25 Outubro 2025
Esta quinta-feira, 23 de outubro, ao fim da manhã, Leão XIV e o Rei Carlos III rezaram juntos na Capela Sistina durante um ofício presidido pelo Papa e pelo arcebispo de York (anglicano), Stephen Cottrell. Na véspera, para além de sublinharem o significado ecuménico do gesto, os média britânicos perguntavam-se: “mas quem é este Papa?” – uma pergunta que após cinco meses de pontificado milhões de católicos também se fazem.
A reportagem é de Jorge Wemans, publicada por Sete Margens, 24-10-2025.
Ao contrário da sua mãe, Isabel II, Carlos III assume publicamente atitudes que facilitam a aproximação à Igreja Católica. Desde sempre um defensor da salvaguarda da natureza, a sua atenção ao cuidado da criação é anterior a este se ter tornado tema central na doutrina social católica. Por outro lado, ainda antes da cerimónia da sua coroação, na qual quis a participação dos líderes espirituais das várias comunidades religiosas do Reino Unido, Carlos já havia dito que mais do que ser o chefe supremo da Igreja de Inglaterra e o “defensor da fé [cristã anglicana]” desejava ser “o defensor [das diferentes tradições] de fé”.
A história dá conta de que vários reis de Inglaterra foram recebidos no Vaticano, mas nenhum participou numa oração ecuménica ao lado do Papa. Pelo contrário, a Rainha Isabel II proibira o seu filho Carlos, então príncipe de Gales, de participar com a sua mulher, Diana, numa missa celebrada em Roma por João Paulo II.
Hoje, na Capela Sistina, assistiu-se a algo que roça a heresia: uma celebração presidida por um Papa e um arcebispo cuja ordenação a disciplina católica considera “absolutamente nula e inteiramente vã”, celebração que contou com a participação do chefe supremo da Igreja Anglicana. Uma novidade e tanto!
O simbolismo desta celebração (que pode ser vista no vídeo abaixo) arrasa os anátemas seculares, as excomunhões, as declarações definitivas de heresia e de traição à pátria, bem como todas as imposições disciplinares ainda em vigor que interditam aos fiéis de uma das confissões a participação em celebrações e manifestações religiosas da outra. Nesta, como noutras situações, as imagens das personagens participantes do ato celebrado na Capela Sistina valem mais do que mil decretos que contradizem aquela comunhão…
Comunhão plena que, como escrevia no dia 22 de outubro o enviado permanente de La Croix a Roma, Mikael Corre, “não se anuncia para breve”, pois “o diálogo ecuménico, apesar de ter registado progressos – particularmente no seio da Comissão Arcic – sobre temas com a Eucaristia e o Ministério”, está muito longe de dar lugar à “unidade sacramental”.
Do mesmo modo, a nomeação no início deste mês de Sarah Mullally como a primeira mulher arcebispa de Cantuária não causou apenas divisões e convulsões no interior da Comunhão Anglicana. Uma fonte vaticana não identificada pelo jornal assume claramente que a nomeação de uma mulher para presidir à Igreja de Inglaterra e à Comunhão Anglicana “complica o avanço do diálogo ecuménico”, tanto mais que Leão XIV já deu sinais de não querer avançar no que à ordenação de mulheres diz respeito.
Mas nada disto abala o otimismo da irmã Alessandra Smerilli, prefeita do Dicastério para o Desenvolvimento Humano Integral, visível na sua declaração: “Este encontro demonstra a forte convergência entre a Igreja Católica e a Igreja Anglicana em questões ambientais”. De facto, além da paz no mundo e da unidade dos cristãos, o terceiro tema da celebração de hoje foi o cuidado da criação.
Gestos que agradam…
Se Francisco, figura incontornável para todos os média, quebrou a distância tradicional com que televisões e jornais britânicos cobriam o Vaticano, a língua materna e a cultura anglo-saxónica do Papa Prevost têm-lhe merecido igual atenção dos média do Reino Unido. Mas também eles se perguntam, tendo como pano de fundo o pontificado do seu antecessor: “mas que Papa é este?”.
Harriet Sherwood, jornalista de The Guardian, considera que “para os católicos conservadores que esperavam que ele representasse uma rutura com as políticas e prioridades do seu antecessor imediato os sinais não são bons”. Sherwood enuncia na análise que publicou no jornal de dia 22 de outubro vários gestos do Papa que “acalentaram nas hostes mais conservadoras a ideia de que este seria um pontificado que reporia as coisas no seu lugar” depois do turbilhão Francisco.
As vestes (a mozeta vermelha) com que surgiu após a sua eleição, o facto de ter decidido viver no Palácio Apostólico, de ter recebido em audiências privadas e separadas os dois “cardeais críticos ferrenhos de Francisco”, Raymond Burke e Robert Sarah, e ainda ter permitido que o primeiro celebrasse uma missa em latim na Basílica de São Pedro (autorização que Francisco havia recusado) – tudo gestos, a que poderíamos juntar o seu pronunciamento contra a ordenação de mulheres, que levaram “alguns a esperar que significassem um rompimento com Francisco”. Mas, de acordo com Sherwood, “as últimas semanas sugerem que eles estavam enganados”.
“Ficou bastante claro, nas últimas semanas, que Leão é, substancialmente, da mesma matriz que Francisco (…), que ambos veem a Igreja como Francisco a descreveu: um hospital de campanha que tem de cuidar dos mais marginalizados, particularmente dos pobres da sociedade”, afirma Christopher White, autor do livro O Papa Leão XIV: Por dentro do Conclave e O Amanhecer de um Novo Papado e professor na Universidade de Georgetown (Washington DC) a The Guardian.
… e afirmações que desagradam
Que se passou então nas “últimas semanas”? O analista do diário inglês sublinha quatro factos principais, o primeiro dos quais é a resposta indireta dado pelo Papa Prevost à política anti-imigração de Donald Trump: “Em comunidades cristãs há muito estabelecidas, como as do Ocidente, a chegada de muitos irmãos e irmãs do sul global deve ser encarada como uma oportunidade”. Oportunidade? Trump não deve ter gostado!
Depois o seu comentário a propósito da fixação exclusiva do movimento pró-vida nos EUA na campanha contra o aborto: “Alguém que diz: ‘Sou contra o aborto, mas concordo com o tratamento desumano de imigrantes nos Estados Unidos’, não sei se isso é pró-vida.” Se a primeira tomada de posição foi seguramente desagradável para os católicos mais ferrenhos do movimento MAGA, esta segunda é uma crítica direta ao modo como muitos cortam a moral católica às fatias e só se servem de uma.
Dias depois, numa conferência patrocinada pelas Nações Unidas, o Papa atacou outro ponto sensível das políticas da administração Trump, afirmando: “alguns líderes mundiais optaram por ridicularizar os sinais evidentes das mudanças climáticas, ridicularizar aqueles que falam do aquecimento global e até mesmo culpar os pobres justamente por aquilo que os afeta mais”.
Quarto facto: a publicação da sua primeira exortação apostólica, Dilexi te, sobre “o amor aos pobres”. Nela o Papa escreve que os cristãos “não devem baixar a guarda quando se trata da pobreza” e devem “continuar a denunciar a ‘ditadura de uma economia que mata’”.
Deste modo, e em pouco tempo, alguns comentadores conservadores passaram a apelidá-lo de “woke pope”, termo usado de forma pejorativa para associar alguém ao dogmatismo ou radicalismo de esquerda. No referido artigo de The Guardian, Sherwood cita o blog católico conservador Rorate Caeli que aconselha o Papa a “regressar ao seu anterior silêncio”, como quem sugere: “não se meta nisso!”
Ainda no mesmo artigo, Christopher White diz a The Guardian: “Um papa que por acaso é americano e que desconfia e critica o capitalismo desenfreado de livre mercado é, provavelmente, uma decepção para eles [conservadores americanos]. Francisco foi frequentemente desconsiderado pelos seus críticos conservadores nos EUA, que diziam que ele simplesmente não entendia o país. Mas agora eles não podem desconsiderar Leão tão facilmente.”
Sinodalidade: a pedra de toque
E nós, quem dizemos que ele é? Antecipar o significado deste pontificado que se anuncia longo (o Papa acabou de fazer 70 anos em setembro último) não parece fácil e é, seguramente, prematuro. Não só porque a sua eleição foi há cinco curtos meses, mas também, e principalmente, porque o lugar faz o homem. Cada cardeal eleito senta-se na cadeira de Pedro levando com ele a sua espiritualidade própria, o seu percurso de vida, as suas ideias, relações, amizades e convicções. Talvez também as prioridades e preocupações que traçou para si quando congeminou que poderia ser votado para ser o primeiro entre os pares. Mas, uma vez colocado à frente da Igreja Católica, tudo muda.
Essa nova circunstância, por mais que tenha sido antecipada, é um lugar único, um foco criador de uma realidade diferente de tudo o que antes foi vivido pelo eleito bispo de Roma por mais e melhor que para tal ele se tenha preparado. Nessa radical mudança permanece a personalidade. Como diz Christopher White: “O seu instinto é construir pontes. Por temperamento não é alguém que procure disputas e brigas. Mas também percebe a responsabilidade que recai sobre os seus ombros de usar o megafone que lhe foi dado em nome daqueles que não têm voz. Ele acredita que não se pode construir pontes sacrificando a sua integridade ou as causas que exigem que ele sobre elas se manifeste.”
Pelo que já nos foi dado ver, há pelo menos três causas sobre as quais Leão XIV não abdicará de se manifestar. E de se manifestar com profunda radicalidade: a construção da paz; a defesa da Casa Comum; e a erradicação da pobreza. Haverá um quarto tema, que a escolha do seu título indicia: a justiça nas relações de trabalho num mundo conformado pela inteligência artificial.
Na exortação apostólica Dilexi te, o Papa aprofunda a doutrina social católica, acrescentando-lhe toda uma reflexão que ‘oficializa’ a visão da teologia da libertação sobre os pobres como lugar teológico incontornável do encontro com Deus e como experiência da sua presença entre nós. Nem todos os católicos deram conta deste avanço, mas esta é a assinatura do Papa Prevost: não se pode professar a fé cristã sem proximidade à experiência do pobre, escuta do seu grito e compromisso com a sua libertação.
A radicalidade urgente e tranquila com que nos fala sobre a relação a que os católicos não podem escapar a propósito da paz, do presente e do futuro do planeta e da escandalosa pobreza em que vive boa parte da humanidade, compagina-se neste Papa com a pausa imposta aos temas “mais quentes” da disciplina interna da Igreja Católica. Neste campo, Leão XIV escolheu deixar em banho-maria os temas fraturantes que irromperam nos últimos anos do pontificado de Francisco: plena inclusão das pessoas LGBTQ; bênção de uniões homossexuais; alteração da visão da sexualidade e da doutrina moral individual; celibato dos padres; ordenação das mulheres… O tempo dirá se por prudência pastoral (consciência de que apenas uma minoria católica deseja e espera tais mudanças), ou se por convicção de fé mais funda.
Diante deste homem, cujos desígnios vão ficando cada vez mais definidos, está um processo, um conceito, uma palavra decisiva: sinodalidade. O modo como acarinhar, animar e promover o aprofundamento desta dinâmica lançada por Francisco ditará que Papa foi Leão XIV.
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