27 Novembro 2025
Altivez do presidente contra tarifaço de Trump tem outro lado: proteção aos exportadores de bens primários e “livre-mercado” com outras potências, o que alarga nossa dependência. Em resposta ao patriotismo de fachada do neofascismo, é preciso outra política externa.
O artigo é de Jorge Almeida, Professor-associado de Ciência Política e dos programas de pós-graduação em Ciências Sociais e Ciência Política da UFBA, publicado por Outras Palavras, 25-11-2025.
Eis o artigo.
Abordamos aqui o discurso em “defesa da soberania nacional” no atual contexto das agressões da vertente trumpista do imperialismo dos EUA. Uma conjuntura nacional do Brasil muito ligada imediatamente à situação internacional. Mas, é mesmo soberania nacional? Ou uma subsoberania neoliberal? No final, falaremos também sobre a política externa na campanha de 2026.
O pano de fundo do que acontece nacionalmente no Brasil, desde o período colonial, sempre esteve ligada às relações internacionais e aos interesses mercantis europeus, particularmente de Portugal e, depois, aos EUA. Desde a invasão, conquista e colonização portuguesa, o Brasil esteve voltado para o mercado internacional e, portanto, vinculado à ordem internacional.
Nos anos mais recentes isso foi se tornando mais ligado à crise estrutural do capitalismo (que é uma crise múltipla) e, com a emergência chinesa, à bipolarização interimperialista entre as grandes potências capitalistas-imperialistas atuais.
Sempre que há uma crise na economia mundial isso repercute nacionalmente, como nós já vimos em diversos momentos a exemplo da simbiose entre crise econômica e pandemia em 2020/2021. Entretanto, há muito tempo o contexto internacional não interferia de modo tão imediato na nossa vida nacional e nas decisões que vêm sendo tomadas pelo governo, pela oposição e pelos movimentos na sociedade civil. Tanto aqueles tendencialmente à esquerda quanto à direita.
Por outro lado, recentemente tivemos um certo “renascimento” do discurso da luta de classes e da questão do imperialismo. Luta de classes e imperialismo que não haviam deixado de existir, é claro, mas estavam ausentes nos discursos da esquerda social liberal.
Recentemente, o presidente Lula da Silva mudou o seu discurso sobre algumas questões. Com seu instinto de sobrevivência e com a necessidade de sair das cordas, diante da ofensiva do centrão para tomar as rédeas do governo de uma vez (e não somente dividir o poder como já estava acontecendo), fez uma contraofensiva relativa.
Num primeiro momento, passou a fazer o discurso da “luta de classe”, com aquele conjunto de peças de comunicação colocando a contradição entre a riqueza de uns e a pobreza da maioria. E sobre os ricos que buscavam preservar e ampliar privilégios — evitando impostos como do IOF e também uma diminuição do imposto de renda para quem ganha até R$ 5.000 por mês.
Mesmo com diversos erros de conteúdo e abordagem, isso demonstrou uma mudança no comportamento do governo e teve resultados positivos na sua imagem, diante da situação negativa em que estava. E, em seguida, vieram as respostas sobre a questão da soberania nacional diante dos ataques de Donald Trump.
Melhora na correlação de forças e estimulo à luta popular
O discurso da “soberania” também ajudou a criar uma melhora no quadro político em geral, além de uma animação para a luta popular.
Por outro lado, comprovou que o problema do governo não estava apenas na sua comunicação, como dizia o governo e seus partidos de sustentação. Tampouco era verdade que não havia outra saída, além de recuar sempre, abrindo espaço para a direita chamada Centrão, no suposto sentido de evitar um avanço da extrema direita neofascista. Aquela tática ultra defensiva ficou comprovadamente derrotada. Enfim, houve uma melhora no contexto da disputa contra a extrema direita. Contudo, é uma situação ainda não está consolidada.
Mas a extrema direita e a direita em geral continuam fortes
Como mostram os resultados nas pesquisas, apesar da redução de sua capacidade de mobilização, o bolsonarismo e suas candidaturas continuam fortemente presentes na sociedade. E a rejeição ao governo Lula da Silva diminuiu, mas continua forte.
Portanto, Bolsonaro continua tendo um ativo apoio da maioria das lideranças da extrema direita e uma parte da direita tradicional, seja os mais ostensivos e claros, seja aqueles mais moderados ou discretos.
Mesmo quando fazem a defesa do indefensável (os ataques de Trump/EUA contra o Brasil), continuam fortes nas intenções de voto.
Ou seja, isso volta a ressaltar um padrão histórico de comportamento político dos brasileiros que combina um voto ou uma opção política com base numa racionalidade pragmática (que considera os elementos concretos da vida material), com uma forte presença do voto que tem como base um perfil de valores ideológicos.
Portanto, um tipo de apoio ou rejeição que extrapola uma avaliação de custo-benefício em relação à situação econômica e social e às respostas que o governo dá às questões mais imediatas da vida material.
Soberania nacional real e subsoberania
Por tudo isso, é preciso avaliar de uma maneira mais aprofundada o significado dessa chamada política “soberana” e o discurso de soberania que vem sendo feito pelo governo Lula e grande parte da “esquerda”.
Inclusive, está havendo uma certa mistificação em torno da figura de Lula da Silva, que vem sendo apresentado como uma espécie de super-homem anti-imperialista. E não é isso que está acontecendo.
Na verdade, a disputa que está sendo feita não é uma luta “anti-imperialista”, de plena “soberania”. Trata-se, na real, apenas de uma luta para manter uma subsoberania crônica do Brasil. Evitando uma genuflexão completa em relação a Trump, mas continuando a manter uma posição de submissão ao neoliberalismo e ao grande capital imperialista em geral, inclusive dos EUA.
O Brasil continua dependente e subordinado e o que as políticas do governo e das classes dominantes no Brasil em geral estão procurando fazer é manter uma certa diversificação da dependência. Uma diversificação dessa subsoberania. Procurando manter alguma margem de manobra política e negociação econômica com vistas a uma melhor lucratividade das frações principais do grande capital no Brasil.
Digamos assim: a defesa de uma certa multilateralidade da dependência e da subordinação não é efetivamente um rompimento com a posição de subordinação em relação ao grande capital internacional em geral.
E isso acontece porque as frações principais, tanto das classes como das elites hegemônicas brasileiras, querem escolher quais são as relações que permitem um melhor custo-benefício econômico e lucratividade para elas. Preferem um imperialismo na vertente Biden.
Já tínhamos visto algo parecido durante o governo Bolsonaro. Naquele caso, no que diz respeito às relações do Brasil com a China. O discurso inicial de Bolsonaro e do seu núcleo ideológico mais delirante era anti-China. Ao ponto de dizer que a vacina chinesa da Covid inoculava um chip comunista etc.
Mas isso acabou saindo da pauta daquele governo justamente porque as frações mais importantes do grande capital dentro do Brasil não queriam conflito, queriam a manutenção de boas relações com a China.
Portanto, precisamos ter consciência do que está acontecendo. Que o discurso predominante do governo e da grande maioria da “esquerda” e das lideranças em movimentos sociais não está sendo uma linha política efetivamente anti-imperialista. No conteúdo concreto, não se difere significativamente das lideranças liberais e da mídia liberal burguesa. É apenas um discurso de defesa da subsoberania. Em outras palavras, é pela continuidade da chamada globalização liberal imperialista do período anterior (vertente Biden). É isso que estão procurando preservar, diante das políticas protecionistas de Trump e dos ataques que ele vem perpetrando.
A situação também vem facilitando uma maior proximidade com a China, porque isso é a necessidade da própria classe dominante brasileira, das suas frações principais, que querem continuar garantindo a sua parte na reprodução do capital — aquela parte do valor que não é transferida às potências capitalistas.
Mas, no fundamental, o que vem sendo defendido é o livre-mercado capitalista, de tipo neoliberal, com todas as letras. Ou seja, o livre mercado da globalização imperialista. Que também é a política que interessa à China, que hoje é a potência capitalista-imperialista com melhores condições de capitalizar numa ordem mundial gerida pelas regras liberais da OMC.
Vejam bem. Isso é uma contradição bastante peculiar. Trava-se uma luta pela “soberania”, porém no sentido do direito soberano de um país manter relações de dependência neoliberal com as diversas potências imperialistas. De escolher com quem manter relações de dependência e subsoberania.
Porém, na verdade, isso não é um problema somente no Brasil ou da chamada esquerda brasileira. Basta olhar o que está sendo escrito e expressado por meio de lives, vídeos, artigos etc. pela “esquerda” em diversos países da América Latina e do mundo.
Contraditoriamente, aqueles que tanto falavam e combatiam o chamado “globalismo” estão, de fato, agora, defendendo a “soberania” para manter o “globalismo” e o livre-mercado.
E, do ponto de vista concreto, Trump é aquele que está aplicando políticas que tentam limitar, parcialmente, aquelas relações chamadas de globalismo, patrocinadas pelos próprios Estados Unidos! Ele toma uma série de medidas de protecionismo econômico, que tenta bloquear, ao menos parcialmente, essas relações da globalização imperialista, no interesse dos EUA. E não vai além de ser parcialmente, devido ao ponto de integração alcançado pelo capitalismo mundial.
Então, é preciso mudar não só o discurso, mas a própria linha política
Precisamos ter bastante clareza de que todo esse discurso de defesa das exportações brasileiras significa, no fundamental, a defesa da dependência da exportação de bens primários, por exemplo. Da manutenção de nossa posição de dependência primário-exportadora. O que está sendo negociado é mercado para o agronegócio, para mineração, para o extrativismo e para um conjunto de setores que sugam nossas riquezas e provocam a destruição ambiental. É “atração de capitais” imperialistas para superexplorar nossa força de trabalho. É mercado para mercadorias produzidas com base nessa superexploração e para a transferência de valor para os capitalistas estrangeiros. É “livre mercado” para aquilo que reproduz a nossa dependência e nossa subsoberania.
É preciso alterar esse tipo de política e discurso. Não podemos continuar apenas repetindo o que vem sendo feito. Portanto, é fundamental que a esquerda e os movimentos populares de modo geral incorporem um conjunto de outras bandeiras que são efetivamente da soberania nacional.
Por exemplo, a nacionalização e estatização das minas de terras raras e outros minerais estratégicos. Vamos aceitar a entrega de nossas terras raras para facilitar os negócios do Agro? E como fica a questão da dívida pública, que continua nos impondo ajustes fiscais e corte de verbas para a educação, saúde etc? Soberania, por exemplo, é reestatizar as empresas privatizadas, ou que empresas e recursos naturais que continuam sendo privatizados e desnacionalizados.
Como vamos nos posicionar diante de uma produção do agronegócio, que é predatória do meio ambiente brasileiro e das nossas condições de vida? Para atender interesses de empresas imperialistas, independente de suas origens nacionais?
Por isso, é importante dar ênfase na atual conjuntura, mais do que nunca, à luta anti-imperialista no seu sentido mais abrangente e profundo.
É também uma chance de resgatar os símbolos nacionais do Brasil, no sentido amplo do termo, das mãos do neofascismo e da extrema-direita. Mas, é preciso fazer isso indo além da defesa de uma subsoberania a serviço do “livre mercado” do grande capital em geral.
Pois, não é suficiente a linha de defesa da soberania que vem sendo desenvolvida pelo governo e pela maioria da chamada “esquerda”. Apesar do combate a Trump ser necessário e estar tendo algum efeito político contra a extrema-direita neofascista.
É preciso enfatizar as outras bandeiras que estão presentes em um programa popular, democrático e ecossocialista, especialmente aquelas vinculadas ao anti-imperialismo, contra os monopólios privados, o latifúndio do agronegócio moderno, as opressões em geral e em defesa do meio ambiente etc.
Evidentemente, é fundamental toda a unidade para combater as intervenções de um presidente de um país estrangeiro, como Donald Trump dos EUA, na nossa vida política concreta. Inclusive nos julgamentos do STF e em ações específicas do governo brasileiro, como as medidas tomadas por Trump contra o programa “Mais Médicos” e assim por diante.
Porque, no final das contas, a continuidade das coisas como estavam antes de Trump é a continuidade e o reforço da dependência, da desigualdade social em nosso país e da destruição ambiental. E, portanto, um tipo de política que acaba contribuindo, em termos de médio prazo, para reforçar a direita e a extrema direita e a hegemonia burguesa de modo geral dentro do nosso país e ao nível internacional.
As eleições de 2026, a política externa e a soberania nacional
Finalmente, essa é uma luta que vai continuar até 2026 e depois. Pois a extrema direita veio para demorar (porque se sustenta em valores ideológicos) e o seu enfrentamento será prolongado.
Porém, a questão da soberania pode ser um importante eixo de campanha para a esquerda em geral (não somente presidencial) em 2026. A tradição das disputas eleitorais no Brasil, especialmente presidenciais, é não dar importância à Política Externa do Brasil.
Na campanha de 2022, fizemos uma pesquisa bem abrangente dos programas de Política Externa defendidos por Lula da Silva e Jair Bolsonaro. O resultado, que pode ser visto no artigo que está no link a seguir, foi que na campanha pública (Horário Eleitoral Gratuito, debates e entrevistas nas TVs), o tema foi praticamente ausente nas duas candidaturas.
No momento em que direita e extrema direita tentam pautar a questão da violência e do crime organizado como eixo fundamental da disputa, uma defesa consistente da soberania nacional pode se tornar um tema central para a disputa política e ideológica e para desmoralizar o patriotismo de fachada do neofascismo. Mas, isso fica para um próximo artigo.
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