A maior ameaça vem da Europa. Artigo de José Luís Fiori

Foto: Zelch Csaba | Pexels

Mais Lidos

  • Cristo Rei ou Cristo servidor? Comentário de Adroaldo Palaoro

    LER MAIS
  • A festa apócrifa da “Apresentação de Maria no Templo”. Mãe corredentora? E Zumbi dos Palmares? Artigo de Frei Jacir de Freitas Faria

    LER MAIS
  • Um amor imerecido nos salvará. Artigo de Enzo Bianchi

    LER MAIS

Revista ihu on-line

O veneno automático e infinito do ódio e suas atualizações no século XXI

Edição: 557

Leia mais

Um caleidoscópio chamado Rio Grande do Sul

Edição: 556

Leia mais

Entre códigos e consciência: desafios da IA

Edição: 555

Leia mais

21 Novembro 2025

"Muitos preferem acreditar que se trate de um blefe russo, mas todas as evidências indicam que os testes ocorreram e foram bem-sucedidos, e que hoje a assimetria do poder de fogo entre a OTAN e a Rússia é de tal ordem que um erro de cálculo dos europeus poderá significar o desaparecimento da própria Europa, com efeitos catastróficos para o 'resto da humanidade'. E a obsessão belicista dos atuais governantes europeus sugere que eles estão dispostos a 'pagar para ver'.", escreve José Luís Fiori, professor emérito da UFRJ, em artigo encaminhado ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU.

O artigo é publicado originalmente no Boletim de Conjuntura n° 14, de setembro de 2025 do Observatório Internacional do Século XXI, do Nubea, UFRJ.

Eis o artigo. 

No dia 10 de setembro de 2025, a presidente da Comissão Europeia, Ursula van der Leyen, em seu discurso sobre o “estado da união” frente ao Parlamento Europeu, declarou que a “Europa está numa guerra”. E completou seu argumento dizendo que “as linhas de batalha por uma nova ordem mundial baseada no poder estão sendo traçadas, e a Europa precisa lutar por seus valores e pelo direito de escolher o seu destino”.1 E neste momento, este é o pensamento dominante da elite política e da grande imprensa europeia, conservadora e social-democrata. Todos consideram que a Rússia é uma ameaça iminente, e que a Europa deve se preparar para uma guerra inevitável no prazo máximo de uns 5 a 10 anos, e deve fazê-lo com suas próprias forças, sem contar com o apoio dos EUA. Muitos consideram que esta é a grande oportunidade, e talvez o único caminho possível para que a Europa possa recuperar sua posição perdida dentro do Sistema Internacional.

Essa visão dos europeus explica sua estratégia de prolongação da guerra na Ucrânia por um, dois e até cinco anos, tempo necessário para que a Europa possa se rearmar e se autonomizar do apoio militar norte-americano para enfrentar a guerra que a EU e a OTAN estão prevendo. O problema imediato, entretanto, é que se não houver uma negociação de paz, a Rússia deve vencer a guerra no campo de batalha em muito menos tempo do que os europeus estão programando. Além disso, segundo a opinião da maioria dos analistas militares, a Europa seguirá dependendo, por muitos anos, de alguns “suportes críticos” fornecidos pelos EUA, como é o caso da inteligência por satélites, dos foguetes de longo alcance, dos sistemas de defesa aérea, do transporte pesado e dos sistemas digitais que permitem a utilização simultânea de vários armamentos. Seriam necessários pelo menos dez anos de esforço concentrado da parte dos europeus, sobretudo se tivermos em conta que a França e a Inglaterra se encontram sem recursos e em situação quase falimentar, enquanto a economia alemã está estagnada há cinco anos e enfrenta um acelerado processo de desindustrialização.

Neste momento, o panorama europeu é sombrio e existe no ar um maldisfarçado sentimento de derrota da União Europeia e da OTAN. No campo de batalha, as forças ucranianas estão sendo derrotadas de maneira implacável pelas tropas russas, apesar do enorme apoio financeiro, logístico e humano, e de todo o armamento de última geração que os europeus e a OTAN seguem fornecendo aos ucranianos. Soma-se a este sentimento de derrota o insucesso imediato do ataque econômico massivo arquitetado pelos EUA e pelos europeus, visando quebrar a espinha dorsal da economia russa e sua capacidade de seguir financiando sua guerra contra a Ucrânia.

Além disso, a União Europeia aparece dividida internamente, e já não existe mais consenso com relação à própria Guerra da Ucrânia, tendo em vista a posição dissidente da Hungria, que vem conquistando novos apoios nas eleições recentes realizadas na Eslováquia e na República Checa, além da oposição reticente da Sérvia e da própria Turquia dentro da OTAN. Apesar da intervenção cada vez explícita e direta de Bruxelas nas eleições dos países-membros, em favor de seus aliados locais partidários do belicismo de Bruxelas. Além disso, multiplicam-se as divergências internas com relação a outros assuntos, como no caso da apropriação europeia das reservas russas depositadas em bancos europeus, ou mesmo com relação ao novo “orçamento de guerra” proposto por Bruxelas.

Para driblar essas dissidências dentro da própria OTAN (sobretudo depois da reaproximação entre EUA e Rússia), a Inglaterra propôs a criação da “coalizão da boa vontade”, reunindo apenas os governos mais belicistas, e em particular a própria Inglaterra, a França e a Alemanha. Esta mesma coalizão, entretanto, aparece dividida e muito fraca, graças à oposição interna de suas populações. O primeiro-ministro inglês, Keir Starmer (que lidera essa “coalizão da boa vontade”), tem hoje apenas 13% de apoio da opinião pública inglesa, enquanto seu sócio direto, Emmanuel Macron, está com 14% e preside um país que está praticamente sem governo. Por outro lado, o primeiro-ministro alemão, Friedrich Merz, que tomou posse faz pouco tempo, tem apenas 20% de apoio, e sua coalizão de governo com os social-democratas está empatada nas pesquisas eleitorais com a AfD, partido de oposição de direita contrário à continuação da guerra, favorável a uma negociação com a Rússia e de oposição à linha atual da Comissão Europeia. E por fim, a Polônia também está dividida e rachada, com um presidente que não apoia a posição europeísta e belicista de seu primeiro-ministro.

De forma mais ampla, o que se constata é um sentimento generalizado de insatisfação das populações com relação aos seus governantes e às próprias instituições políticas europeias. Um quadro agravado pelo fato de que a Europa esteja hoje nas mãos de uma geração de dirigentes políticos extremamente medíocres, incapazes de formular alguma ideia ou algum projeto novo para o Velho Continente, que não seja sua estratégia de volta à guerra, prática mais antiga e permanente dos europeus. Destacando-se o chanceler alemão por sua completa falta de carisma, sua ignorância internacional e sua absoluta incapacidade diplomática, num momento de tamanha gravidade, e dada a importância central da Alemanha no tabuleiro europeu. Por isso mesmo, hoje nenhum desses governantes tem capacidade de mobilizar a juventude dos seus países para lutar na Ucrânia, ou para se alistarem para uma futura guerra contra a Rússia.

Em síntese, a Europa encontra-se estagnada, dividida e fragilizada, e suas elites política e intelectual estão tomadas pelo desejo de guerra e revanche contra a Rússia. Um ressentimento pela perda de sua força e influência imediatas, mas sobretudo pela perda do poder e da centralidade que tiveram dentro do Sistema Internacional nos últimos trezentos anos.

No início do século XVIII, o diplomata francês Abbé de Saint Pierre publicou uma obra fundamental na história das ideias e dos grandes debates internacionais, sobre a “guerra e a paz”.1 Foi ele que formulou, pela primeira vez, a tese de que uma das causas fundamentais de todas as guerras é o ressentimento dos derrotados e seu desejo de reconquistar a posição que perderam. Esta tese de Saint Pierre foi retomada posteriormente por vários outros autores, e foi corroborada pela história das guerras da Espanha e da França nos séculos XVIII e XIX; da Alemanha, nos séculos XIX e XX; e pela história mais recente da retomada do poder militar pela China e pela Rússia, nos séculos XX e XXI. E tudo indica que a grande candidata a ocupar a posição da “potência ressentida” dessa primeira metade do século seja a Europa.

O grande problema é que o ressentimento impede muitas vezes que se consiga fazer uma avaliação realista da correlação de forças existente em determinada situação de conflito. E é isto que está acontecendo com os governantes e comandantes militares europeus ao avaliarem sua força, neste momento, frente ao poder militar russo. Sobretudo depois que o presidente russo, Vladimir Putin, anunciou, no dia 28 de outubro recém-passado, o teste bem-sucedido do míssil cruzeiro Burevestnik e do drone subaquático Poseidon, movidos a energia nuclear e com alcance ilimitado. Duas armas que os especialistas e estrategos militares de língua inglesa chamam de “game-changing weapon”. Ou seja, não há no mundo tecnologia equivalente ou armamento capaz de interceptar ou destruir esses mísseis, que já “sucatearam” antecipadamente o sistema antimísseis projetado por Donald Trump – seu Golden Dome – que ficará operacional apenas em 2030.

Muitos preferem acreditar que se trate de um blefe russo, mas todas as evidências indicam que os testes ocorreram e foram bem-sucedidos, e que hoje a assimetria do poder de fogo entre a OTAN e a Rússia é de tal ordem que um erro de cálculo dos europeus poderá significar o desaparecimento da própria Europa, com efeitos catastróficos para o “resto da humanidade”. E a obsessão belicista dos atuais governantes europeus sugere que eles estão dispostos a “pagar para ver”.

Leia mais