Partidos do chamado Centrão minam o terreno da democracia por dentro, com falas mais moderadas, e, por sua força legislativa, acabam ocupando ministérios em todos os governos sem qualquer projeto de política pública e sem entregar nada à sociedade
Findadas as eleições municipais, muito se discutiu: afinal, quem foi o maior vencedor, o bolsonarismo ou o Centrão? A resposta, claro está, ficou com a segunda opção. Mas disso decorre uma segunda pergunta: há diferenças entre o bolsonarismo e o centrão? A resposta é afirmativa.
“O bolsonarismo (…) é um movimento que também se expressa em alguns partidos, então é suprapartidário assim como o Centrão, mas o bolsonarismo é mais de extrema-direita. Isto é, não seriam partidos conservadores ou de centro, mas um movimento de extrema-direita – essa é a principal diferença”, explica a professora e pesquisadora Daniela Costanzo de Assis Pereira em entrevista por telefone ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU. “Outro ponto divergente é que o Centrão é mais fisiológico enquanto o bolsonarismo é mais ideológico. Do ponto de vista de linguagem e campanha, o Centrão é mais tradicional enquanto o bolsonarismo é mais disruptivo”, acrescenta.
Ainda sobre a vitória do Centrão no pleito, Daniela Costanzo ressalta. “Quem saiu mais vitorioso das eleições é o Centrão, sem dúvida. Porque o Centrão conseguiu crescer ainda mais – todos os partidos do Centrão cresceram nessa eleição: PSD, MDB, PP, União Brasil, PL e Republicanos cresceram muito em número de prefeituras conquistadas”, pontua.
Contudo, compreender a força do Centrão requer mais que observar os resultados eleitorais locais. Exige perceber a força de um conglomerado político que dá sustentação aos governos desde a ditadura militar. Mais ainda: essa conexão com um passado obtuso da história brasileira faz-se presente nas práticas políticas da atualidade.
“O Centrão já era uma ameaça à democracia por si só, claro que uma ameaça não explícita – já expliquei que é um fenômeno democrático. Ele apenas não entrega o que se espera em uma democracia”, avalia a pesquisadora. Ou seja, o Centrão é “bom” para garantir votos legislativos e com isso aprovar pautas sensíveis ao Executivo, mas ruim para governar.
Uma das suas características do Centrão “é não ter projetos de políticas públicas boas para o país. Ele pega uma pasta e não entrega. Essa não entrega nunca vai cair sobre o Centrão, mas sobre o governo. Isso estraga a democracia, pois não é possível entender por que os votos dos eleitores não surtem efeito, pois o governo não entrega o que deveria entregar. É o que chamo de baixa accountability. O Centrão consegue continuar reproduzindo suas candidaturas sem ter que responder à sociedade o que está fazendo”, complementa.
A junção entre o Centrão e o bolsonarismo forma a tempestade perfeita contra a democracia. “O bolsonarismo é uma ameaça muito maior à democracia porque querem, de fato, acabar com algumas instituições democráticas, portanto, ameaçam acabar com o regime democrático”, frisa. “Quando eles se alinham, com o Centrão apoiando o bolsonarismo, certamente essa ameaça fica mais forte. Isso é o que o Marcos Nobre tem chamado do 'Centrão sem medo', o Centrão que não tem medo de apoiar a extrema-direita e que acaba topando aventuras que podem ser antidemocráticas”, destaca Costanzo.
O horizonte de futuro do Centrão é o passado. “O Centrão tem um modelo de cidade que é triste, que não conversa com as inovações que temos no mundo. Isso é um rebaixamento político evidente. Esse é o horizonte político que o segundo turno aponta: houve a reafirmação da vitória do Centrão”, afirma.
Daniela Costanzo (Foto: Arquivo pessoal)
Daniela Costanzo de Assis Pereira é pesquisadora visitante no Centre de Recherches Internationales (CERI) da Sciences Po Paris e pós-doutoranda no projeto temático FAPESP "Crises da democracia: teoria crítica e diagnóstico do tempo presente" do Núcleo Direito e Democracia do Cebrap (NDD-Cebrap). É doutora (2022) e mestra (2017) em Ciência Política pela Universidade de São Paulo, bacharel e licenciada em Ciências Sociais pela mesma universidade (2013). É pesquisadora do CEBRAP desde 2015 e editora da área de Instituições Políticas, Políticas Públicas e Política Comparada da Revista Leviathan (USP), além de pesquisadora do grupo de pesquisa Pensamento e Política no Brasil (CNPq) da USP. Participa da rede de pesquisa for a New Political Economy (N2PE) da UC Berkeley. Atua como professora em cursos de métodos e técnicas de pesquisa quantitativas e qualitativas no Cebrap. É membra da coletiva Marxismo Feminista. Foi pesquisadora do CEPESP-FGV.
IHU – Até que ponto o bolsonarismo e o Centrão convergem e a partir de que ponto eles divergem?
Daniela Costanzo – Compreendo o Centrão como partidos conservadores e de centro no Brasil. Tem toda uma literatura da Ciência Política sobre isso, que olha para os partidos conservadores como aqueles que trazem para a democracia os interesses e resquícios do regime anterior. O Centrão foi justamente esse elo entre a democracia e a ditadura. Não é que o Centrão não é democrático, ele é uma forma democrática, mas traz interesses da ditadura militar para a democracia.
Por isso que entendo ele como conservador, na definição principalmente de dois cientistas políticos, que é Edward Gibson e Daniel Ziblatt. Também eles são um conjunto de parlamentares e partidos de centro posicional, por isso chamam-se Centrão. O centro posicional é definido na Ciência Política como aquele que prioriza estar no governo, independente da ideologia, por isso seria um partido de centro posicional.
O bolsonarismo, por sua vez, é um movimento que também se expressa em alguns partidos, então é suprapartidário assim como o Centrão, mas o bolsonarismo é mais de extrema-direita. Isto é, não seriam partidos conservadores ou de centro, mas um movimento de extrema-direita – essa é a principal diferença.
Outro ponto divergente é que o Centrão é mais fisiológico enquanto o bolsonarismo é mais ideológico. Do ponto de vista de linguagem e campanha, o Centrão é mais tradicional enquanto o bolsonarismo é mais disruptivo. O Centrão participa de todos os governos, independentemente da ideologia, já o bolsonarismo é oposição à esquerda. O Centrão não disputa abertamente os rumos ideológicos da sociedade. Apesar de ser conservador, ele consegue escapar disso e não apresenta os rumos da sociedade, enquanto o bolsonarismo disputa os rumos da sociedade abertamente.
Além disso, tem outra divergência muito importante: o Centrão não é contra a democracia explicitamente, pelo contrário, ele ganha muito com o regime democrático brasileiro. Porque são partidos e deputados que conseguem conhecer muito bem as regras, o funcionamento da nossa democracia e se aproveitam muito disso, têm muitos votos, recursos e são partidos organizados. Então, é um fenômeno de forma democrática muito forte. Já o bolsonarismo tem ações explícitas que ameaçam o regime democrático, como, por exemplo, não respeitar o resultado das eleições e ameaçar o STF.
As principais convergências aparecem quando eles têm algum objetivo político em comum. A principal agora é a união do bolsonarismo com o PL, o Valdemar da Costa Neto, que é o cacique do partido. Ambos querem eleger mais prefeitos e deputados, ter mais recursos. Assim, criam-se uma união e uma convergência fundadas em objetivos políticos. O outro ponto em que eles convergem é que ambos não querem combater o principal problema do Brasil, que é a desigualdade social, o que abrange a desigualdade de raça e de gênero. Esta é a principal convergência problemática entre eles.
Tanto o Centrão quanto o bolsonarismo pioram muito a qualidade da democracia. O Centrão não tem propostas substantivas para mudar a sociedade e cumprir as promessas da democracia e nem muita accountability. Ele faz política sem precisar responder a essa política. O bolsonarismo piora a qualidade da democracia porque é contra ela, chega a ameaçá-la.
IHU – Como as eleições municipais de 2024 nos ajudam a compreender essas nuanças?
Daniela Costanzo – As eleições municipais ajudam a compreender essas diferenças se olharmos candidato a candidato. Muitas vezes, o próprio bolsonarismo, por estar com esta aliança com o PL, tinha que apoiar candidatos que não eram bolsonaristas, mas do Centrão. Isso gera tensões que aparecem muito.
Se pegarmos o caso de São Paulo, que é um exemplo bastante louco e que não segue muito alguns padrões esperados, é possível ver como ocorre este casamento do Centrão com o bolsonarismo, mas também podemos ver suas diferenças. Nas eleições de São Paulo, houve o candidato que formalmente era apoiado pelo bolsonarismo, Ricardo Nunes, que é um candidato típico do Centrão. Ele sabe manejar muito bem as máquinas eleitorais e partidárias, é do MDB, o principal partido do Centrão, que era vice-presidente e acabou assumindo [a Presidência da República em 2016 com Michel Temer] e faz uma política de tipo tradicional na linguagem. Por causa da aliança do PL com Bolsonaro, esse candidato precisou ser apoiado por Bolsonaro, e ele não queria ser apoiado por Bolsonaro, assim como o bolsonarismo não queria apoiar ele como candidato, porque sabia que sua base não ficaria satisfeita com um político tão tradicional do Centrão e que não fosse tão radical quanto o bolsonarismo espera.
Dessa aliança apareceu mais um candidato, esse sim bolsonarista do jeito que a base de Bolsonaro espera: na linguagem e nos temas defendidos. Tanto é que o local em que ele teve mais votos é uma região com uma base bolsonarista, principalmente a Zona Leste, berço típico do bolsonarismo em São Paulo e que antes era malufista. Isso mostra que o candidato bolsonarista real era o Pablo Marçal e não o Ricardo Nunes. Mas o Bolsonaro, por causa da aliança com o PL, precisou apoiar o Nunes, o que gerou diversos ruídos durante a campanha e houve até momentos em que o ex-presidente flertou com o Marçal e, caso chegasse ao segundo turno, ele seria o candidato do Bolsonaro. No fim, Nunes ficou como candidato do Bolsonaro, mas ele não é o candidato do bolsonarismo. Essa nuance de São Paulo nos ajuda a compreender a diferença.
IHU – Quem saiu mais vitorioso nestas eleições, o bolsonarismo ou o Centrão?
Daniela Costanzo – Quem saiu mais vitorioso das eleições é o Centrão, sem dúvida. O Centrão conseguiu crescer ainda mais; todos os partidos do Centrão cresceram nessa eleição: PSD, MDB, PP, União Brasil, PL e Republicanos cresceram em número de prefeituras. E o PL também cresceu muito por causa do bolsonarismo, pois o ex-presidente deu força para o PL crescer, o que significa também força para o Centrão crescer. Aliás, não necessariamente esses políticos eleitos do PL são bolsonaristas. Dentro do peito do PL habitam dois corações: o Centrão e o bolsonarismo. O bolsonarismo não se mostrou vitorioso nessas eleições, foi mais uma vitória da política tradicional.
IHU – O Centrão alinhado ao bolsonarismo ameaça à democracia?
Daniela Costanzo – O Centrão já era uma ameaça à democracia por si só, claro que uma ameaça não explícita – já expliquei que é um fenômeno democrático. Ele apenas não entrega o que se espera em uma democracia. Por exemplo, o Centrão domina as cadeiras do Legislativo e com isso consegue pressionar o presidente para entregar mais cargos e verbas para o Centrão. Uma das faces disso é a entrega de pastas, mistérios. Portanto, faz parte do presidencialismo de coalizão brasileiro o presidente dividir com a coalizão os ministérios. Quando acontece com o Centrão, que está em todos os governos porque eles têm muitas cadeiras Congresso, o Centrão pega uma pasta sem ter projetos para apresentar. Porque uma das suas características é não ter projetos de políticas públicas boas para o país. Ele pega uma pasta e não entrega.
Essa não entrega nunca vai cair sobre o Centrão, mas sobre o governo, que tradicionalmente nunca é do Centrão – pensando como o Centrão funcionava antes do Bolsonaro virar presidente. Isso estraga a democracia, pois não é possível entender por que os votos dos eleitores não surtem efeito, pois o governo não entrega o que deveria entregar. É o que chamo de baixa accountability. O Centrão consegue continuar reproduzindo suas candidaturas sem precisar responder à sociedade o que está fazendo. Isso, por si só, já é uma ameaça à democracia, porque, ao longo do tempo, percebe-se que a democracia não está entregando o que os eleitores, como cidadãos, esperariam que ela entregasse.
O bolsonarismo é uma ameaça muito maior à democracia porque querem, de fato, acabar com algumas instituições democráticas, portanto, ameaçam acabar com o regime democrático. Seja não aceitando o resultado das eleições, seja preparando um golpe militar, ameaçando dar um golpe militar ou outro tipo de ação contra a democracia e suas instituições. Isto se configura como uma ameaça direta à democracia.
Quando eles se alinham, com o Centrão apoiando o bolsonarismo, certamente essa ameaça fica mais forte. Isso é o que o Marcos Nobre chama de o “Centrão sem medo”, o Centrão que não tem medo de apoiar a extrema-direita e que acaba topando aventuras que podem ser antidemocráticas. O Centrão alinhado ao bolsonarismo dá essa força que o bolsonarismo precisa para poder ameaçar a democracia. Por isso, quando estão alinhados este grupo é mais perigoso.
IHU – Quais são as principais derrotas e vitórias do bolsonarismo nesta eleição?
Daniela Costanzo – As principais derrotas do bolsonarismo foram em Goiânia, Fortaleza, Belo Horizonte e Manaus. Em Goiânia, o candidato bolsonarista Fred Rodrigues perdeu para o Sandro Mabel, do União Brasil. Foi uma derrota em que o Bolsonaro esteve bastante empenhado para evitar, com um candidato que era bastante bolsonarista.
A outra grande derrota foi em Fortaleza, com André Fernandes, que era um candidato do bolsonarismo muito forte e ideológico, já deputado e que perdeu para Evandro Leitão (PT), em uma eleição bem acirrada. A outra derrota é do capitão Alberto Neto, de Manaus, que também é um bolsonarista e perdeu para Davi Almeida, do Avante. Além dessas, houve a derrota do Bruno Engler, em Belo Horizonte. Mas houve outras perdas relevantes, como em Belém, no Pará, onde o delegado Éder Mauro perdeu para Igor Normando, do MDB. Também em Palmas, Tocantins, onde o Janad Valcari perdeu para o Siqueira Campos, do Podemos.
Essas principais derrotas do bolsonarismo foram quase todas para o Centrão mais tradicional, à exceção de Fortaleza, que foi para o PT.
As grandes vitórias foram em Cuiabá, onde Abilio Brunini ganhou de Lúdio Cabral, do PT, que estava aparecendo nas pesquisas às vezes à frente e às vezes empatado, mas o bolsonarismo acabou levando. Eu considero São Paulo uma grande vitória do bolsonarismo. Apesar de Ricardo Nunes ser um candidato do MDB e apesar desta aliança com o Bolsonaro – não exatamente com o bolsonarismo – ter sido difícil, o ex-presidente entrou na campanha, deu uma guinada em vários momentos e o vice, Mello Araújo, é muito bolsonarista e um amigo próximo do Bolsonaro.
Quando o ex-presidente perdeu as eleições para a Presidência, ele era um dos únicos que visitava Bolsonaro e, além disso, é muito violento. Mello Araújo é conhecido por ser muito violento na polícia. É uma grande vitória do bolsonarismo. Agora, podemos colocar essa vitória do bolsonarismo em uma vertente que está concentrada no governador Tarcísio de Freitas, que fez essa aliança já pensando em 2026 e costurou com todos os partidos que eram importantes para lançar essa candidatura.
IHU – Em 2024, o PT conquistou 69 prefeituras a mais que em 2020. É um avanço, mas basta para reverter o que seria uma hegemonização da direita no Brasil?
Daniela Costanzo – Se olharmos o histórico, em 2008 o partido tinha 550 prefeituras, passou para 635 em 2012. Em 2016, quando houve o maior baque por conta da Operação Lava Jato e do impeachment [Dilma Rousseff], o PT conquistou 254 prefeituras – foi a grande queda. Em 2020, caiu para 182 e agora, em 2024, recuperou um pouco para 248, mas não chegou nem no patamar de 2016.
Não dá para tomarmos essas eleições como uma eleição que vai prever os resultados de 2026 ou determinar a ideologia dos brasileiros. Não é isso que essa eleição quer dizer. Ela foi marcada pela alta taxa de reeleição e pelo sucesso do Centrão. Isso significa que há uma certa acomodação com a política, porque as pessoas estão simplesmente aceitando os candidatos do Centrão, que não oferecem nenhuma alternativa ideológica. Agora, isso é um pouco característico das eleições municipais, pois temos candidatos que conseguem mais recursos, principalmente os do Centrão, e eles conseguem entregar mais obras. Faz parte do jogo o prefeito ter essa aprovação por conseguir entregar obras, ter mais recursos.
Quando pegamos o desempenho do PT em 2008-2012, era o auge do lulismo no governo federal, o que foi muito capitalizado para as prefeituras, pois víamos os candidatos usando o sucesso do governo para defender suas candidaturas. O sucesso da instância federal faz o partido ficar mais forte, o que não observamos nessas eleições. O governo federal está indo bem na economia, mas ninguém mencionou isso nas campanhas dos candidatos do PT; o próprio governo federal não participou muito das campanhas. Não é só que o PT tentou recuperar essas prefeituras e não conseguiu, parece que não foi uma tentativa, não houve muito investimento nas campanhas municipais.
Não sei se por uma avaliação que não era possível disputar ou porque o cenário era ruim mesmo por conta das emendas, porque o Centrão tinha muitas forças nas eleições municipais – tudo dá a entender que por conta das emendas que ele conseguiu do Orçamento Secreto e Emendas Pix, desde que tivemos o orçamento impositivo. Algumas matérias da Folha e do Globo fizeram essas contas e deram a entender que há essa relação, mas precisamos estudar mais para saber ao certo se existe uma relação entre as emendas enviadas pelos deputados e quem conseguiu se eleger.
É também interessante observar que tivemos menos concorrência nessas eleições. Havia menos candidatos sendo lançados, menos partidos concorrendo e muitos candidatos únicos, o que influencia na disputa e na alta taxa de reeleição. Quando temos uma acomodação dos partidos, uma reeleição, normalmente isso favorece o Centrão, não a esquerda, que tem mais dificuldade de conseguir eleger ou reeleger, ainda mais considerando as eleições municipais, em que a maioria dos eleitores estão no interior e a maior parte das cidades é pequena.
Então, isso não favorece os partidos de esquerda, que não conseguem conquistar as prefeituras do interior. É um pouco complexa essa situação do PT, e não basta para reverter a hegemonização da direita, mas também não é que as eleições municipais revelam alguma coisa sobre isso. Elas são só um resultado de diversos outros fatores que operaram nesses anos.
IHU – Por outro lado, por que as esquerdas parecem ter perdido o fôlego na disputa eleitoral local? Isso aponta algo para o futuro? O quê?
Daniela Costanzo – Precisamos ver exatamente onde as esquerdas perderam fôlego. No Nordeste, elas foram um pouco melhor do que noutras regiões, somando os votos do PT e do PSB. Agora, no geral, podemos dizer que a esquerda perdeu fôlego na disputa eleitoral local. O que podemos dizer é que o Brasil passa por mudanças demográficas importantes. Temos o que o IBGE apontou como um crescimento do Centro-Oeste e uma diminuição da tendência de metropolização. No geral, isso conta muito mal para a esquerda no Brasil e isso é histórico. Já observamos esse movimento em outros momentos, por exemplo quando há o crescimento das pessoas em grandes cidades, há um fortalecimento do PT, que é um partido que nasceu de uma configuração urbana: operários urbanos no ABC Paulista. Isso tudo dificulta o crescimento da esquerda e é algo para pensar para o futuro: a esquerda precisa penetrar no Centro-Oeste e nos interiores.
Este é um desafio para a esquerda, justamente porque normalmente os interiores são mais conservadores, têm uma pauta muito ligada ao agronegócio, as pessoas são empregadas direita ou indiretamente no agronegócio. Não tem a formação de uma consciência que leve a votar na esquerda, porque normalmente não há diversos aspectos que encontramos na cidade grande e que leva as pessoas a protestarem, a quererem mudanças e a votar na esquerda. Exemplos disso são o transporte público e outras coisas que não há no interior, onde as pessoas estão bem mais dispersas pensando no trabalho do campo. Existe um espaço enorme para a esquerda explorar no interior, que é a questão das mudanças climáticas. Vemos que quando aparecem candidaturas relevantes na esquerda no interior e no Centro-Oeste, elas são muito ligadas a esse aspecto.
IHU – Do ponto de vista ideológico, quais as principais diferenças das eleições de 2022 e 2024? Houve mais ou menos polarização?
Daniela Costanzo – Do ponto de vista ideológico, comparando essas duas eleições, a eleição de 2024 foi uma eleição da acomodação, enquanto a eleição de 2022 foi mais disputada no nível ideológico. Afinal, podemos observar que a maioria desses candidatos mais ideológicos acabaram perdendo para o Centrão, com exceção do Abílio, olhando principalmente para as capitais. Claro que no interior temos outras configurações e precisaríamos olhar com mais cuidado.
Vendo os partidos que ganharam também, temos o Centrão como grande vitorioso, algo que não acontece na eleição federal, onde normalmente há uma polarização entre esquerda e direita ou esquerda e extrema-direita, e o Centrão fica no meio da disputa porque vai participar do governo, qualquer que seja o resultado. Tem essa diferença forte entre as eleições de 2022 e 2024, o que mostra que as eleições municipais foram como o esperado. Contudo, elas foram eleições ainda mais da acomodação por conta das emendas. Então, foi uma eleição do sistema, da política tradicional.
IHU – É possível ver João Campos, eleito em primeiro turno no Recife, como um político progressista? Ele seria uma alternativa para a esquerda?
Daniela Costanzo – Sim, com certeza o João Campos é uma alternativa para a esquerda e faz parte do campo progressista. Ele é do PSB, que é um partido que se convencionou a ser chamado de progressista e, curiosamente, ele traz o legado do pai [Eduardo Campos], que talvez devesse ter sido o candidato do PT em 2014, quando sofreu o acidente ou até depois disso, se estivesse vivo. Vimos o Lula fazendo um mea culpa, reconhecendo que talvez ele devesse ter sido o candidato do campo, mas naquele momento tinha a Dilma, que foi reeleita, mas o Eduardo Campos aparecia como uma alternativa de conciliação – o Eduardo Campos vem nesse âmbito.
É possível dizer que ele é menos à esquerda do que os candidatos do PT costumam ser, que seria alguém do campo, mas que faz muito bem alianças, então penso que seria uma ida à centro-esquerda (sendo bem generosa, risos). Mas ele é um político importante para o campo, que não dá para ser desprezado, faz muitas coisas em Recife, tem um amplo reconhecimento e uma força eleitoral enorme. Portanto, tem muito futuro no campo progressista e não dá para a esquerda ignorar e com certeza será uma alternativa.
IHU – Olhando para o futuro, o que as eleições municipais sinalizam quanto às próximas eleições presidenciais?
Daniela Costanzo – Tem vários aspectos nisso. As eleições de agora não determinam nada sobre as próximas eleições, mas elas colocam algumas coisas em jogo. A primeira é que o Centrão sai mais fortalecido ainda e o governo sai com essa questão de como continuar com a aliança com o Centrão, de como aprovar as matérias no Congresso, que é a maior dificuldade atual. Tudo isso impacta nas eleições. Veremos também a eleição para a presidência da Câmara.
Outro ponto é a questão das candidaturas. A opção Tarcísio sai fortalecida, porque o projeto dele era fazer a união do Centrão com a extrema-direita na cidade de São Paulo. Como Bolsonaro está inelegível, ele aparece como uma alternativa para esse campo que é o Centrão e a extrema-direita, mas teremos que ver ainda o que vai acontecer. Se Tarcísio for para perder, contra o Lula, por exemplo, talvez permaneça como governador de São Paulo. Ainda precisamos ver o que vai ocorrer, mas esses são os dois principais impactos das eleições: o Centrão sai fortalecido e temos o projeto do Tarcísio também fortalecido.
IHU – Qual o peso da eleição municipal de São Paulo no contexto nacional? Até que ponto ela pode influenciar o influxo político nos próximos dois anos, seja para o lado conservador, seja para o lado progressista?
Daniela Costanzo – Essa eleição de São Paulo é bem importante, primeiro porque tem o MDB como cabeça de chapa, fazendo uma aliança com a extrema-direita. Portanto, é uma “experiência” que pode se repetir em outros âmbitos. Em segundo lugar, porque o projeto do Tarcísio deu certo, como falei antes. O Tarcísio tinha esse projeto e isso envolvia a candidatura dele provavelmente. O terceiro é que o Lula deve ir atrás do MDB para pensar em uma aliança para as próximas eleições. Seriam esses os três impactos das eleições municipais no contexto nacional. Ela influencia justamente porque teve essa aliança, teve um eleitorado muito grande e porque é uma capital que normalmente lança candidatos que depois podem ter alguma projeção nacional.
Para o lado conservador, também é interessante observar, porque ainda não sabemos o resultado dessa aliança. Pode ser que essa aliança, com o Nunes, fortaleça o campo conservador, a depender de quais forem os movimentos a partir de agora, porque temos alguns partidos e candidatos da direita para poder fazer aliança e ainda não sabemos como será. Pensando na Frente Ampla formada pelo Lula para disputar as eleições de 2022, imagino que esse campo será disputado para entrar também na Frente Ampla nas próximas eleições. Ela pode influenciar para os dois lados. No momento, ela está mais pendente ao campo conservador e da direita, mas, a depender dos acordos feitos, podemos ver alguma mudança.
IHU – O que os resultados do segundo turno apontam sobre o horizonte político nacional?
Daniela Costanzo – Os resultados do segundo turno apontam para um horizonte político ruim para o Brasil. O principal problema nessas eleições foi a alta taxa de rejeição ligada ao sucesso do Centrão. Houve essa questão das emendas, que podem ter fortalecido ainda mais o campo do Centrão. Mas o fato é que quem saiu vitorioso foi este setor por uma comodidade política. Então, há um fortalecimento desse grupo porque ele consegue sempre vencer, mandar recursos e fazer a ponte entre os deputados e os municípios. Isto é ruim para o país, pois não temos uma concorrência importante nas prefeituras, o que é fundamental para ter uma democracia viva, alternativas e até para tocar as mudanças de que o país precisa.
A reeleição do Centrão significa que não teremos políticas públicas boas em um momento em que precisamos. Vivemos uma crise climática intensa e os prefeitos deveriam estar fazendo algo a respeito. Quando vemos o Centrão sendo reeleito, sabemos que não é isso que está fazendo, porque ele não faz nada que seja necessário ou muito importante para a sociedade, para o momento atual ou para os desafios políticos.
O Centrão tem um modelo de cidade que é triste, que não conversa com as inovações que temos no mundo. Normalmente, são cidades centradas no carro, que não pensam em aproximar o trabalho da moradia e que não têm uma política social forte, mas que tem uma política mais tradicional de construir pontes e recapar ruas. Isso é um rebaixamento político evidente. Este é o horizonte político que o segundo turno aponta: houve a reafirmação da vitória do Centrão.
Claro que em vários lugares não houve a vitória da extrema-direita, o que poderia ser visto como algo bom, mas no fundo é que essa política do Centrão, de sistematicamente não fazer as mudanças necessárias, de fazer uma política de governismo que não coloca as políticas necessárias para serem discutidas, corrói a nossa democracia. Porque as pessoas não conseguem ver as mudanças necessárias, não existe uma relação do voto com resultados importantes e o Brasil segue com essas prefeituras sendo cabides, vítimas de coronelismo e clientelismo, tudo o que conhecemos e sabemos que existe, mas que cada vez é menos falado, porque viram palavrões políticos, mas que existem. O Centrão reproduz isso.
Essa vitória é muito ruim para o Brasil em geral, pois, além de ser uma vitória do conservadorismo, o Centrão é um grupo informal de partidos conservadores. Precisamos de pessoas engajadas, de prefeitos fazendo ações, principalmente voltadas para as mudanças climáticas, cuidando das cidades, que carecem de serviços melhores, de transporte público, com segurança e nada disso é discutido ou levado a sério nas eleições. É um cenário que mostra um horizonte político nacional muito ruim.
IHU – A senhora poderia avaliar o significado eleitoral da ascensão de Natália Bonavides?
Daniela Costanzo – A ascensão da Natália Bonavides é uma das boas notícias das eleições de 2024. É uma pena que tenha perdido, porque é uma política muito interessante e jovem. Ela já foi eleita deputada federal duas vezes e, na última eleição, foi a mais votada do Rio Grande do Norte. É um superquadro que tende a crescer mais ainda. Ela é muito ligada aos movimentos sociais e veio do movimento estudantil. Portanto, é um quadro interessante, que infelizmente não conseguiu ser eleita, porque poderia ter uma projeção nacional ainda maior, mas também dentro do PT. Agora, é ver o que vai acontecer nos próximos capítulos com ela.