01 Julho 2025
“A sinodalidade não é apenas um estilo que se adota, mas a forma própria da Igreja de ser Igreja: uma Igreja que escuta, que discerne, que compartilha, que ama. Uma Igreja que, ao viver sinodalmente, manifesta aquilo que realmente é: ícone da Trindade e sacramento da esperança”, escreve José F. Castillo Tapia, padre jesuíta atuante na Amazônia brasileira junto aos povos indígenas.
A recente alocução do Papa Leão XIV ao Conselho Ordinário do Sínodo (26-06-2025) voltou a sublinhar que “a sinodalidade é um estilo, uma atitude que nos ajuda a ser Igreja, promovendo experiências autênticas de participação e comunhão”. Embora essa fórmula seja muito sugestiva do ponto de vista pastoral, convém esclarecer que a sinodalidade vai muito além de uma simples forma de agir ou de um “modo de falar” da Igreja. Na verdade, a sinodalidade está enraizada na própria natureza trinitária, sacramental e escatológica da Igreja, como tem enfatizado o Magistério e a reflexão teológica contemporânea. Neste artigo, mostraremos que a sinodalidade não é apenas um estilo evangélico, mas uma dimensão constitutiva do próprio ser da Igreja.
Em sua breve saudação aos membros do Conselho do Sínodo, o Papa Leão XIV ressaltou o impulso dado ao processo sinodal: “O legado que nos foi deixado, a meu ver, é sobretudo este: que a sinodalidade é um estilo, uma atitude que nos ajuda a ser Igreja promovendo experiências autênticas de participação e comunhão”.
Essa frase retoma a insistência de Francisco no “caminhar juntos” e destaca a dimensão participativa e comunional da sinodalidade. Nesse sentido, considera-se a sinodalidade como um modo de viver e evangelizar que abre novos canais de escuta e corresponsabilidade entre pastores e fiéis.
No entanto, esse ênfase no estilo – muito útil para a promoção pastoral da sinodalidade – corre o risco de restringi-la a um método ou atitude. O próprio Dicastério para o Sínodo faz uma distinção: a sinodalidade “designa antes de tudo o estilo peculiar que qualifica a vida e a missão da Igreja”. Mas acrescenta que não se esgota aí: existem estruturas e processos próprios da sinodalidade em nível local, regional e universal. Em outras palavras, embora se fale de “caminhar juntos” e de um estilo eclesial, a sinodalidade implica instituições, como conselhos pastorais, assembleias diocesanas, e processos de escuta e discernimento.
Essa dupla dimensão (estilo e estrutura) foi percebida pela Comissão Teológica Internacional em 2018 (CTI, 2018). Para ela, a sinodalidade é “antes de tudo um estilo peculiar… um modus vivendi et operandi” da Igreja. Mas também é composta pelas “estruturas e processos eclesiais” nos quais se expressa a natureza sinodal da Igreja em seus diversos níveis. A conclusão teológica é clara: a sinodalidade não é opcional nem periférica, mas uma dimensão constitutiva da Igreja [1].
Para compreender por que a sinodalidade possui raízes tão profundas, é necessário recordar a eclesiologia católica. O Concílio Vaticano II apresentou a Igreja como mistério pascal e como “sacramento, ou seja, sinal e instrumento da íntima união com Deus e da unidade de todo o gênero humano” (LG. 1). Isso significa que a Igreja, em Cristo, comunica a vida trinitária aos seres humanos e os reúne em uma só família. Esta dimensão sacramental da Igreja implica que a comunhão com o Deus Trino se realiza concretamente na comunidade dos crentes: “a união com o Deus trinitário e a unidade entre as pessoas humanas” é o conteúdo real (res) do Sacramentum Ecclesiae (CTI, 2018, n6).
Consequentemente, a sinodalidade - entendida como o “caminhar juntos” do Povo de Deus - reflete internamente esse dinamismo trinitário. Não se trata de uma novidade organizativa, mas do modo próprio de “viver e agir” da Igreja, que manifesta sua natureza de comunhão ao percorrer conjuntamente o caminho da fé (Ibid.). Como ensina a Comissão Teológica Internacional, a Igreja é comunhão (koinonia): todos os batizados participam de um único sacerdócio, inseridos numa comunhão hierárquica de vida e missão (CTI, 2018, n. 49-55).
O teólogo dominicano Yves Congar, um dos grandes protagonistas do Vaticano II, enfatizou esse ponto: “O plano total de Deus não se esgota no princípio hierárquico, mas supõe o complemento e a reciprocidade de um regime comunitário... O que vem primeiro é o Povo de Deus” (Le mystère du Temple, 1969, p. 82.). Assim, a Igreja é “antes de tudo” um povo, um Corpus Mysticum, uma comunhão espiritual que é sacramento da unidade.
Na mesma linha, Joseph Ratzinger (Papa Bento XVI) afirmou que, por sua natureza, “a Igreja é o concílio contínuo de Deus no mundo” (Teologia da Liturgia, 2005, p. 22.), ou seja, uma assembleia permanente sob o olhar de Deus. Essa imagem de concílio permanente sublinha que a autoridade eclesial deve ser pensada de maneira conciliar e participativa, não como um poder isolado. Contudo, Ratzinger também oferece uma nuance importante: a Igreja celebra concílios, mas é comunhão. Como ele escreve: “A Igreja não existe antes de tudo para deliberar, mas para viver a Palavra que lhe foi dada” (Ibid., p. 46.).
Logo, sua estrutura fundamental não é apenas sinodal, mas comunional. Esta ênfase na communio é igualmente central em Henri de Lubac, que destacou que a Igreja é comunhão eucarística vivificada pelo Espírito. Em suma, os grandes teólogos da eclesiologia contemporânea concordam: a comunhão trinitária se realiza na Igreja, e a diversidade de carismas entre os fiéis não é obstáculo, mas expressão da própria riqueza da unidade.
O Concílio Vaticano II já prefigurava o caminho sinodal ao destacar a dignidade e a missão comum de todos os batizados. A Constituição Lumen Gentium ensinou que todo o Povo de Deus participa dos ofícios de Cristo - sacerdote, profeta e rei -, implicando uma corresponsabilidade real na missão eclesial. Essa ênfase conciliar significou uma mudança hermenêutica profunda: passou-se a priorizar a comunhão do conjunto (“Igreja como Povo de Deus”) em relação à visão meramente piramidal e hierárquica.
O próprio Papa Paulo VI sublinhou que a renovação pós-conciliar exigia uma Igreja que integrasse clero e laicato, reconhecendo a ação do Espírito Santo em todos os seus membros. A comunhão eclesial, segundo o Concílio, encontra sua fonte e seu cume na Eucaristia. A cada celebração, “a unidade dos fiéis, que formam um só corpo em Cristo, se realiza e se manifesta pelo sacramento do pão eucarístico” (cf. LG 3; SC 47). Portanto, a sinodalidade - como caminho eucarístico - é uma expressão da própria essência da Igreja.
Além disso, o Concílio enfatizou que a autoridade episcopal está a serviço do Povo de Deus: “A hierarquia eclesiástica está posta a serviço do Povo de Deus para que a missão se realize... na lógica da prioridade do todo sobre as partes” (CTI, 2018, n. 49-55). Essa prioridade do todo é decisiva: a Igreja não é apenas uma sociedade hierárquica, mas um corpo espiritual, um sujeito coletivo que se edifica a partir da participação ativa de todos os seus membros.
A Comissão Teológica Internacional confirma isso ao afirmar que, embora o termo “sinodalidade” não apareça literalmente nos textos conciliares, ele expressa “o espírito do próprio Concílio”, cuja eclesiologia é, por essência, comunional. Portanto, a sinodalidade emerge naturalmente da compreensão conciliar da Igreja como mistério de comunhão, onde todos os batizados participam da missão e da construção eclesial segundo os carismas recebidos (CTI, 2018).
Os Papas posteriores ao Concílio Vaticano II aprofundaram esta visão comunional da Igreja. O Papa Francisco, em particular, descreveu a Igreja como uma “pirâmide invertida”, onde os que exercem a autoridade se colocam na base, como os menores, a serviço dos demais. Em suas palavras: “A sinodalidade, como dimensão constitutiva da Igreja, nos oferece o quadro interpretativo mais adequado para compreender o próprio ministério hierárquico” (Discurso no 50º aniversário do Sínodo dos Bispos, 17 de outubro de 2015).
A imagem da pirâmide invertida não é meramente simbólica, indica uma verdadeira reconfiguração da autoridade eclesial, que deixa de ser vista como domínio e passa a ser exercício de serviço, escuta e discernimento. Trata-se de um chamado à conversão institucional e espiritual.
No mesmo espírito, o documento Episcopalis communio (2018), sobre a natureza do Sínodo dos Bispos, afirmou que, quanto mais intensa é a comunhão entre os membros da Igreja, mais autêntica e eficaz é sua missão. O processo sinodal, estruturado em escuta, discernimento e deliberação, é a expressão concreta desta corresponsabilidade. Trata-se de um processo que parte das comunidades locais, atravessa o discernimento pastoral das Igrejas particulares e culmina nas instâncias universais da Igreja.
A Comissão Teológica Internacional, em seu documento de 2018, foi ainda mais incisiva: a sinodalidade é uma “dimensão constitutiva” da Igreja, e não um elemento opcional. Ela descreve a Igreja como um povo em peregrinação - metáfora escatológica - que, por sua própria natureza, caminha rumo à plenitude. E afirma claramente que: “A forma sinodal de seu caminhar expressa e promove a comunhão em cada Igreja local e na Igreja universal”.
A sinodalidade, portanto, não é um adorno pastoral, nem uma ferramenta administrativa. É a forma eclesial mediante a qual a comunhão da Igreja se manifesta e se realiza na história. O Povo de Deus, com seus diversos carismas e ministérios, vive sua missão no discernimento comunitário e no exercício corresponsável da escuta do Espírito. Isso significa que todo batizado é sujeito ativo da missão e da vida da Igreja - não por delegação, mas por vocação e graça.
As contribuições dos grandes teólogos do século XX ajudam a iluminar o alcance teológico da sinodalidade. Yves Congar, dominicano e perito no Concílio Vaticano II, insistiu que a Igreja é antes de tudo o Corpus Mysticum de Cristo. Em sua obra Le mystère du Peuple de Dieu, afirma que: “O plano total de Deus não se esgota no princípio hierárquico, mas supõe o complemento e a reciprocidade de um regime comunitário... O que vem primeiro é o Povo de Deus”.
Congar destacou que a estrutura hierárquica da Igreja só pode ser compreendida dentro da comunhão mais ampla dos batizados. A autoridade existe para servir à unidade do povo, e não para isolá-lo. A sinodalidade é, portanto, o reflexo dessa estrutura comunitária querida por Deus desde o início.
Joseph Ratzinger, por sua vez, embora mais cauteloso com uma eclesiologia “horizontalista”, reconheceu que a comunhão é o conceito-chave da teologia conciliar. Em sua conhecida obra Teologia da Liturgia, escreve: “A Igreja celebra concílios, mas ela é comunhão... A Igreja não existe antes de tudo para deliberar, mas para viver a Palavra que lhe foi confiada”. [2]
Ratzinger adverte contra uma compreensão reducionista da sinodalidade, como se a Igreja fosse apenas um parlamento ou uma instância deliberativa. No entanto, sua ênfase na comunhão sacramental e na escuta da Palavra aponta para uma sinodalidade vivida no coração da vida litúrgica, e não apenas nas estruturas consultivas.
Henri de Lubac, outro gigante da eclesiologia do século XX, sublinhou que a Igreja é, em sua essência, um mistério de comunhão que se torna visível no corpo sacramental. A Eucaristia, para De Lubac, é o lugar por excelência onde se realiza a unidade do Povo de Deus. Essa dimensão litúrgica e pneumatológica da comunhão está no cerne da experiência sinodal: os fiéis não caminham juntos apenas por vontade comum, mas porque são unidos pelo Corpo de Cristo e guiados pelo Espírito.
Hans Urs von Balthasar, por fim, via a Trindade como o modelo de toda comunhão. Em sua teologia, a Igreja deve refletir a beleza e a doação recíproca do amor trinitário. Para ele, a sinodalidade seria a expressão visível da lógica trinitária dentro da vida eclesial: “Cada pessoa da Trindade vive para as outras, em um movimento eterno de doação... A Igreja, como imagem da Trindade, só será fiel quando cada membro viver também em função dos outros, em amor e serviço”. [3]
Essa visão permite compreender a sinodalidade não como estrutura funcional, mas como expressão do ser eclesial mais profundo, uma participação histórica no mistério eterno da comunhão divina.
A sinodalidade, entendida apenas como um estilo pastoral, expressa certamente um aspecto valioso do ministério da Igreja: a escuta mútua, a abertura ao outro, a promoção da participação. No entanto, tais tonalidades pastorais devem ser situadas dentro da realidade eclesial mais profunda: a Igreja é um sujeito comunitário, configurado pela Trindade e orientado para a plenitude do Reino. Por isso, como afirmam tanto o Magistério quanto os principais teólogos contemporâneos, a sinodalidade é um caminho constitutivo da Igreja no terceiro milênio.
Reconhecer isso permite superar a tentação de reduzir a sinodalidade a modismos ou a meras “pesquisas pastorais”. Implica, ao contrário, colocar o acento na conversão eclesial integral: uma Igreja em que hierarquia e povo compartilham a autoridade como serviço; uma Igreja que cultiva o sensus fidei fidelium; uma Igreja conduzida pelo Espírito que sopra onde quer.
O atual processo sinodal, inaugurado por Francisco em 2021 e que culminou nas assembleias de 2023 e 2024, deve ser compreendido em chave trinitária e escatológica. A Igreja peregrina vive já, na história, a antecipação da comunhão escatológica prometida por Cristo. Como afirma a Comissão Teológica Internacional: “Já está presente e operante o destino escatológico de união definitiva com Deus e de unidade de toda a família humana”.
Caminhar sinodalmente é, portanto, viver desde já a comunhão definitiva, encarnada na realidade da Igreja e alimentada pela Eucaristia. A sinodalidade não é uma invenção contemporânea, nem um “recurso participativo” moderno. É o próprio mistério da Igreja, que caminha entre os povos, guiada pela luz do Espírito, como sinal e instrumento da comunhão trinitária.
Assim compreendida, a sinodalidade não é apenas um estilo que se adota, mas a forma própria da Igreja de ser Igreja: uma Igreja que escuta, que discerne, que compartilha, que ama. Uma Igreja que, ao viver sinodalmente, manifesta aquilo que realmente é: ícone da Trindade e sacramento da esperança.
[1] Comissão Teológica Internacional, A Sinodalidade na vida e na missão da Igreja, Vatican News, 2018: https://www.vatican.va/roman_curia/congregations/cfaith/cti_documents/rc_cti_20180302_sinodalita_po.html.
[2] RATZINGER, Joseph, Eucaristía, Comunión y Solidaridad. Boletín Oficial de la Diócesis de Cartagena, octubre 2002, p. 616.
[3] POLANCO, Rodrigo, Actualidad del pensamiento de Hans Urs von Balthasar. Revista Ecuatoriana de Ciencias Filosófico-Teológicas, 2024. p. 8.