24 Outubro 2025
“Os católicos falam muito da paz, mas não dão conteúdo nenhum a isso”, diz o historiador António Matos Ferreira, que orientará o curso sobre “Recomposição do catolicismo contemporâneo: intervenções e contributos dos papas (séc. XIX-XXI)”, promovido pelo 7MARGENS em parceria com a congregação das Servas de Nossa Senhora de Fátima.
O curso inicia-se na próxima terça-feira, 28, e pode ser frequentado presencialmente ou em linha, sendo o acesso por esta via facultado a todos os inscritos – para o fazer basta preencher o formulário disponível aqui. A inscrição tem o custo de 20 euros.
Numa entrevista ao 7MARGENS em que procura abrir perspectivas sobre alguns dos temas a abordar nas cinco sessões (sempre às terças, às 21h, na Rua da Escola Politécnica, 100, em Lisboa) o ex-drector do Centro de Estudos de História Religiosa da Universidade Católica afirma que, mesmo em questões como a guerra, “a impotência do papa é um grande poder”. E acrescenta: “Hoje, um dos crimes maiores que existe é a tortura” e os cristãos, que “têm pouco desenvolvida a reflexão sobre os direitos humanos e cidadania”, deveriam ser mais “criativos”.
António Matos Ferreira, que tem um vasto currículo na investigação da história religiosa em Portugal, percorre nesta longa conversa temas como a relação dos papas com o modernismo, o papel dos cristãos no debate e na luta pela paz e na defesa dos direitos humanos, e ainda a relação entre verdade, autoridade, liberdade e consciência.
Durante o dia de quinta-feira, 23, o 7MARGENS publicará a segunda parte da entrevista, que abordará questões como as alterações das relações sociais do trabalho desde o século XIX, que levaram à intervenção da Igreja e dos papas, a relação com o liberalismo, a escravatura e a colonização, a modernidade social, cultural e ética bem como a liberdade religiosa e a cidadania no interior das Igrejas cristãs.
A entrevista é de António Marujo, publicada por 7Margens, 22-10-2025.
A segunda parte da entrevista pode ser lida aqui.
Eis a entrevista.
A condenação que Pio X fez do modernismo continua ou não presente?
Pio X desautorizou o modernismo, mas muitos católicos não deixaram de ser modernistas. O meu trabalho mais desenvolvido é sobre Abúndio da Silva [1874-1914], que era um legitimista tradicionalista, e foi acusado de ser modernista. Porquê? Porque ele defendia duas coisas fundamentais: a liberdade de voto – o católico, como cidadão, tinha liberdade de voto, obviamente, dizia ele, desde que não fosse contra a Igreja e a religião, os tais valores – e a separação entre Estado e Igreja.
O que, na altura, era uma tese minoritária em Portugal.
Não importa, defendeu-a. A maioria dos católicos está à espera de que o Papa diga como devem ser católicos.
Abúndio da Silva reflecte uma perspectiva muito moderna…
Não é o único. O que ele considera é que nenhum grupo, ninguém pode impor a um católico onde [deve] votar. É a sua consciência.
O problema do mundo contemporâneo é o confronto entre aquilo a verdade e a autoridade. A modernidade diz que a verdade é plural, diversificada: a verdade de um cientista não é a mesma de um bruxo. Mas muitas pessoas vão ao médico e vão ao bruxo. As pessoas requerem a verdade na sua complexidade. Entendo que as instituições religiosas digam que há uma verdade. Mas mesmo essa verdade é vivenciada de maneira diferente. A verdade é sempre uma realidade plural, não é um problema de opinião: posso ter uma opinião, não quer dizer que tenha a verdade. A verdade é uma busca daquilo que é o essencial das coisas: “Eu sou a verdade, o caminho e a vida.”
De que modo se relacionam a verdade e a autoridade?
A verdade contrapõe-se e interage com a autoridade. A ideia da autoridade é a de fazer crescer e ouvir, mas as pessoas não têm essa ideia, têm ideia de que traduz apenas quem tem o poder. Fazer crescer, evidentemente com o princípio de conduzir. A verdade questiona a autoridade, mas a autoridade também questiona a verdade. Porque se se vai ao médico, reconhece-se que ele tem autoridade. Depois pode-se ir à bruxa e a bruxa diz outra coisa. E cada um escolhe. Há várias instâncias de autoridade. Tu escolhes, isso é a tua liberdade, tens a liberdade de escolher. E esta liberdade de esconder fundamenta-se onde? Na consciência.
Estas quatro dimensões, que estão em interação na contemporaneidade traduzem a problemática da autonomia do ser humano. Estas quatro vertentes são de ordem estruturante: a relação entre a verdade e a autoridade. A verdade e a autoridade com o problema da liberdade e a liberdade fundamentada na consciência. Portanto, a verdade é o que a consciência descobre num caminho pedagógico que só cada pessoa pode fazer. Donde, a importância que adquire a espiritualidade na época contemporânea.
Sempre houve espiritualidade, todos os povos têm espiritualidade. Só que a espiritualidade contemporânea é aquela que dirime a relação entre consciência e verdade, constituindo depois o valor da autoridade, aquilo que te faz crescer – é por isso que muitos pais não têm autoridade nenhuma e não fazem crescer: a criatura, filho, mulher, não descobre verdade nessa relação. O mundo moderno articula esses quatro elementos, relaciona-os e, de alguma maneira, valoriza a relação entre eles nas relações sociais e nas relações com Deus – ou se quisermos, nas relações religiosas, porque a religião é uma relação: seja com um Deus qualquer, seja com o Deus de Jesus Cristo, é sempre uma relação.
Leão XIV tem tomado posições muito acutilantes a condenar a guerra, aliás como Bento XV, João XXIII, João Paulo II… Mas o que pode um papa que não tem divisões militares, como Estaline diria?
A impotência é um grande poder.
O Papa Francisco, quando em 2015 se estava a pôr a hipótese de invadir a Síria, promoveu uma jornada de oração e, na semana a seguir, a escalada militarista baixou de tom. É essa a impotência de um papa? A de convocar outra lógica?
O cristão só tem um poder, que é Jesus. E Jesus chega pelo testemunho. Os católicos e os cristãos em geral só têm um poder, que é o seu testemunho. E o seu testemunho é muito diferente. Há as pessoas que querem fazer a guerra, as pessoas que se empenham em gestos de solidariedade com as vítimas da guerra, que são muitas, e estão sempre nos dois lados do confronto.
O testemunho não é uma imposição. O papa [podia] pegar num conjunto de católicos e invadia os territórios que estão em guerra, fazendo como [a rainha] Isabel de Portugal, que separou o pai do filho de andarem [à guerra]. E as pessoas muitas vezes apelam a esse tipo de gestos. Esquecendo-se de uma coisa: o fundamental da impotência é transformá-la em potência, em poder. O poder dos cristãos, em geral, tem a ver com o seu envolvimento: ninguém pode obrigar o outro a ser mártir, a ser militante. De onde a centralidade da consciência na realidade contemporânea. A consciência que cada um desenvolve. Não é a consciência rectamente formada. Rectamente formada por quem? As formações rectas dão grandes curvas…
A formação é aquilo em que cada um se forma. Mesmo quando se anda na escola, nem todos têm o mesmo aproveitamento. A consciência dos cristãos, a consciência individual, é a instância que pode desenvolver o testemunho e esse é muito diferente, muito diferenciado.
Quer dar um exemplo?
Os católicos falam muito da paz, mas não dão conteúdo nenhum a isso. A paz é não andar gente a morrer. Mas morre todos os dias. Quando batem aos católicos ou aos cristãos, isso é perseguição; mas quando são os uigures [na China], quando são os muçulmanos na Birmânia, quando são budistas, já conta pouco.
Hoje, um dos crimes maiores que existe é a tortura. Um dos maiores crimes é a legitimidade que os Estados, todos eles, consideram que têm direito de praticar. Todos são capazes de criticar a Inquisição, mas todos praticam, por vezes, coisas bem piores, bem extremadas. E aqui não é um problema de compreensão, é um problema de direitos humanos. Ora, os cristãos têm muito pouco desenvolvida a reflexão sobre os direitos humanos, a cidadania e, portanto, têm dificuldade de serem criativos.
Porque é que a geração mais nova não faz vigílias de oração à frente de embaixadas? Perdemos o filão que nos anos 70, ainda no tempo do pontificado de Paulo VI, deu frutos nas Américas, em França e na América Latina, sobre o problema das armas. Neste momento, basta ouvir o que diz sobre as armas a pessoa que se considera a mais poderosa no mundo: estão dispostos a ajudar a Ucrânia, que foi injustamente invadida, com o argumento que a Rússia iria ser atacada, mas a Rússia atacou; e o que vemos é um plano desenfreado de desenvolvimento tecnológico. Isso vai sobrar para todos, porque ligado a isso vem a capacidade exponencial de controlo sobre a sociedade.
Os vários papas têm condenado a corrida armamentista. Os cristãos deveriam estar nessa posição de condenação da corrida armamentista?
Têm de se interrogar. Se tiverem essa consciência, sim. Mas temos de acabar com a ideia de que todos têm de estar de acordo com o papa. Há gente que não está. Eu tenho de produzir, como cristão, aquilo que é próprio do Evangelho, que é uma proposta pedagógica e hermenêutica a partir da figura de Jesus, de como é que se pode olhar a realidade, a lei, o que acontece, etc., de uma maneira distinta.
Mas isso implica depois ter uma atitude consequente, social, política, etc.
Antes de querer ter uma acção, é preciso pensar. E a maioria dos católicos e dos cristãos não pensa, vive da opinião e está à espera que o papa venha dizer a última palavra. No fundo, todos querem que o papa [fale] para [causar] boa impressão, para que todos se convençam de que o catolicismo é bom. Este caminho da apologética que vem pelos posicionamentos está errado. Temos, por exemplo, na situação de Gaza o testemunho de um padre. O que é que ele faz? Nada. Manteve-se em Gaza. Não há outra possibilidade.
Excluindo episódios na história como o encontro de São Francisco com o sultão, podemos dizer que o diálogo interreligioso tem algumas décadas. É o Concílio Vaticano II que começa a permitir…
Começa antes, nos anos 50, com a acção de católicos.
E alguns protestantes.
Vittorino Veronese, que foi da Ação Católica e director-geral da Unesco, promoveu no Oriente, na Ásia, um encontro de religiões. Na [mesma] geração estava [Giorgio] La Pira [jornalista, membro da Acção Católica e das Conferências de São Vicente de Paulo, em Itália].
Sendo um processo recente na história da humanidade, como podemos olhá-lo?
Primeiro, há muita resistência. Não podemos esquecer que, por exemplo, um bispo importante em Moçambique, que era D. Sebastião Soares de Resende [1906-1967], tem textos contra o islão e contra o protestantismo nos anos 1950.
Já nos anos 60, D. Eurico Dias Nogueira [bispo de Vila Cabral, Moçambique] tem uma outra visão, uma outra atuação.
Mas não é o Concílio; o Vaticano II é o resultado disso, é porque as pessoas praticavam. Muitas pessoas acham que o problema da prática religiosa, no caso católico, é ir à missa. Não, é o que as pessoas praticam no seu dia-a-dia. Porque a eucaristia, que é centro para a vida cristã, é uma realidade quotidiana. Há um problema de inteligência da fé. As pessoas pensam converter todos os muçulmanos?
Isso seria impossível…
Anda por aí um medo de que o mundo muçulmano nos invada. Invade se as pessoas, nas suas convicções, se deixarem ser invadidas. O grande problema não é o islão, mas é o que decorre da relação com o islão, budismo, etc. E as outras religiões, como a católica e o cristianismo em geral, têm as suas correntes. O que é que nós fazemos disso? Só uma progressão pedagógica capaz de descobrir a inteligência das coisas nos há-de dizer o que é que aprendemos com a fé dos muçulmanos, com a riqueza do budismo, do hinduísmo – estou a falar para os católicos…
Há que encontrar uma frugalidade no ser religioso, no diálogo. Isto é, ao cristão compete, na frugalidade da vida, descobrir o que de rico os outros nos dão. Sem descobrir isso, nós não conseguimos acrescentar nada.
E essa tem sido uma característica das intervenções dos papas nesta área?
Esforçam-se. Porque é preciso pensar o que é que ainda Pio XI [1922-39] dizia sobre os diálogos ecuménicos.
Quando, nas sociedades cristãs, diante do movimento migratório, o problema que se põe à frente é o islão, voltámos aonde? Quais são os referenciais culturais do nosso cristianismo? O que é que os cristãos vão fazer? Andar à pancada com todos?…
Há três ou quatro temas que não apareciam no século XIX, por razões óbvias: a emergência climática, a Inteligência Artificial, as desigualdades acentuadíssimas em todo o planeta, a capacidade de destruição das armas nucleares… Nas intervenções dos papas, eles traduzem novas preocupações ou transportam linhas de continuidade?
Eu diria, só para relativizar um pouco: tudo isso já está no século XIX, porque é o produto do desenvolvimento do capitalismo e da maximização dos recursos humanos.
A Inteligência Artificial até vem antes, com a ideia de mecanizar o ser humano. A Inteligência Artificial é um ponto avançadíssimo de tudo isso. A ida ao espaço e a exploração espacial não tinham concretizações.
Mas já lá estão.
Basta ler Júlio Verne. Quem lê Júlio Verne, vê esse mundo utópico e distópico.
Então falamos sobretudo de linhas de continuidade na intervenção dos papas…
A doutrina da Igreja deve deixar de pretender ser uma ideologia que se contrapõe à outra. Porque não foi assim que nasceu. Nós é que hoje falamos de Leão XIII inaugurar a doutrina social da Igreja. A doutrina social da Igreja está no Evangelho.
E estava já nos primeiros séculos, nos primeiros teólogos.
Esses também complicaram muito. Está nos evangelhos. Os papas, através do seu pensamento, do seu magistério, verbalizam, em determinados momentos, problemas que são considerados ou que podem ser tomados como cruciais para o desenvolvimento humano.
Quando Paulo VI vai às Nações Unidas [em 4 de Outubro de 1965], ele diz que se apresenta como perito em humanidade. O trabalho ecuménico, o trabalho de ensino, deve ser um trabalho para humanizar os homens, as mulheres, as crianças, os jovens, as pessoas que já estão na última etapa da vida. E esse deveria ser o papel das religiões, das Igrejas e das instituições religiosas: humanizar. Nós andamos entretidos com coisas completamente secundárias. Sejamos claros: só vivendo frugalmente é que podemos contrariar os excessos de riqueza, de desperdício. Porque humanizar é concretizar aquilo que nós dizemos que é a criação de Deus.
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