21 Outubro 2025
“Não podemos formar rapazes para representar a hierarquia junto aos fiéis e muito menos transformar pessoas em potenciais carreiristas. Isso é doentio. Temos hoje muita reflexão sobre a pessoa do presbítero e o seu papel. Falta-nos avançar no processo de formação desse modelo”, escreve Pe. Manuel Joaquim R. dos Santos, coordenador do clero da arquidiocese de Londrina e reitor do Seminário Teológico São Paulo VI.
Eis o artigo.
Trabalho num Seminário Maior, onde se formam jovens na fase da Configuração. Preparei-me para tal e não abro mão do que acredito piamente: a Igreja de Jesus Cristo precisa de homens completos, que assumam o desafio de serem construtores do Reino e servidores do ser humano, na concretude deste tempo e lugar. Com empatia, misericórdia e compaixão. O Papa Francisco deixou-nos, entre tantas pérolas, inúmeros textos e observações sobre a formação sacerdotal e o que o mundo tem direito de esperar de nós. Não somos funcionários do sagrado, nem um misto de anjos e homens! Carregamos um tesouro em vasos de argila e frequentemente precisamos revisitar o cheiro e a textura dessa terra de que somos feitos.
Tenho ido com mais frequência do que poderia visitar os meus pais em Portugal. Idosos, estão numa Casa de Repouso e eu como filho, cumpro com alegria o que se espera de mim. Faço-o por uma atitude de coerência e para mostrar a mim mesmo que a caridade começa em casa. Esta foi, também, a primeira lição aos seminaristas! Nessas minhas estadias, eu fico na residência da família, numa aldeia que me viu crescer e que agora está praticamente deserta. Tenho por hábito permanecer horas a fio na janela, observando cada uma das casas de pedra em ruínas.
Ali existiu muita vida. Filhos gerados e criados às ninhadas! Jovens que emigraram e idosos que partiram para Deus. Barulho de carros de bois e uma azáfama tremenda até aos anos oitenta. Eu preciso disto. É um retiro existencial profundo. Aqui eu cresci e fui saboreando a vida tal qual ela é, sem eufemismos ou retoques de maquiagem. O padre que sou agora não está divorciado do que fui nesta aldeia. Não percebo nenhum fosso, nenhum muro.
O garoto que afogava a galinha da vizinha ou beijou pela primeira vez nos recônditos de um paredão, sou eu! O padre! Cavalgava sem sela, livre e solto pelas pradarias, deixando que os ventos do futuro banhassem o meu ser. Deus me moldava sem trair o que criou, porquanto me fez homem em primeiro lugar. Mais tarde, ao buscar um sentido profundo para a existência, eu decidi que trilhar as pegadas de Jesus de Nazaré até Jerusalém, saciaria a fome e a sede de bem e de belo que pautava a minha juventude. Não olhei para trás. Devo isso a Dom Hélder Câmara, a Óscar Romero e a tantos outros.
Voltar à aldeia é mais do que necessário. É imprescindível. Ali não vivíamos obcecados por vestimentas douradas ou avermelhadas e nem fazíamos da vida paroquial o centro da nossa saga. A vida real e concreta me fez filho, irmão, tio e padrinho. O Manuel Joaquim! Até hoje. Quando meus conterrâneos me dizem (com frequência) que eu “não mudei nada desde a infância”, sinto a bênção de nunca ter traído a essência que mora em mim e que faz deste homem um padre.
Não tenho obsessão por torres altas, nem pedestais engalhardeados e muito menos por sermões moralistas e moralizantes! Nunca me aprouve ser mestre de alguém e considero o sacerdócio comum dos fiéis como uma pérola a estimar e valorizar. Voltar frequentemente a essa aldeia reforça a verdade sobre mim mesmo e me impede de alçar voos desconectados do que se espera de um presbítero.
No Seminário acompanho a vida de jovens sonhadores. É um excelente começo para quem deseja servir ao Povo de Deus em nome de Jesus de Nazaré. Mas é pouco. O sistema atual é tremendamente contraproducente. Recebemos rapazes vindos em geral de meios pobres, os elevamos a um patamar de classe média, com casa, comida, carro, faculdade e depois os devolvemos ao povo, munidos de uma mentalidade incompatível com o que deles se espera como servidores últimos dos últimos! Fascinados pelo “consumo do sagrado”. Esse choque existencial é revelador de doenças, como a esquizofrenia ou agravamento da bipolaridade! Rapidamente fincam os seus pés no patamar da sacralidade que pensam possuir e que erroneamente os afasta do “comum dos mortais”.
Os jovens que acolhemos nem sempre apreciam a aldeia onde nasceram e cresceram! A opção pelos últimos é imediatamente ideologizada e levam para o ministério a polarização que vem afetando a sociedade. Vindos de meios pobres, manifestam pudor imoral em mencionar sua origem ou em classificar o pobre como verdadeiro lugar teológico.
O Papa Leão, na sua Exortação Apostólica Dilexi Te, denuncia que “também os cristãos, em muitas ocasiões, se deixam contagiar por atitudes marcadas por ideologias mundanas ou por orientações políticas e econômicas que levam a injustas generalizações e a conclusões enganadoras”. E que muitos cristãos têm “preconceitos” em relação aos pobres, sentindo-se “mais à vontade” sem eles. “Há quem continue a dizer: ‘O nosso dever é rezar e ensinar a verdadeira doutrina’. Mas, desvinculando este aspecto religioso da promoção integral, acrescentam que só o Governo deveria cuidar deles, ou que seria melhor deixá-los na miséria, e ensinar-lhes antes a trabalhar”, lamenta o Papa.
Este sistema atual não se sustenta.
A Igreja não precisa de funcionários do sagrado. Os Seminários não treinam profissionais. Ou não seria esse o escopo! Mas, em rota de colisão do que deveríamos, empoderamos jovens que não vendo a hora “mágica” da ordenação, aspiram a ter a “sua paróquia, sua casa, seu carro, seu povo”! E assim, vamos reproduzindo um modus operandi contraproducente, gerador de dores, sofrimento e às vezes morte (vide aumento dos suicídios). Virou assunto corriqueiro encontrar padres recém-ordenados em podcasts ou outras mídias, dando aulas “sobre tudo”! Em não poucos casos, denotando uma teologia medíocre e resvalando para o devocionismo. Repito, isso não se sustenta e não pode realizar um ser humano que um dia decidiu seguir a Jesus Mestre e Pastor.
Os aspirantes ao ministério ordenado não deveriam sair das suas comunidades e família. Ali, realizando os estudos (um curso universitário livre, não necessariamente filosofia) e depois Teologia, eles seriam acompanhados pelos formadores, segundo um itinerário consistente e adequado. No último ano (ano de síntese), viveriam então uma experiência específica ou inseridos numa paróquia. Opções como esta exigiriam um investimento grande no SAV e nas equipes de formadores. É um ato de coragem e discernimento avançar para este modelo. Por óbvio, para não cairmos em simplismos, devemos provocar uma reflexão e estudo sobre o assunto.
Não é uma grade curricular que está em causa (apenas)! Não se trata de horários ou simplesmente da presença feminina no processo de formação. É muito pouco! O maior questionamento é sobre que padre devemos dar a uma Igreja que necessita evangelizar um mundo “pós-Deus”! A Igreja que concretamente o Papa Francisco nos convidou a redescobrir. Missionária, em saída, hospital de campanha e acolhedora de “todos”! Os seminários nascidos em Trento não respondem mais a estes desafios que o mundo coloca à Igreja. Não podemos formar rapazes para representar a hierarquia junto aos fiéis e muito menos transformar pessoas em potenciais carreiristas. Isso é doentio. Temos hoje muita reflexão sobre a pessoa do presbítero e o seu papel. Falta-nos avançar no processo de formação desse modelo.
Quando a Igreja optou por substituir as grandes casas de formação por pequenas comunidades formativas, ela estava certa. Foi um passo muito consistente. Ambientes familiares, “atendimento personalizado” e corresponsabilidade visível na vivência em comunidade. Porém, o grande upgrade de hoje será acabar com a “artificialidade” que ronda uma formação longe do habitat normal e em situações que beiram uma caricatura de “família”. Padres que vão acompanhar a saga dos irmãos nas múltiplas etapas da existência humana, não poderão ter estado ausentes, para depois voltarem “mestres” dessa mesma existência! Isso é caricato! É uma mentira.
O Seminário atual isola, aliena e cria bolhas artificiais que depõem contra a missão do presbítero atualmente. O próprio celibato, construir-se-á com liberdade no confronto com todas as nuances de uma vida real e concreta. Ainda que uma boa parcela dos candidatos, hoje, tenha tendências homossexuais, o desafio por uma vida dedicada exclusivamente ao Reino se afirmará como um valor, enquanto os seus passos trilham o chão da adolescência e da juventude como todos os outros. A opção pela vida presbiteral e religiosa não pode estar alheia à “aldeia que nos viu nascer e crescer”! Para isto, a figura do formador perspicaz, humano, próximo, eclesial é essencial.
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