08 Novembro 2025
Às vésperas da COP30, em Belém (PA), Associação Brasileira da Indústria de Alimentos lança instituto com foco na coleta e na reciclagem de embalagens plásticas; especialistas veem com ressalvas a iniciativa e defendem restrições à fabricação de certos tipos de plástico no país.
A informação é de Hélen Freitas, publicada por Repórter Brasil, 05-11-2025.
Às vésperas da COP30, a Abia (Associação Brasileira da Indústria de Alimentos) — entidade que reúne gigantes como Nestlé, Arcor e Cargill — anunciou a criação de um novo instituto, com foco na chamada “logística reversa” de embalagens. Para o ano que vem, a meta é recolher e destinar para reciclagem 32% dos pacotes, em sua maioria de plástico, produzidos pelas associadas. A previsão é atingir 50% até 2040.
O compromisso assumido pela Abia, no entanto, é visto com ressalvas por fontes ouvidas pela Repórter Brasil. Segundo especialistas, a iniciativa divulgada na iminência da conferência do clima da ONU, que acontece de 10 a 21 de novembro em Belém (PA), é incapaz de resolver de fato os impactos gerados pelos resíduos de embalagens.
“Embora as metas de reciclagem estejam aumentando, o plástico no Brasil não é 100% reciclável, nem reciclado”, afirma Rafael Eudes, membro do comitê gestor da Aliança Resíduo Zero Brasil. “Isso, em algum momento, vai gerar um ponto de inflexão se não tivermos uma legislação que aborde o começo da cadeia, proibindo plásticos considerados problemáticos, com alta poluição e baixa reciclabilidade”, complementa.
Para levar a cabo seu sistema de logística reversa, o Instituto Abia firmou uma parceria com a Ancat (Associação Nacional dos Catadores), que congrega aproximadamente 6 mil trabalhadores.
Vitória Moraes, analista técnica da organização ACT Promoção da Saúde, acredita que a criação do Instituto Abia ocorre no momento em que a “pauta ambiental está em alta”. Para ela, as empresas lançam campanhas e assumem compromissos voluntários, mas sem reduzir de fato a utilização de plástico nas embalagens e sem gerar impacto social.
“Por mais que existam essas parcerias, os catadores continuam ali na linha de frente, sendo mal remunerados, e trabalhando às vezes em condições insalubres”, ressalva.
Em 2023, Brasil reciclou 6 milhões de toneladas de resíduos plástico, muito abaixo do potencial.
De acordo com a PNRS (Política Nacional de Resíduos Sólidos), a logística reversa é um sistema de responsabilidade compartilhada entre fabricantes, importadores, distribuidores e comerciantes para a destinação de embalagens.
Dados do Panorama dos Resíduos Sólidos no Brasil indicam que, em 2023, apenas 6 milhões de toneladas de resíduos foram recicladas, número muito aquém do potencial de 27,2 milhões de toneladas.
Para Tião Santos, presidente do Movimento Sou Catador, o modelo de responsabilidade compartilhada é ineficaz. “É como aquele cachorro com vários donos, mas que não é alimentado por nenhum”, compara. Segundo Santos, o fardo da coleta acaba nas mãos dos catadores, enquanto empresas se eximem de suas obrigações, repassando custos e encargos para catadores e prefeituras.
Em nota enviada à Repórter Brasil, o Instituto Abia afirma que suas ações priorizam a reintegração das embalagens pós-consumo ao ciclo produtivo e a ampliação da reciclagem efetiva, com realização de auditoria por verificador de resultados e publicação de relatório anual. O instituto ainda garante “o cumprimento das metas de forma responsável e em conformidade com as melhores práticas ambientais e de governança”. Leia a íntegra da resposta.
Quase metade do plástico usado no Brasil é de uso único
O Brasil é o maior poluidor de plástico da América Latina e o 8º maior no mundo. Em 2023, o país gerou 7 milhões de toneladas de resíduos — 44% descartáveis e de uso único. Segundo a Abiplast (Associação Brasileira da Indústria do Plástico), fabricantes de alimentos e bebidas respondem por 24,1% do consumo no Brasil.
Representante do setor, a Abia defende o conceito de “economia circular” como solução. A estratégia foca em reciclagem e gestão de resíduos, mas não proíbe a produção de plásticos, mesmo os de uso único, como copos e canudos. Especialistas, no entanto, alertam que a reciclagem, por si só, não é suficiente para resolver o problema.
De acordo com dados da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico), o mundo produziu em 2022 duas vezes mais lixo plástico do que duas décadas antes. Naquele ano, apenas 9% do total dos resíduos foram, de fato, reciclados.
Em 2023, a Break Free From Plastic, coalizão global de organizações e indivíduos criada para enfrentar a poluição plástica, mostrou que, das dez empresas mais poluidoras daquele ano, sete eram fabricantes de bebidas e alimentos ultraprocessados. No top 3, apareciam Coca-Cola, PepsiCo e Nestlé.
Associada ao novo instituto de logística reversa criado pela Abia, a Nestlé também tem como meta tornar 100% de suas embalagens recicláveis ou reutilizáveis. No entanto, como a maior parte das indústrias, a multinacional de origem suíça se limita à reciclagem e não se manifesta sobre o banimento de certos tipos de plástico, como os de uso único.
Modelo de logística reversa no Brasil é diferente do adotado por países europeus
No Brasil, a logística reversa funciona principalmente pelo modelo de “compensação”. Empresas geradoras de resíduos contratam entidades gestoras para garantir que o material colocado no mercado seja efetivamente reciclado.
O Instituto Abia desempenha esse papel, atuando como intermediário entre empresas que precisam cumprir metas de reciclagem e associações de catadores. Atualmente, 9 em cada 10 kg de material reciclado no Brasil são processados por catadores.
Já países como Alemanha, França, Bélgica e Suécia adotam sistemas diferentes, obrigando as empresas a internalizarem os custos da gestão de resíduos em seus preços. Isso incentiva a redução da produção de plástico e o desenvolvimento de produtos mais sustentáveis, na avaliação de especialistas.
O presidente do Movimento Sou Catador, Tião Santos, afirma que o modelo brasileiro é ineficaz e serve apenas como marketing para as empresas. “Os catadores não recebem pelo serviço prestado, não têm seus direitos sociais garantidos e trabalham em péssimas condições”, afirma. “A cadeia da reciclagem é uma das mais desumanas hoje no Brasil”, acrescenta.
Anderson Nassif, diretor da Associação Nacional dos Catadores, afirma que a iniciativa da Abia se conecta a cerca de 240 organizações de catadores espalhadas pelo país.
Segundo Nassif, o Instituto repassa recursos para custear a equipe técnica da associação de catadores. O dinheiro também banca investimentos na infraestrutura das cooperativas de catadores, como manutenção de caminhões e prensas, compra de equipamentos de proteção e até contratação de profissionais de saúde e segurança.
Nassif explica, no entanto, que os catadores só recebem pela coleta quando o material é vendido para empresas de reciclagem. Ou seja, mesmo que o Instituto Abia destine recursos, o trabalhador na ponta não tem garantia de remuneração. “Só coletar não é suficiente. A logística reversa só se concretiza quando o material é comercializado e há comprovação dessa venda”, acrescenta Nassif.
“O trabalho dos catadores é tratado como uma filantropia, um benefício social ou apoio ambiental, mas não como uma atividade essencial para a reciclagem, como deveria ser conforme a PNRS”, critica Tião Santos.
Outro problema da logística reversa é a possibilidade de as empresas fazerem a compensação de resíduos com materiais que não correspondem aos seus produtos. Segundo Rafael Eudes, companhias que usam plásticos de baixa reciclabilidade podem cumprir suas metas comprando notas fiscais de outros tipos de plásticos, como os PET, com maior potencial de reaproveitamento. Isso mascararia o real impacto da poluição gerada por essas empresas.
Governo federal recebeu 10 vezes mais representantes da indústria do plástico do que ambientalistas
No Brasil, a Abia tem exercido forte influência nas discussões sobre o posicionamento do governo brasileiro no Tratado Global sobre Poluição Plástica da ONU, defendendo a “economia circular”.
A associação marca presença em Brasília e é membro do Conselho Nacional de Desenvolvimento Industrial, que reúne ministérios e entidades da indústria como a Abiplast e a Abiquim (Associação Brasileira da Indústria Química).
Essas conexões permitem às associações influenciar decisões políticas. Levantamento da Repórter Brasil mostrou que, nos últimos seis anos, o governo brasileiro recebeu a indústria do plástico 10 vezes mais do que ambientalistas, com o presidente da Abia participando de algumas reuniões.
No Congresso, a associação se alia à FPA (Frente Parlamentar da Agropecuária), por meio do Instituto Pensar Agro, think tank apoiado por 58 organizações do setor agrícola e industrial, incluindo a própria Abia. A associação também mantém estreitas relações com a CNI. “O que vemos no Congresso é a Abia atuando para enfraquecer regulamentos que poderiam proteger o meio ambiente”, Vitória Moraes.
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