24 Outubro 2025
Eles pareciam, em outro tempo, um projeto de sucesso da política litúrgica do Papa Bento XVI. Mas uma disputa sobre exorcismos traz à tona novos conflitos: os Redentoristas Transalpinos consideram que a Igreja, após o Concílio e sob o Papa Francisco, seguiu um caminho errado. Agora, um novo cisma ameaça, mais uma vez.
A informação é publicada por katolisch.de, 23-10-2025.
Há quase vinte anos, Bento XVI estendeu a mão aos amigos da liturgia pré-conciliar: com o motu proprio Summorum Pontificum, de 2007, ele facilitou o uso dos livros litúrgicos de 1962. Uma comunidade que aceitou essa mão estendida foram os Redentoristas Transalpinos. A história dessa comunidade, porém, não era simples. O grupo foi fundado em 1988 pelo ex-redentorista Michael Mary Sim, fora da Igreja.
Naquele momento, o irmão Michael Mary já não estava em comunhão com Roma, mas ligado à Fraternidade Sacerdotal São Pio X, fundada por Dom Marcel Lefebvre. Essa fraternidade já havia perdido o reconhecimento canônico e, em 1988, Lefebvre ordenou quatro bispos sem autorização papal, um ato considerado cismático por João Paulo II.
Nesse contexto nasceu a comunidade que vivia segundo a regra de Santo Afonso de Ligório, fundador dos redentoristas, mas fora da Igreja. Por isso, seus membros não podiam administrar os sacramentos nem exercer o ministério sacerdotal, mesmo sem um decreto formal de excomunhão.
Nos primeiros anos, a comunidade mudou várias vezes de sede. O primeiro mosteiro foi na ilha de Sheppey, no sul da Inglaterra, perto de Kent. Seis anos depois da fundação, eles se mudaram para um mosteiro na França. Desde 1999, vivem na ilha escocesa de Papa Stronsay, no arquipélago de Orkney, onde compraram toda a ilha e fundaram o mosteiro Golgotha. A ilha teria custado 250 mil libras, o que equivaleria hoje a cerca de 600 mil euros.
Ali, os Redentoristas Transalpinos viveram durante alguns anos, publicaram uma revista tradicionalista e organizaram uma confraria leiga, a Arquiconfraria das Almas do Purgatório, tudo ainda sem reconhecimento eclesial e, portanto, fora da Igreja.
A virada veio com Summorum Pontificum. O entendimento de Bento XVI do rito romano como uma “família litúrgica” com duas formas, a ordinária (reformada pelo Concílio Vaticano II) e a extraordinária (segundo os livros de 1962), abriu o caminho para que os Redentoristas Transalpinos voltassem à comunhão com Roma. Eles pediram à Comissão Ecclesia Dei a revogação das sanções canônicas. Em 01-07-2008, o irmão Michael Mary anunciou que todas as penalidades haviam sido retiradas: “Nossa comunidade alegra-se profundamente por estar, sem dúvida e em harmonia, em comunhão com a Santa Sé, porque nossos sacerdotes agora são canonicamente regulares”, escreveu ele.
Foi apenas o primeiro passo. Os sacerdotes foram reabilitados e puderam exercer o ministério, mas a comunidade ainda não era reconhecida oficialmente como ordem religiosa. Enquanto faltava o reconhecimento formal, eles só podiam atuar em sua ilha, não além dela.
Michael Mary declarou, porém, que pretendia obter o reconhecimento canônico como ordem. Como Papa Stronsay pertence à diocese de Aberdeen, a autoridade responsável era Dom Hugh Gilbert, um bispo beneditino. No processo de regularização, houve algumas mudanças: o hábito dos religiosos foi modificado para diferenciá-los dos redentoristas regulares, e o nome oficial passou a ser “Filhos do Santíssimo Redentor”. Desde então, “Redentoristas Transalpinos” tornou-se apenas uma designação informal.
Em 2012, D. Hugh Gilbert erigiu formalmente a comunidade como ordem de direito diocesano. Em 2017, o grupo expandiu-se para a Nova Zelândia, estabelecendo-se na diocese de Christchurch. Até então, a história parecia um caso de sucesso do projeto litúrgico de Bento XVI, que buscava promover a unidade e a paz litúrgica dentro da Igreja.
Mas tudo mudou. Em 2017, a imprensa neozelandesa revelou que os religiosos haviam realizado exorcismos sem autorização, inclusive em crianças, causando traumas psicológicos. A emissora Newshub relatou, com base em ex-membros, fiéis e instituições de apoio psicológico, ao menos sete casos de exorcismos. Dom Paul Martin, antecessor do atual bispo Dom Michael Gielen, confirmou apenas dois casos autorizados. Os religiosos negaram as acusações, afirmando que não haviam realizado exorcismos sem permissão nem em menores.
Após as reportagens, o Dicastério para os Institutos de Vida Consagrada ordenou uma visita apostólica à comunidade. Os resultados, conduzidos pelo bispo australiano D. Robert McGuckin, não foram tornados públicos, mas pareceram suficientemente graves para que D. Michael Gielen agisse com firmeza. Em julho de 2024, ele expulsou a comunidade da diocese e proibiu seus sacerdotes de exercerem funções sacerdotais.
Os recursos apresentados pelos religiosos ao Vaticano foram rejeitados em 2025. Em carta ao bispado, Gielen informou que a Santa Sé confirmara a decisão e declarou ilícitos os sacramentos ministrados pelos membros do grupo.
Essa derrota marcou uma virada. Em outubro de 2025, o capítulo geral do grupo reuniu-se em Papa Stronsay e publicou uma carta aberta “aos bispos, sacerdotes, religiosos e fiéis católicos”. O texto, na prática, constitui um ato de ruptura. Segundo o direito canônico, há cisma quando se recusa a submissão ao Papa ou a comunhão com os membros da Igreja sujeitos a ele. Embora a carta reafirme a “profunda comunhão com a Santa Mãe Igreja”, ela rejeita a autoridade do bispo de Christchurch e afirma que a “cadeia de comando” foi rompida.
Os religiosos rejeitam expressamente 16 pontos, incluindo documentos do pontificado de Francisco: a exortação Amoris Laetitia, por liberalizar o acesso à comunhão; Traditionis custodes, por restringir a liturgia pré-conciliar; e Fiducia supplicans, por permitir bênçãos a casais do mesmo sexo. Rejeitam também as medidas sanitárias contra a Covid-19, os gestos ecumênicos de Gielen e a própria ideia de uma Igreja sinodal.
Nada resta, portanto, da comunhão “harmoniosa com o Santo Padre” proclamada em 2008. Agora cabe às autoridades eclesiásticas agir. O bispo de Christchurch não pode impor sanções, mas o caso pode ser assumido pelo Dicastério para a Doutrina da Fé, responsável por delitos graves contra a fé. Esse organismo pode declarar formalmente a excomunhão em caso de cisma.
Dado o conteúdo da carta, que rompe com a “Igreja moderna” e o legado do Concílio Vaticano II, é previsível que os Redentoristas Transalpinos não aceitem tal julgamento nem se retratem. No fim, podem acabar exatamente onde começaram: em cisma, novamente fora da Igreja.
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