi um presente para alguns, um pagamento de dívida para outros e produziu benefícios políticos. Nós precisamos compreender e envolver as autoridades. Como sabemos, este não é o primeiro assassinado político no Rio de Janeiro. Nos últimos anos, tivemos mais de 50 entre vereadores, outros políticos e associados.

Aqui temos uma economia política itinerante do crime e cuja lavanderia desse dinheiro é o crime organizado pelo Estado dentro de penitenciárias e casas parlamentares. Então, as lavanderias principais do dinheiro do crime são as carreiras eleitorais e alguns templos religiosos. Tenho insistido nisso a partir de trabalhos de pesquisa e pela minha experiência de ter sido gestora de segurança pública no Rio de Janeiro.

Fui coordenadora de justiça, segurança e cidadania da única governadora que não foi presa e da única secretária estadual que segue morando no mesmo lugar desde quando eu fazia doutorado, que compra o carro a prestação e vive do salário com matrícula pública. À época, fizemos a reforma da segurança pública no Rio, que em boa medida foi desmontada, como também o fizemos em Brasília. Brinca-se mal com os brinquedos de segurança pública que nós constituímos.

Um caso exemplar

Portanto, o caso de Marielle é revelador de como nunca existiu e nem existirá um estado paralelo, poder paralelo ou Estado ausente. O Estado negocia a sua presença, a sua ausência, terceiriza sua ausência. Eu venho chamando a atenção de que governo é quem controla o território, quem administra a população e quem regula os mercados, sejam eles mercados lícitos, sejam eles mercados ilícitos. É isso que os governos criminais fazem. Não é possível ter um governo criminal nem aqui nem em Miami, tampouco em Nova York, Londres ou Tokio sem um lastro político partidário. Logo, ele nasce dentro do estado. Não é que o crime tomou conta do Estado; ele é constituído por atores públicos.

O próprio Ronnie Lessa é um matador assim como Adriano [da Nóbrega], que foi assassinado, era um matador, ambos saídos da polícia com um lastro e uma blindagem política. Portanto, a impunidade é uma mercadoria política de elevado valor. Por isso eu digo que a assassinato da Marielle foi um presente. Neste caso, a família Bolsonaro [foi presenteada], porque naquele momento o Jair Bolsonaro patinava nas eleições.

Um circo intervencionista

Lembre-se que o chefe de polícia foi escolhido pelo general Richard, assinado pelo general Braga Netto, numa intervenção que eu chamei de publicitária, de um golpe publicitário construído por [Michel] Temer e Moreira Franco – mais um governador preso pouco tempo atrás e depois solto. Naquele momento, tentei desmontar o circo da intervenção militar, mostrando porque que ela era publicitária e buscava construir um candidato de direita sapatênis, uma vez que o Lula seguia ainda preso e em primeiro lugar nas pesquisas, e o Rio de Janeiro é o tambor do país. Esta é uma temática muito cara para o Estado, uma cidade que foi a capital da República, onde os processos de clientelização das polícias foi muito forte.

Aqui, de maneira mais deliberada, houve o aparelhamento das polícias, porque elas são dispositivos fundamentais para se manter projetos autoritários de poder e para se ganhar eleições. E tem dado certo. O medo é péssimo conselheiro. Diante do medo, abrimos mão das garantias individuais e coletivas em favor do primeiro “fortão” de ocasião, do primeiro maluco que nos proteja, que nos prometa proteção. O protetor de hoje será o tirano de amanhã.

Existe uma indústria da insegurança. É por isso que há o discurso do “tiro, porrada e bomba”, é por isso que existe uma guerra contra o crime. Faz-se a guerra contra o crime para vender a paz da propina, a paz do arrego, a paz do cemitério, para subir o preço do alvará, do arrendamento dos territórios, e para subir o preço de funcionamento da firma criminosa. Toda empresa criminosa, digamos assim, todo “CNPJ criminoso”, tem ao lado o Estado, seja o PCC [Primeiro Comando da Capital] em São Paulo, seja o CV [Comando Vermelho], o Terceiro Comando ou as milícias.

Milícias

Não é à toa que as milícias cresceram, porque elas levam vantagens operacionais, logísticas e políticas em relação aos domínios armados do tráfico. Tanto um quanto o outro são domínios armados que exercem um governo criminal em parceria, em consórcio. Ou se é sócio, ou se é funcionário, ou se é patrão. Por isso, fazer cortina de fumaça da guerra contra o crime oculta o chamado “esquema”.

Uma coisa que se aprende nos esquemas políticos, com os policiais corruptos, é que “vão-se os anéis, mas ficam-se os dedos”. O indivíduo precisa cair, mas não entregar o esquema.

Não é à toa também que no Rio de Janeiro nós temos facções, assim como temos grupos políticos rivais, desde o Estado Novo para cá. Curiosamente, assim como não há unidade de comando no crime, também não há unidade política. Em São Paulo, há uma unidade política em torno dos interesses de São Paulo e temos uma unidade política no crime. Então, não existe um estado paralelo, porque são vasos comunicantes.

Um novo Tratado de Tordesilhas

Não há como atravessar um elefante, corpos, órgãos humanos, cocaína ou o que quiser sem um carimbador audaz do Estado. Vai ter sempre um carimbador para atravessar fronteiras de um lugar para outro. Precisa ter conhecimento da máquina pública, precisa conhecer, ter conhecimento do funcionamento das burocracias, de modo que temos aqui vários grupos armados que disputam território, e é claro que estamos diante de um novo Tratado de Tordesilhas.

Quando houver a suposta “unificação”, nós teremos a paz de cemitério. Por isso, é preciso questionar quando as taxas de homicídio no país caem, como caíram no Brasil desde o governo Temer e na virada desde governo para o de Bolsonaro. Na época, todos comemoraram. O governo conservador diz que foi ele; o governo reacionário de Bolsonaro, repressivo, do vale-tudo das armas, diz que foi com ele. Isso também ocorreu no primeiro governo Lula.

A economia da matança e a síndrome do cabrito

O que as pessoas não percebem é que houve uma reengenharia e uma reorganização das disputas criminais armadas, muita matança – dia de muita matança, véspera de pouca matança. A matança tem rendimento: matar tem mérito no Brasil, e morrer tem merecimento. Quando se produz uma matança, reorganiza-se a economia criminosa e permitem-se vantagens. Isto possibilitará matar em escala, em chacinas, o que gera uma elevada rentabilidade na gestão do crime, sobretudo porque está matando uma mão de obra uberizada, precarizada.

É preciso chamar a atenção ao fato de que esta estrutura está dentro do Estado. Não é um Estado paralelo, não é um Estado ausente, porque negocia presença, ausência e a forma de estar. Quando observamos uma banalização das operações, que é o Estado da arte da ação repressiva, qualificada de polícia, sabemos que é uma cortina de espetáculo. Eu chamo de polícia da ostentação, polícia do espetáculo, síndrome do cabrito, ou seja, é um sobe e desce morro que não gera um controle sobre o território e nem sobre a população, mas que serve para subir o preço do alvará.

Taxa de extorsão

Em março de 2024, a população da zona oeste do Rio de Janeiro estava reclamando da inflação da taxa de extorsão, porque em anos eleitorais ela sobe, tanto aquela feita pelo tráfico quanto aquela feita pela milícia. Isso acontece porque é necessário fazer caixa dois e bancar as campanhas municipais, que são aquelas que mais diretamente se beneficiam da dinâmica da economia criminosa, das mercadorias políticas. Essas taxas são a luz, a regulação fundiária, toda a estrutura imobiliária – vemos isso no caso Marielle –, água, transporte, todos os bens e serviços essenciais. Quem administra esses bens, que são legais e se tornam ilegais como mercadorias políticas, são os grupos criminais.

Por exemplo, o Complexo de Israel, comandado por um criminoso que se diz pastor, por isso chamado “Complexo de Israel”, envolve um conjunto de comunidades em plena Avenida Brasil, numa área estratégica da cidade e que tem uma parceria com a milícia. Quem faz a segurança do crime é a milícia e não é uma narcomilícia, porque a milícia não trafica, porque não dá para acordar de manhã com uma vontade de virar traficante e ter fornecedores internacionais, porque paga com a vida; não é assim. Para traficar, é preciso ter fornecedores, carteiras de clientes; tem uma racionalidade.

No entanto, a milícia leva vantagem na logística, o que a permite ter uma chancela política, um lastro político, uma blindagem político-partidária. Então, operações são feitas para tirar o traficante e colocar o “seu” de estimação. Faz-se uma operação que, em muitas delas, a própria milícia vai na frente, porque a milícia vem de dentro, ela tem matrícula, são servidores. Eles só deixaram de estar na linha de frente, aparecendo de forma explícita e cínica, após a morte de Marielle, por conta do elevado grau de repercussão. Lembro que esta morte não interessava às milícias do Rio de Janeiro e muito menos ao crime, porque não é o modo deles de atuação; não é típico das milícias assinar um crime assim. Existem “milícias” e não “a” milícia. Essa morte foi muito desagradável para os setores da economia política criminosa depois de um grande holofote exigindo solução.

A elucidação do homicídio

Eu gostaria de chamar a atenção que um dos crimes mais fáceis de serem resolvidos é o homicídio, e isto vale para todas as polícias do mundo. Por que o homicídio é mais fácil de resolver comparativamente ao furto? Porque o furto não tem fatores de resolução, não tem precisão de hora, de data, de local, não sabe se perdeu ou se esqueceu. Então não tem como descrever a dinâmica da perda, diferente do assalto, em que se pode narrar o suspeito, lembrar o dia, a hora, ter testemunhas. Nada disso aparece no furto, o que faz com que a maior parte dos furtos não seja resolvido e não se gastem recursos investigativos em nenhuma polícia.

Já no homicídio há fatores de resolução, porque tem intencionalidade. O trabalho ostensivo da polícia, no máximo que consegue fazer, é adiar a morte, porque se há interesse em matar num dado lugar e hora e passa uma viatura da polícia, o que ocorre é um adiamento do crime, mas não cessa a vontade. Por isso, o caso da Marielle começou a ser preparado em 2017 e o assassinato só vai ser cometido no início da intervenção militar federal no Rio de Janeiro, em 2018. Há um conjunto de fatores de resolução: as relações vítima/agressor, testemunhas do local, hora, o modo de agir, tudo isso deixam assinaturas, rastros.

Aparelhamento da Polícia Civil

Vamos lembrar que esse caso viveu um desmando continuado intencional. Foram vários delegados, um delegado por ano. Havia uma briga dentro da Polícia Civil, aparelhada pelo seu chefe, que antes era diretor do departamento de homicídios. Precisava fazer parar, mas para fazer parar precisa entregar algumas miçangas. Uma coisa eu explico: quando olhamos para os policiais muito operacionais, que fazem muitas entregas de saldos operacionais, coloquem uma interrogação. Quando eles são medalhados, são uma espécie de unanimidade “avatar”, coloque uma interrogação. Quando olharmos para policiais que estão “canetados” por indisciplina no regulamento disciplinar da PM, também põe uma interrogação, porque eles podem ser os questionadores.

Muitos policiais entram em licença médica, têm tendência suicida, problemas psiquiátricos e nervosos porque não querem participar do esquema e fechar os olhos, algo que tem um custo muito alto para a saúde e segurança ocupacional. Pior que um policial mal pago, pior que um policial mal treinado, é um policial inseguro que precisa desconfiar dos seus pares. É por isso que nós temos o tiro amigo, que é matar o policial que não participa do esquema. Chama-se tiro amigo, mata-se o sujeito, ele sobe uma patente, deixa a família um pouco melhor.

Polícia ostentação

Há um kit de sucesso: tem que apreender armas 20 vezes, apreender droga várias vezes para retroalimentar, entregar estatística para os governantes e manter o esquema. Assim, são as operações policiais, que são caras, nobres e devem ser usadas, como foram usadas na tomada de reféns na rodoviária do Rio de Janeiro: é por isso que se paga uma SWAT: para sair uma vez na vida e produzir baixa zero.

No entanto, quando é banalizado, além de gerar escassez da capacidade investigativa, escassez da pronta resposta na emergência, escassez da ostensividade e produzir alta incapacidade de sustentação no tempo da repressão, o efeito repressivo necessário de polícia produz um espetáculo: polícia da ostentação, polícia do espetáculo, giroflex ligado, muito barulho, muita coreografia.

Por um lado, isto maximiza o medo, em vez de reduzir a insegurança. Por outro lado, tal situação mostra que se está fazendo algo e que estão produzindo um saldo operacional, frequentemente combinado, que engana o policial, porque o policial muitas vezes está indo para lá, arriscando a sua vida acreditando que aquilo é uma coisa, mas ele limpa o terreno para pôr o miliciano ou um traficante aliado.

Como essas alianças e esses acordos são estáveis, as operações servem para subir o preço da propina e dos alvarás. É como vimos nas disputas na zona Oeste, que culminaram na morte dos médicos, naquela chacina de médicos brancos no Rio de Janeiro. Quem resolveu o caso foi o crime. Mataram errado. No crime, não se pode matar errado.

Matou-se errado porque Adriano tinha sido assassinado naquela busca na Bahia. E os matadores profissionais, componentes do Escritório do Crime, estavam presos. E aí virou aquela lambança: em menos de 24 horas eles foram mortos. Não há possibilidade de erro, porque isso também produz holofotes e atrapalha a economia. Então não interessava às milícias essa publicidade negativa, pois obriga a um resultado. As brigas foram dentro da Polícia Civil, a polícia do bem, contra a polícia dos bens – a polícia dos bens é essa aparelhada. Muda-se a pá, como se mudou na intervenção, para manter as panelas e suas clientelas. Isso não é de agora.

As brigas são na polícia, porque é uma maneira de perder provas, indícios e de apagarem as marcas. No Ministério Público, houve um desmonte, com pois várias promotorias entraram e saíram, apesar do trabalho sério do GAECO e das promotoras que começaram. Eu as conheço todas. Houve uma bateção de cabeça, uma espécie de Torre de Babel onde cada um falava uma língua e, com isso, se adiava porque impactaria os resultados eleitorais.

GLO perneta

Precisamos lembrar que a intervenção militar trouxe de volta as Forças Armadas às ruas com uma Garantia da Lei e da Ordem – GLO perneta. Para que houve esse golpe publicitário, que não teve impacto nenhum? Foram gastos 600 milhões em uma farra de licitações. À época, eu concedi uma entrevista longa à TV Globo, de 11 minutos, não sendo interrompida – foi a única apneia que a Globo teve [risos] porque desmoralizei no dia seguinte aquela intervenção, dizendo que ela não era tudo aquilo que imaginávamos que seria. Eu conheço de perto e entendo essa realidade, sou pesquisadora, fui gestora desse negócio.

O que acontece em seguida? Qual é o discurso? O candidato do Temer é o candidato que está patinando: Henrique Meirelles não tinha condições de ganhar. Era preciso construir uma terceira via qualquer, de direita ou conservadora para fazer as reformas, as intervenções neoliberais que aconteceram. É necessário lembrar que nós estamos vindo de um golpe jurídico-policial, que eu cansei de avisar que aconteceria.

A (in)governabilidade

Nós tivemos dois grandes impeachments no Brasil: o primeiro no governo [Fernando] Collor, e o segundo no governo Dilma [Rousseff]. O que ninguém se perguntou é: quem eram os ministros na época, desde a redemocratização para cá, e quem eram os superintendentes das polícias federais? Na época do Temer, na época do Collor, foi o Romeu Tuma. O que estou tentando dizer é que nós sofremos de ingovernabilidade, tanto das espadas combatentes intencionais (Forças Armadas) quanto das espadas comedidas (polícias).

De alto a baixo, não temos dispositivos de governabilidade, não há ingerência de governabilidade, de controle. A primeira lição democrática para ter previsibilidade, estabilidade e regularidade no exercício do poder legal ilegítimo é o comando civil sobre as espadas: elas não podem virar autarquias sem tutela. É isto que explica o processo de milicialização. O nome “milícia” nós demos, mas esse fenômeno foi comum em todas as outras polícias em democracias que não passaram pelo controle civil.

É essa história de reformas da polícia de Nova York: a polícia era dividida entre herbívoros e carnívoros nos escândalos de corrupção. Vemos isso em vários filmes, como em “Gangues de Nova York”, que mostra o surgimento dessa polícia. E assim também vemos nas reformas da New Scotland Yard.

Na época do impeachment do Collor, o superintendente da Polícia Federal ficou anos encastelado numa pá com sua panela, constituído como uma autarquia sem tutela. Ele fez uso da Polícia Federal para os seus projetos particulares de poder.

Curiosamente, no golpe contra a presidente Dilma, um golpe jurídico-policial porque tem que ter condução coercitiva e lavajatismo, nós também tivemos um superintendente que ficou sete anos. O problema não é o tempo que dura, mas se não tem dispositivos de controle, responsabilização, accountability, luz do sol nos processos decisórios, a polícia pode ser tomada de assalto por grupeiros que vão atuar em função dos seus interesses particulares e cruzarem os braços diante da violação do devido processo. É isso que está em jogo: a ingovernabilidade.

Cheque em branco

Os mandatos de polícia no Brasil são um cheque em branco, uma procuração em aberto, que cada um preenche conforme suas conivências, convivências e conveniências. Ficamos dependendo do governante bom e do policial gente boa, vocacionado. Então, tem uma fragilização da institucionalidade. A institucionalidade das polícias foi ainda mais sabotada no governo Bolsonaro, que sempre odiou a polícia e as Forças Armadas porque ele quer indivíduos avulsos, com cabeça quente, coração aflito e dedo nervoso para melhor aparelhar e instrumentalizar. O que eles mais fizeram foi destruir por dentro as Forças Armadas, a sua institucionalidade – e é a mesma coisa com a Polícia Federal.

IHU – Como tudo isso se reflete no Rio de Janeiro em particular?

Jacqueline Muniz – As milícias têm várias origens. A milícia não abandonou o nome fantasia, mas estamos falando de governos policiais autônomos, coisa que aconteceu em outros lugares do mundo. É por isso que existem uns deveres de casa que são feitos em sistemas democráticos, para poder parar a brincadeira de autonomização predatória do poder de polícia.

O principal poder que uma sociedade livre, plural, democrática entrega ao Estado para administrá-lo em seu nome é o poder de dobrar vontades, é o poder de polícia, o poder coercitivo. Esse é o poder administrativo, que não só o policial de carreira tem, mas qualquer agente público, em função de regulação e fiscalizatória o detém. Não é só a Receita Federal, mas também outros atores têm esse poder. É um cheque em branco.

O poder de polícia no Brasil está definido no Código Tributário de 1966, do auge da ditadura, e é um pode-tudo contra a cidadania. Você está entendendo que o Estado pode tudo contra mim e você, e pode ser manipulado de forma particularizada, em vez de ser um poder de polícia da sociedade? Vai virando o poder da polícia, do policial, do grupeiro a serviço de nomeações dadas, porque precisa de matrícula, precisa de nomeação, que são dadas pelos políticos. Desde quando isso fica explícito para nós? Há muito tempo, mas se quisermos um marco, desde o Estado Novo. Piorou com um golpe militar e seguiu assim, como um cheque em branco.

Os governadores brincam de serem animadores de auditório. Eu chamo de “birutas de posto de gasolina”, cujos braços se movimentam conforme os ventos eleitorais do agravamento intencional do temor. Fabricam-se crises de segurança porque o medo é um péssimo conselheiro. Repito: diante do medo, abrimos mão das garantias individuais e coletivas em favor de quem prometa um milagre repressivo.

Golpe publicitário

Voltemos ao golpe publicitário. Na naquele momento, Temer está dizendo lá no Rio de Janeiro, que é onde tem os meios de comunicação nacionais (o principal sistema de comunicação do país está no Rio de Janeiro, as Organizações Globo): “Eu coloquei o exército na rua”, porque a população demandava autoridade. Como quem organiza o crime é o próprio Estado, a partir dos seus atores, dentro de estruturas do Judiciário, do Executivo e do Legislativo, tanto municipal quanto estadual, “está tudo dominado, não tem nada aqui”.

Tanto é assim que o Élcio [Queiroz] e o Zinho [Luís Antônio da Silva Braga, chefe da maior milícia do Brasil] só vão falar mediante “seguro de vida”, que é dado pela Polícia Federal, porque não pode ser a polícia local, porque não sabemos quem é sócio, parceiro ou traíra.

Tem esse golpe e, logo em seguida, a Marielle foi escolhida para ser a observadora da intervenção, que chamamos de golpe publicitário. Ali a lógica era mostrar “como eu faço a repressão e respondo à demanda de autoridade da população”. Qual foi a mensagem para o Bolsonaro que estava lá, patinando na lanterna [das eleições presidenciais de 2018], que ainda não tinha facada e Lula não havia sido preso para reduzir as nossas alternativas de voto. Isto é, teve voto, mas será que teve eleição livre com todas as alternativas ou é uma coisa assim, um arremedo de Maduro que vai excluindo os candidatos para a pessoa mesma fazer o somatório de votos? Tirar o Lula era já direcionar o resultado eleitoral em boa medida.

Por isso que é a cópia de um golpe publicitário. Porque colocaram as Forças Armadas, tem todo aquele salamaleque, aquele bando de “tartaruga ninja”, que não tem como fazer controle do território, do espaço urbano, que são os soldadinhos de chumbo. Todo aquele espetáculo que nada controla, mas que teve uma gastança licitatória, tanto que criaram um setor dedicado à licitação. Todo mundo comprou e gastou.

Qual era a mensagem? A minha repressão é melhor do que a sua. “Olha, Bolsonaro, todo o seu discurso nós sequestramos, porque fomos nós que colocamos a funcionar na rua”. Lembra que é [Walter] Braga Netto, então Comandante Militar do Leste, que foi escolhido como comandante da intervenção.

Um assassinato brutal no meio do caminho

Acontece que há a tragédia do assassinato de Marielle e de Anderson diante de um comando militar, uma intervenção militar na Secretaria de Segurança. Então quem escolhe Rivaldo são os generais. O Rio de Janeiro já vinha numa intervenção econômica, quer dizer, o governador não tinha mais “tinta na caneta”, era mais um que ia parar no xilindró. Com isso, ficam sem discurso.

O discurso repressivo é o discurso de blefe, a repressão por ela mesma é um fim em si mesmo, atende a demandas morais, mas ela é burra de partida, porque não tem estoque de repressão. Quando emprega, já se gastou, sobretudo em polícia, porque a polícia não é chuchu que dá em cerca. Então, se você entregou a polícia, você gerou uma escassez da capacidade dela de sustentar o próprio resultado. Por isso, é burro fazer operações sucessivas. Se elas não estão produzindo controles de território e população, portanto, libertando as pessoas dos domínios armados, as comunidades, as populações, a que elas servem? Para efeito publicitário, inclusive enganando o próprio policial e pondo ele em risco, sabotando a segurança e a saúde ocupacional dos policiais.

A morte da Marielle devolve o discurso bolsonarista, reacionário e de ultradireita, que vai dizer: “comigo vai funcionar melhor a repressão”. O sequestro do discurso repressivo, do “tiro, porrada e bomba”, que a intervenção produziu marqueteiramente, a morte da Marielle já de cara, ao menos de duas semanas, põe o questionamento: vocês não são capazes nem de prestar segurança e garantias a uma parlamentar que fazia o papel de fiscal da intervenção. Por isso eu digo que essa morte foi um brinde, muita gente ganhou.

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