A narração como resistência ao esquecimento e à possibilidade de reconciliação. Entrevista especial com Roan Costa Cordeiro

Enquanto requisita nossa imaginação, a narração abre caminho para o pensamento, o juízo e a ação. O ‘storytelling’ de Arendt e suas crônicas dos acontecimentos reverberaram filosoficamente em seu pensamento.

Edição: Alexandre Francisco | Foto: Bernhard Walter | Wikimedia Commons

Por: Márcia Junges | 11 Novembro 2025

“A narração também é uma resistência – especialmente contra o esquecimento, a grande força que arrebata tudo o que acontece, uma força que também é manipulável politicamente, assim como a memória”. A reflexão é do pesquisador Roan Costa Cordeiro na entrevista concedida por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU. Em sua análise, tanto a narração como o pensamento podem “conduzir à reconciliação, que consiste (…) em ‘chegar a um acordo’ com o mundo, de encontrarmos nele morada. Nos termos de Blixen, a narração levada a cabo zelosamente implica, no limite, ‘deixar partir’, quando conseguimos nos deter no presente e redescobrimos que é possível atuar no mundo. Nesse sentido, ao requisitar nossa imaginação, a narração nos prepara para o pensamento e para o juízo, por certo, mas também, é importante acrescentar, para a própria ação”.

Referindo-se à figura do narrador, Cordeiro argumenta que, como os filósofos e jornalistas, ele “é mais do que um simples espectador. Não é sempre que somos testemunhas do acontecimento, ou seja, aqueles que viram o espetáculo diretamente ou atuaram no palco. Nesse sentido, o que conecta o narrador ao acontecimento é a própria capacidade de imaginação, que nos aproxima do que está distante e nos distancia do que está demasiadamente perto. Mobilizada pela narração, a nossa capacidade de imaginar possibilita que nos relacionemos com os acontecimentos, tornando-nos hábeis para pensar e julgar”. E acrescenta: “a prática de Arendt com o storytelling também está relacionada com sua atuação como jornalista, embora isso seja muito pouco ou quase nada explorado em termos filosóficos. Desde pelo menos sua atuação no começo da década de 1940 como colunista no Aufbau, jornal de e para emigrados alemães nos EUA, até seu relato sobre Eichmann, a crônica dos acontecimentos é fundamental para a autora, até mesmo para que chegasse, enquanto filósofa, aos seus conceitos”.

Roan Costa Cordeiro | Arquivo Pessoal

Pesquisador de pós-doutorado no Programa de Pós-graduação em Filosofia da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), com bolsa de pós-doutorado júnior do CNPq, Roan Costa Cordeiro é doutor em Filosofia pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), mestre em Filosofia pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e graduado em Direito pela UFPR. É autor do livro “Vozes da metafísica: crítica da linguagem e da negatividade em Giorgio Agamben” (Margem da Palavra/Urutau, 2022). É membro do Cogito – Grupo de Pesquisa de Literatura Polonesa (CNPq-UFPR) e do GT Filosofia Política Contemporânea, da Associação Nacional de Pós-graduação em Filosofia (ANPOF). Em 18-09-2025, ministrou a conferência “Há muitas histórias ainda por contar: filosofia, narração e violência” na programação do V Encontro do GT Filosofia Política Contemporânea da ANPOF, sediado na Universidade Estadual do Ceará (UECE).

Confira a entrevista.

IHU – Hannah Arendt criticava a tradição filosófica por, muitas vezes, preferir o mundo abstrato das ideias à complexidade dos assuntos humanos. Em que medida essa “violência da abstração”, que força a realidade plural a caber em um sistema conceitual, pode preparar o terreno para formas de violência política que buscam impor uma ideia à realidade, apagando sua diversidade?

Roan Costa Cordeiro – Nas reflexões de Hannah Arendt (1) sobre a narração (ou storytelling), encontramos uma das mais valiosas contribuições para compreendermos o poder da palavra no pensamento político e filosófico. Sua análise sobre a tensão entre a filosofia e a narração possui amplo alcance, apontando para os muitos modos de nos relacionarmos com o próprio acontecimento decisivo que chamamos de linguagem. Para a pensadora, os nossos exercícios de pensamento surgem dos “incidentes da experiência viva” e a eles devem permanecer vinculados. Se o “incidente” é o sobressalto provocado na experiência pelos acontecimentos, nossa experiência de pensamento, em última análise, está relacionada com os próprios acontecimentos. A abstração desempenha um papel fundamental no pensamento humano, mas não é sinônima do próprio pensar.

Quando se corta o vínculo do pensamento com o mundo – algo, no limite, impossível, exceto quando morremos –, realiza-se um processo de violência autoinfligida, algo que María Zambrano (2) vislumbrava como presente na afirmação do discurso filosófico. Aqui aparece a “retirada” do mundo operada pelos filósofos, concepção atestada, aliás, pela célebre metáfora da filosofia como exílio. Certamente, podemos entendê-la de diversas maneiras, mas ela parte de uma pressuposição fundamental: a partir do espanto originário, chamado pelos gregos de thaumadzein, o pensador, ou melhor, o filósofo, não se encontra mais em casa no mundo.

Por quê? De fato, o mundo pode ser terrível, injusto, violento, ainda assim, somos seres de mundo, assim como somos seres vivos. É justamente por uma questão como essa que nos deparamos com uma revitalização do pensar que conduz ao enfrentamento das pressuposições da tradição filosófica. Afinal, naquele processo de “retirada” do mundo, a violência ocorre justamente pela paulatina remoção de cena dos acontecimentos, da teia das histórias encenadas, do espanto com o que acontece. Tal é a leitura que podemos realizar com pensadoras como Arendt e Zambrano das narrativas fundadoras do discurso filosófico ocidental, contrapondo-nos às interpretações que enxergam nessa violência uma condição necessária do pensamento.

Aura da memória

No mito da caverna construído por Platão (3) na República – devemos recordar que o termo mythós, para os gregos, antes designava “história”, “narrativa” –, o processo do conhecimento aí narrado aparece no contexto mais amplo de configuração da cidade (pólis) de acordo com as ideias. A história da caverna é muito conhecida, sendo ensinada nas escolas logo no primeiro contato com a filosofia – quando ele ocorre, na verdade. Para muito além de Platão, até mesmo apesar de Platão, ela tornou-se a narrativa por excelência da filosofia, prestando-se também a todos os tipos de mal-entendidos.

Seja como for, segundo argumenta Arendt, em sintonia com Friedrich Nietzsche (4), essa história opera uma inversão que dominou decisivamente a maneira como o pensamento foi visto e praticado no mundo ocidental: na “reviravolta” exigida do filósofo na saída da caverna, realiza-se “uma inversão da ordem homérica do mundo”, ou seja, da própria organização da narrativa por excelência do mundo grego.

Na Ilíada, por exemplo, são os acontecimentos e as ações que brilham, junto com as personagens e seus feitos, sob a aura da memória – por mais terríveis que fossem, como a própria destruição de Troia. Na inversão platônica, não é mais a vida póstuma que ocorre no “submundo”, como na cosmovisão mais antiga, mas a própria “vida comum na Terra”, que é encerrada dentro da caverna e assim por diante. Além da inversão, ocorre uma inegável hierarquização: a ideia, a alma e a contemplação no alto, na esfera da luz, e o fenômeno, o corpo e a ação no mais baixo, nas sombras.

IHU – Diante dos totalitarismos do século XX, Arendt defendeu a importância de narrar, de contar histórias sobre o que aconteceu. A narração, nesse sentido, seria um ato de resistência política contra a violência do esquecimento e do apagamento da verdade factual promovido pelos regimes violentos?

Roan Costa Cordeiro – A realidade dos campos de concentração e extermínio tornou a prática da narração incontornável na elaboração do acontecido. No caso de Arendt, para quem os campos manifestam o acontecimento de uma nova forma de governo que desafia o juízo e o pensamento humanos (ou seja, o totalitarismo), a narração surgiu como caminho fundamental para conectar o pensamento com a realidade. O desafio prévio, como deixa claro em seus escritos, era justamente expressar, falar do que aconteceu, enunciando a fatualidade de algo como Auschwitz ou Sobibor, isto é, era transformar em experiência narrável a vivência paradoxal da própria destruição da experiência naquelas “fábricas de cadáveres” – afinal, devemos recordar que experiência é condição elementar da narração, como afirmava seu grande amigo Walter Benjamin (5) nos seus escritos sobre a narração. Nesse sentido, o desenvolvimento da literatura de testemunho no século XX revelou um ponto de inflexão no qual justamente a (im)possibilidade de falar dos acontecimentos se tornou, paradoxalmente, o limiar da (im)possibilidade da narração.

Diante desses acontecimentos, tanto a lógica instrumental do “senso comum” quanto as categorias e conceitos da tradição de pensamento histórico, político e filosófico se mostraram incapazes de iluminar o seu sentido. Com uma audácia notável, pois se movendo em direção contrária à tradição de pensamento e ao próprio senso comum, Arendt repensou o próprio escopo do desencobrimento conceitual da realidade. Para ela, o conceito é um “artefato” do pensamento que surge na busca pelo sentido do que já acontece como real. Nesse caminho, cuja estruturação configura o que compreendo como o “pensamento acontecimental” arendtiano, a narração é justamente a atividade humana responsável por articular a ação e o pensamento, uma atividade que pressupõe a própria “ponte” estabelecida pela imaginação entre o acontecimento ausente e o pensamento.

Na narração, ao lidarmos com a “fragilidade dos assuntos humanos”, encontramos os traços adequados que nos permitem elaborar os rastros deixados pela ação no mundo, enfrentando a sua contingência, a sua impermanência, o risco do seu desaparecimento. Se a narração é um modo de pensamento, e o próprio pensamento implica resistência, devemos concluir que a narração também é uma resistência – especialmente contra o esquecimento, a grande força que arrebata tudo o que acontece, uma força que também é manipulável politicamente, assim como a memória.

IHU – Arendt é taxativa: a violência é o oposto da política, pois esta nasce do diálogo e da persuasão. Sendo a narração uma forma de ação no mundo através da palavra, a violência seria, então, fundamentalmente “anarrativa”, já que interrompe à força a possibilidade do discurso e da troca de histórias?

Roan Costa Cordeiro – Acredito que devemos distinguir entre a narração e a ação, fenomenologicamente falando, enquanto atividades humanas. Assim, enquanto atividade particular, a narração, como o poder, seria diversa também da violência – bem poderia estar no seu oposto. Devemos ter cautela, portanto, com as distinções e relações conceituais, pois a “pura violência” que é muda, nos termos de Arendt, é uma situação extrema.

Quando observamos as aproximações entre a narração e a violência, vemos que ambas se relacionam, e muito, em nossas experiências no mundo. Mais ainda, há muitas formas de relação entre ambas, muitas delas sutis e até mesmo impensadas. O storytelling não é algo como uma redenção do acontecimento pela linguagem. Assim, devemos distinguir entre as narrações da violência – exemplos não nos faltam, das grandes cenas agonísticas da Ilíada, por exemplo, ao relato sobre a tortura do filósofo Luiz Roberto Salinas Fortes pela ditadura civil-militar brasileira em Retrato calado – e as próprias violências das narrações, algo que ocorre quando o tolhimento das vozes se projeta contra personagens e grupos inteiros não apenas literariamente – como se isso já não fosse muito, porém, por aí se conformar todo um imaginário –, mas ainda politicamente.

Virtudes cotidianas

A narrativa total é o pesadelo totalitário da linguagem, algo terrível que oblitera a singularidade dos acontecimentos plurais. Em outra direção, devemos pensar em narrações como a de Svetlana Aleksiévitch em Vozes de Tchernóbil, que conjuga na sua prática narrativa as vozes silenciadas das e dos agentes engolfados pelo acontecimento do acidente nuclear em Tchernóbil – não apenas os funcionários diretamente envolvidos, mas também suas famílias, habitantes da região, especialistas, etc. O relato do que aconteceu e foi experimentado como “incidente” pelo testemunho dos próprios atores e espectadores envolvidos nas operações em Pripyat, no presente do acontecimento, é então vocalizado em contraposição à operação de silenciamento mobilizada pelo governo. São as muitas particularidades envolvidas na situação que requerem a narração, condição para chegarmos a plasmar o sentido do acontecimento. Dentre elas, podemos resgatar a solidariedade que realmente aflora nas operações de salvaguarda, pois algo era evidente: os danos seriam muito maiores se não se atuasse, se não se reagisse da maneira como fosse possível ao acontecido. É nesse contexto que enxergamos não apenas as “virtudes heroicas” afeitas aos grandes atos – a matéria mais tradicional das narrações, como o sacrifício –, mas também as “virtudes cotidianas” que exigem a elaboração de novas formas narrativas, como a dignidade, o cuidado e a própria atividade do pensamento, segundo argumenta Tzvetan Todorov (6) em Diante do extremo.

IHU – Algumas filosofias constroem “grandes narrativas” históricas que justificam a violência no presente em nome de um fim glorioso no futuro. A tarefa do pensamento, após Arendt, seria abandonar essas narrativas totalizantes em favor de histórias particulares e plurais que preservem a dignidade dos fatos?

Roan Costa Cordeiro – O papel da filosofia da história é fundamental para compreendermos a relação entre acontecimento, ação e narração na história do pensamento. A violência, nesse contexto, revelando seu caráter instrumental, aparece como uma espécie de catalisador do futuro, que força a ação a caber em narrativas com sentido previamente delimitado. Tal sentido do futuro é prospectado conforme um “fim” (télos) que se trata de alcançar, o que conhecemos como teleologia, isto é, um grande mecanismo conceitual empregado pela doutrina moderna do progresso, pelo providencialismo cristão, etc. Conforme um “fim” definido, neste mundo ou em outro, o tempo histórico passa a ser orientado por algo que atua “pelas suas costas”, na expressão muito reveladora de Arendt.

No entanto, a história não tem fim no sentido de ter “finalidade”, determinada ou determinável, nem mesmo no de um “término” completo, como pretendem algumas doutrinas religiosas e/ou filosóficas, que nisso traem efetivos projetos políticos. Pelo contrário, numa das mais sugestivas metáforas do pensamento arendtiano, utilizada em A condição humana, o que chamamos de História é apenas a “grande história (story) sem começo nem fim” – por isso, e apenas por isso, justifica-se o emprego da inicial maiúscula –, que se apresenta como o “livro de histórias” (storybook) da humanidade. Nessa visão, a pluralidade dos acontecimentos singulares é retomada pela atividade narrativa de historiadoras e historiadores, das e dos poetas, etc. Do ponto de vista político e narrativo, portanto, algo como um “fim” é apenas o fechamento de uma história, olhada retrospectivamente, aliás, quando outra página já foi aberta pela ação e pela narração em novas histórias, etc.

IHU – Arendt associa a capacidade de perdoar à possibilidade de narrar uma nova história sobre o passado, interrompendo a cadeia inevitável de ação e vingança. Nesse sentido, o ato de narrar, ao permitir o julgamento (que é diferente do julgamento finalístico), seria uma forma de desarmar a violência?

Roan Costa Cordeiro – Por um lado, o perdão é um “remédio” da ação contra o fardo da irreversibilidade dos acontecimentos. Politicamente, ele atua como abertura da ação para além das culpas do passado, mesmo o mais horrendo, movendo-nos para além da vingança. Há toda uma discussão sobre o imperdoável – como a Shoá, a escravidão, o genocídio dos povos originários… O perdão procura encerrar o processo automático da ação enfrentando seus efeitos ativos no presente, e não realizando o seu apagamento. Devemos deixar isso muito claro: não se trata de uma amnésia do acontecido, de uma simples anistia (ambas as palavras, aliás, apontam para a negação da memória, da recordação).

Por outro lado, a compreensão, o pensamento e a narração não conduzem ao perdão. Assim, ao contrário do que diz o ditado “tudo compreender é tudo perdoar”, qual relação podemos entrever entre a narração e o perdão? É possível vislumbrar alguma luz na própria “filosofia” do storytelling que Arendt encontrava na grande narradora Karen Blixen (Isak Dinesen) (7). A narração, assim como o pensamento, pode conduzir à reconciliação, que consiste, diante do que acontece, em “chegar a um acordo” com o mundo, de encontrarmos nele morada. Nos termos de Blixen, a narração levada a cabo zelosamente implica, no limite, “deixar partir”, quando conseguimos nos deter no presente e redescobrimos que é possível atuar no mundo. Nesse sentido, ao requisitar nossa imaginação, a narração nos prepara para o pensamento e para o juízo, por certo, mas também, é importante acrescentar, para a própria ação.

IHU – O conceito de “banalidade do mal”, elaborado a partir do julgamento de Eichmann, revelou um perpetrador não demoníaco, mas superficial e incapaz de pensar criticamente. Esta figura, portanto, representa uma violência específica contra a linguagem e a narrativa, uma vez que ele se escondia atrás de clichês e jargões burocráticos para não narrar e, portanto, não compreender a realidade de seus atos?

Roan Costa Cordeiro – A obra Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal é sobretudo um testemunho sobre as dificuldades de narrar e compreender ações e acontecimentos terríveis e imperdoáveis. Nesse sentido, essa obra é um verdadeiro canteiro de escavações para as questões que enfrentamos nesse diálogo desafiador, até mesmo porque a noção de banalidade do mal aí proposta ganhou proporções muito maiores do que Arendt esperava na construção do relato. E é o caso de indagarmos: o artefato conceitual por acaso não se desgarrou do “incidente” ao qual deve sua origem? Essa pergunta provoca minhas leituras e releituras da obra, especialmente sobre o papel que a narração e a linguagem desempenham no confronto do pensamento com o acontecimento.

A “banalidade” do tipo de mal praticado pelo oficial nazista Adolf Eichmann (8) coloca em cena uma incapacidade para exercitar o pensamento que tem por pressuposto uma incapacidade de imaginar, de falar e até de sentir, segundo Arendt. Assim, embora Eichmann fosse, no auge de sua carreira, responsável pela “logística” ferroviária que ligava os centros de deportação da Europa Ocidental e Centro-Oriental aos campos de concentração e extermínio no Leste, ele nunca demonstrou ter enxergado o alcance de suas ações como um assassinato em massa. Em sua defesa, aliás, costumava afirmar que nunca disparou um único tiro.

Corrosão da potência da linguagem

Assim, aquilo que Arendt considerava ser a própria “luta” de Eichmann com a língua alemã aparece como sintoma da corrosão da potência da linguagem, levada a cabo política e socialmente, de modo que devemos recordar as reflexões sobre a linguagem do Terceiro Reich de Victor Klemperer, cujo estudo pioneiro, LTI: a linguagem do Terceiro Reich, é sobretudo uma narrativa. Hoje, nosso desafio também inclui pensar o impacto das redes sociais, da IA, etc. nas maneiras pelas quais estabelecemos a conexão entre os acontecimentos e a linguagem. Numa lição muito preciosa para o tempo presente, não é a ausência das capacidades e faculdades que está em questão, mas a inabilidade para exercitá-las, com sua consequente atrofia, inclusive para trocarmos experiências significantes – ou seja, para contarmos histórias. É nesse sentido que podemos permanecer apenas na superfície, como Eichmann, sem conseguir acessar o sentido do que aparece diante de nós, seja em situações extremas, como em face da pandemia de Covid-19, seja em situações cotidianas.

IHU – Vivemos em uma era de “linguagem cínica”, onde discursos de ódio e notícias falsas são normalizados. Esta corrosão da linguagem, que torna os fatos opcionais, é uma forma de violência contra o próprio mundo comum, tornando impossível uma narrativa compartilhada e, portanto, a ação política concertada?

Roan Costa Cordeiro – A figura de Adolf Eichmann personifica o perigo da mentalidade em perfeita sincronia com comandos, que não se questiona sobre a veracidade dos relatos e das ordens que recebe, mas apenas os replica, aderindo à toda uma ordenação subjacente da realidade que confunde as fronteiras entre a informação e a desinformação, entre realidade e a ficção. Diante disso, devemos estar sempre atentos ao poder da linguagem, especialmente em sua dimensão nomeadora. Na própria política, as palavras não devem jamais ser vistas como somente palavras, mesmo quando elas se desgastaram. Além disso, a ausência de exercício da imaginação e do pensamento pode muito bem funcionar como uma espécie de “proteção” ou “anteparo” voltada contra o testemunho das palavras, a presença dos outros e da realidade, especialmente quando já se emprega uma linguagem propositalmente esvaziada.

Pensemos nas narrativas articuladas por diversas modalidades de fanatismo, por exemplo. Nesses casos, não é incomum que seu “anteparo” consista em mobilizar um discurso baseado em alguma “verdade” à qual apenas os membros têm acesso – como o complô dos judeus para os nazistas, com base num documento forjado, Os Protocolos dos sábios de Sião, o complô dos LGBTQIA+ para os extremismos de direita do presente, como no caso do chamado kit gay, o obscuro “Foro de São Paulo” para o olavismo, etc. Os membros do grupo fanatizado encontraram a grande verdade ou, como preferem alguns, hackearam o “código” que permite então reconfigurar, no limite, a própria natureza dos fatos. Em direção oposta, a decodificação da realidade como operação crítica é uma busca incessante de sentido no âmbito do pensamento, o que requer, sobretudo, que lidemos com os fatos sem inventá-los – essa, no fim, é a maior tentação a ser evitada pelos narradores dos acontecimentos, como ensina a leitura arendtiana de Blixen.

Na esfera pública, muito da narração veraz depende da atuação autônoma das Universidades, do Poder Judiciário e ainda da Imprensa, segundo argumenta Arendt em “Verdade e política”. Logicamente, não podemos ser ingênuos aqui, pois a conformação institucional é algo que se realiza conforme ordenamentos muito concretos. Ainda assim, não é casual que essas instituições estejam entre as mais atacadas por governos de inequívoca vocação autoritária do passado e também do presente, como infelizmente experimentamos durante o mandato de Jair Bolsonaro e podemos observar naqueles de Donald Trump, Viktor Orbán e Vladimir Putin, entre outros.

Devemos enxergar a profunda politização das narrativas, embora elas apareçam, em muitos casos, antes como ficções, ou seja, como invenções que atribuem um sentido ad hoc para o que quer que seja, sem a menor consideração e fidelidade com cada acontecimento na sua particularidade. Ainda assim, não podemos jamais abandonar o poder da narração em prol de qualquer “verdade” revelada, jogando fora a criança com o banho. Pelo contrário, o uso contemporâneo dessa estrutura deve antes acender nosso sinal de alerta para o fato de que, sim, as narrativas importam – e muito.

IHU – Arendt via o filósofo ou o historiador não como um juiz, mas como um “spectator” que, ao narrar o que viu, confere significado aos eventos. Em um mundo com potencial para novas violências extremas, qual é a responsabilidade ética do filósofo e do jornalista como narradores, como aqueles que devem “pensar sem corrimãos”?

Roan Costa Cordeiro – E assim voltamos à questão sobre a “retirada” do mundo. Questionando essa imagem, porém, é muito mais oportuno falar no “recuo” do pensamento. Na filosofia, dada sua elaboração contínua do pensamento, tudo depende das metáforas que decidimos empregar, no atrito constante entre imagens e palavras. A visão de filósofas e filósofos como espectadores é tão antiga quanto as narrativas fundadoras do discurso filosófico. Já em Pitágoras encontramos a representação do pensar em analogia com a observação de um espetáculo. Como essa imagem se baseia num jogo perspectivo do olhar, somos atores e espectadores no espetáculo do mundo conforme a posição que nele assumimos.

O narrador, assim como os filósofos e os jornalistas, é mais do que um simples espectador. Não é sempre que somos testemunhas do acontecimento, ou seja, aqueles que viram o espetáculo diretamente ou atuaram no palco. Nesse sentido, o que conecta o narrador ao acontecimento é a própria capacidade de imaginação, que nos aproxima do que está distante e nos distancia do que está demasiadamente perto. Mobilizada pela narração, a nossa capacidade de imaginar possibilita que nos relacionemos com os acontecimentos, tornando-nos hábeis para pensar e julgar.

A prática de Arendt com o storytelling também está relacionada com sua atuação como jornalista, embora isso seja muito pouco ou quase nada explorado em termos filosóficos. Desde pelo menos sua atuação no começo da década de 1940 como colunista no Aufbau, jornal de e para emigrados alemães nos EUA, até seu relato sobre Eichmann, a crônica dos acontecimentos é fundamental para a autora, até mesmo para que chegasse, enquanto filósofa, aos seus conceitos.

A tarefa radical do pensamento implica a recusa de “anteparos”. É uma exigência extrema, por certo, mas sem atender ao seu apelo não pensamos a fundo o que quer que seja – por exemplo, por que eu tenho de obedecer a esta ou àquela ordem? Há um fator que prejudica nossa tarefa: o tempo. Por um lado, pensar exige parar para pensar, elastecendo a temporalidade em nosso recuo perspectivo diante do mundo; por outro, agir requer o engajamento no presente dos próprios acontecimentos. Quando observamos que a ação depende de decisões a serem tomadas diante de momentos muito oportunos e únicos, vemos que aí se abre o espaço para o exercício de nossas habilidades de pensar e de julgar, as quais mobilizam nossas habilidades imaginativas e narrativas. A ética do relato reside em cuidar enfaticamente dos acontecimentos, das histórias de vida e do mundo – pelo pensamento e também pela ação.

Notas

(1) Hannah Arendt (1906-1975): filósofa política alemã de origem judaica, uma das mais influentes do século XX. A privação de direitos e perseguição de pessoas de origem judaica ocorrida na Alemanha a partir de 1933, assim como o seu breve encarceramento nesse mesmo ano, forçaram Arendt a emigrar. O regime nazista retirou-lhe a nacionalidade em 1937, o que a tornou apátrida até conseguir a nacionalidade norte-americana em 1951. Trabalhou, entre outras atividades, como jornalista e professora universitária e publicou obras importantes sobre filosofia política. Contudo, recusava ser classificada como “filósofa” e também se distanciava do termo “filosofia política”; preferia que suas publicações fossem classificadas dentro da “teoria política”. Sobre essa pensadora, confira a Edição 206, de 27-11-2006 da Revista IHU On-Line, intitulada O mundo moderno é o mundo sem política. Hannah Arendt 1906-1975, disponível em https://www.ihuonline.unisinos.br/edicao/206.

(2) María Zambrano (1904-1991): filósofa e escritora espanhola, discípula de Ortega y Gasset e também de Xavier Zubiri e de Manuel García Morente durante os anos 1924-1927. Foi a primeira mulher a ser agraciada com o Prêmio Miguel de Cervantes. Esteve exilada em vários países da Europa e da América do Sul, tendo regressado a Espanha em 1984, após o término da ditadura. Autora de uma vasta obra, da qual destacamos Persona y Democracia: Una historia sacrificial (1958, reeditado em 1988), Para una historia de la piedad (1989) e El sueño creador.

(3) Platão (428 a. C.-348 a.C.): filósofo e matemático do período clássico da Grécia Antiga, autor de diversos diálogos filosóficos e fundador da Academia em Atenas, a primeira instituição de educação superior do mundo ocidental. É amplamente considerado a figura central na história do grego antigo e da filosofia ocidental, juntamente com seu mentor, Sócrates, e seu pupilo, Aristóteles. Ajudou a construir os alicerces da filosofia natural, da ciência e da filosofia ocidental, e também tem sido frequentemente citado como um dos fundadores da religião ocidental, da ciência e da espiritualidade. O assim chamado neoplatonismo de filósofos como Plotino e Porfírio influenciou Santo Agostinho e, portanto, o cristianismo, bem como a filosofia árabe e judaica. Platão era um racionalista, realista, idealista e dualista e a ele tem sido associadas muitas das ideias que inspiraram essas filosofias mais tarde. Foi o inovador do diálogo escrito e das formas dialéticas da filosofia. Platão também parece ter sido o fundador da filosofia política ocidental. Sua mais famosa contribuição leva seu nome, platonismo (também ambiguamente chamado de realismo platônico ou idealismo platônico), a doutrina das Formas conhecidas pela razão pura para fornecer uma solução realista para o problema dos universais. Ele também é o epônimo do amor platônico e dos sólidos platônicos. Sobre Platão, confira a Revista IHU On-Line ed. 294, de 25-05-2009, intitulada Platão, a totalidade em movimento, disponível em https://www.ihuonline.unisinos.br/edicao/294

(4) Friedrich Wilhelm Nietzsche (1844-1900): filósofo, filólogo, crítico cultural, poeta e compositor prussiano do século XIX, nascido na atual Alemanha. Escreveu vários textos criticando a religião, a moral, a cultura contemporânea, a filosofia e a ciência, exibindo certa predileção por metáfora, ironia e aforismo. É famoso por sua crítica à religião, em especial o cristianismo. Sobre seu pensamento, confira a Edição 127 da Revista IHU On-Line, de 13-12-24, intitulada Nietzsche Filósofo do martelo e do crepúsculo, disponível em https://www.ihuonline.unisinos.br/edicao/127 e a Edição 529, de 01-10-2018, intitulada Nietzsche. Da moral de rebanho à reconstrução genealógica do pensar, disponível em https://www.ihuonline.unisinos.br/edicao/529

(5) Walter Benjamin (1892-1940): ensaísta, crítico literário, tradutor, filósofo e sociólogo judeu alemão. Associado à Escola de Frankfurt e à Teoria Crítica, foi fortemente inspirado tanto por autores marxistas, como Bertolt Brecht, como pelo místico judaico Gershom Scholem. Entre as suas obras mais conhecidas, contam-se A Obra de Arte na Era da Sua Reprodutibilidade Técnica (1936), Teses Sobre o Conceito de História (1940) e a monumental e inacabada Paris, Capital do século XIX.

(6) Tzvetan Todorov (1939-2017): filósofo e linguista búlgaro radicado em Paris, França, desde 1963. O pensamento de Todorov direciona-se, após seus primeiros trabalhos de crítica literária sobre poesia eslava, para a filosofia da linguagem, numa visão estruturalista que a concebe como parte da semiótica (saussuriana), fato que se deve aos seus estudos dirigidos por Roland Barthes. Com a publicação de A Conquista da América, Todorov expõe suas pesquisas a respeito do conceito de alteridade, existente na relação de indivíduos pertencentes a grupos sociais distintos, cujo tema central encontra justificativa na situação do próprio autor, que é imigrante na França, um país onde supostamente a relação entre nacionais e estrangeiros é historicamente marcada por um xenofobismo não declarado.

(7) Karen Blixen (mais conhecida pelo pseudônimo de Isak Dinesen – 1885-1962): escritora dinamarquesa. Durante a segunda guerra mundial, escreveu Contos de inverno, publicado em 1942, e o romance As vingadoras angélicas, sob o pseudônimo de Pierre Andrezel, e publicado em 1944. Escreveu também Anedotas do destino (Brasil) / Ironias do destino (Portugal), de 1958, e que inclui o conto A festa de Babette, transformado em filme em 1987, e Sombras na pradaria, de 1960, entre outros.

(8) Adolf Eichmann (1906-1962): SS-Obersturmbannführer (tenente-coronel) da Alemanha Nazista, e um dos principais organizadores do Holocausto. Eichmann foi designado pelo SS-Obergruppenführer (general/tenente-general) Reinhard Heydrich para gerir a logística das deportações em massa dos judeus para os guetos e campos de extermínio das zonas ocupadas pelos alemães no Leste Europeu durante a Segunda Guerra Mundial. Em 1960, foi capturado na Argentina pela Mossad, o serviço secreto de Israel. Após um julgamento de grande publicidade em Israel, foi considerado culpado por crimes de guerra e enforcado em 1962. O julgamento foi seguido pelos meios de comunicação e serviu de inspiração para vários livros, incluindo o de Hannah Arendt, Eichmann em Jerusalém, no qual Arendt descreve Eichmann com o conceito de “banalidade do mal”. Sobre a banalidade do mal, confira a Edição 438, de 24-03-2014 da Revista IHU On-Line, intitulada Banalidade do mal, disponível em https://www.ihuonline.unisinos.br//media/pdf/IHUOnlineEdicao438.pdf.

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