17 Setembro 2025
Especialistas nomeados pela ONU concluem que Israel cometeu 4 dos 5 atos de genocídio em um relatório não vinculativo que será considerado em tribunais internacionais e tem como objetivo criticar os países que fazem vista grossa.
A reportagem é de Irene Castro, Javier Biosca Azcoiti e Icíar Gutiérrez, publicada por El Diario, 16-09-2025.
A Comissão Independente de Inquérito da ONU concluiu que Israel está cometendo genocídio na Faixa de Gaza, com o assassinato de mais de 64 mil civis; os danos mentais causados à população palestina; a perpetração intencional de danos físicos; e a imposição de medidas contra nascimentos. O massacre em Gaza recebeu, portanto, uma das mais fortes condenações antes mesmo de o assunto ser levado a julgamento e provocou uma reação virulenta do governo de Benjamin Netanyahu, imerso no extermínio total com o avanço da ofensiva na Cidade de Gaza, que chamou os especialistas da ONU de "representantes do Hamas". A pressão internacional buscada pelo relatório não vinculativo não teve, pelo menos por enquanto, nenhum efeito, como demonstra a indiferença de vários governos, incluindo a Comissão Europeia, que evita mencionar genocídio.
O que é a comissão e como ela funciona?
A Comissão de Inquérito foi criada a pedido do Conselho de Direitos Humanos da ONU em maio de 2021 para "investigar, no Território Palestino Ocupado, incluindo Jerusalém Oriental, e em Israel, todas as supostas violações do direito internacional humanitário e todas as supostas violações e abusos do direito internacional dos direitos humanos ocorridos até e desde 13 de abril de 2021". Embora seu mandato venha do mais alto órgão da ONU sobre o assunto e seus membros sejam eleitos pelos Estados, a Comissão de Inquérito não fala em nome da ONU. No entanto, seus relatórios podem ser utilizados por organismos internacionais.
Ao investigar, a comissão normalmente realiza entrevistas e reúne informações e documentação, que analisa e armazena em segurança. Israel se recusou a cooperar com a comissão. Em suas conclusões, o grupo se baseia no padrão probatório de "fundamentos razoáveis para concluir". O relatório de terça-feira não é o primeiro: desde os ataques mortais liderados pelo Hamas em 7 de outubro de 2023 e o início da guerra israelense, a equipe de especialistas documentou repetidamente supostos abusos e violações de direitos humanos em Gaza, incluindo o crime contra a humanidade de extermínio.
Quem compõe a comissão?
Até o momento, a comissão era composta por três especialistas independentes, todos não remunerados: Miloon Kothari (Índia), Chris Sidoti (Austrália) e Navi Pillay (África do Sul), que preside o painel. Pillay é uma renomada jurista internacional que, entre outras funções, atuou como Comissária das Nações Unidas para os Direitos Humanos, juíza do Tribunal Penal Internacional (TPI) e presidente do Tribunal Penal Internacional para Ruanda, que determinou que houve genocídio em Ruanda, de acordo com os critérios estabelecidos na Convenção sobre Genocídio de 1948.
Os três membros da comissão anunciaram sua renúncia em julho passado, alegando motivos pessoais e a necessidade de mudança. Pillay lembrou na terça-feira que, ao aceitar o cargo, disse que seria por dois anos, mas cinco já se passaram. Ele negou que sua saída tenha sido motivada por qualquer medo de Israel.
Dos assassinatos à destruição de embriões
A conclusão do relatório divulgado na terça-feira é que Israel está perpetrando genocídio porque cometeu quatro dos cinco atos que o definem como tal, quando perpetrados para "tentar destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso". A única atrocidade que fica de fora da definição é o deslocamento forçado de crianças de um grupo para outro, mas especialistas aceitam os outros quatro elementos como comprovados.
- Assassinatos. O relatório afirma que, entre 07-10-2023 e 31-07-2025, as forças armadas israelenses mataram 60.199 palestinos, dos quais 18.430 eram crianças e 9.735 eram mulheres. Desde então, o número aumentou para 64 mil. As causas incluem ataques a instalações civis, como residências ou instalações de saúde, ataques realizados durante evacuações ou em abrigos e as "condições desumanas" que causam as mortes de palestinos, incluindo a privação de alimentos, água e medicamentos.
- Danos físicos e mentais à população palestina. Além de ataques diretos, incluem maus-tratos e tortura de detidos, deslocamento forçado (mais de 600 mil pessoas), destruição ambiental e violência sexual e de gênero contra moradores de Gaza.
- Condições de vida projetadas para provocar destruição. O extermínio da população palestina envolve a destruição de instalações essenciais, a privação do acesso à saúde e o bloqueio do suporte básico de vida (água, alimentos, eletricidade, etc.).
- Medidas destinadas a impedir nascimentos. “O ataque à clínica de fertilização in vitro Al-Basma, a maior clínica de fertilidade em Gaza, que supostamente destruiu cerca de 4 mil embriões e 1 mil amostras de espermatozoides e óvulos não fertilizados, foi uma medida destinada a impedir nascimentos entre palestinos em Gaza.”
“O que é particularmente significativo neste relatório é que ele também dá atenção a formas não físicas de destruição, como a inflição de danos mentais graves a palestinos e a destruição de sítios culturais e religiosos, como parte do ato de impor deliberadamente ao grupo condições de vida calculadas para causar sua destruição física total ou parcial. Outro ponto importante é que o relatório enfatiza que, ao avaliar se o padrão de conduta de Israel configura intenção genocida, atenção especial deve ser dada à perseguição de crianças e aos atos de violência sexual”, explica Sonia Boulos, professora de Direito Internacional na Universidade Antonio de Nebrija.
Implicações legais
O relatório não é juridicamente vinculativo para Israel ou para os estados que cooperam com ele, mas é relevante para processos judiciais em andamento, incluindo o caso de genocídio aberto no Tribunal Internacional de Justiça a pedido da África do Sul.
“O Artigo 38 do Estatuto da Corte Internacional de Justiça estabelece que os escritos dos publicistas mais qualificados constituem um meio auxiliar para a determinação das normas de direito internacional. Nesse sentido, o relatório pode ser considerado uma fonte subsidiária de direito internacional. Por se originar de uma comissão das Nações Unidas, exercerá, sem dúvida, uma influência significativa nos processos em andamento”, reflete Boulos, especialista em direito internacional que advogou na Associação pelos Direitos Civis em Israel, onde litigou inúmeros casos perante a Suprema Corte de Justiça por seis anos.
Como a intencionalidade é demonstrada
Especialistas da ONU rejeitam a defesa contra o Hamas, a derrota da organização terrorista e a libertação dos reféns como objetivos finais da operação militar por vários motivos. Um deles é que os ataques desde os atentados de 7 de outubro "não ocorreram isoladamente": "Foram precedidos por décadas de ocupação ilegal e assentamentos ilegais, com segregação racial ou apartheid, sob uma ideologia que exigia a expulsão da população palestina de suas terras e sua substituição."
O relatório também lembra que relatórios anteriores da mesma comissão deixaram claro que, embora "as autoridades israelenses tenham consistentemente apresentado objetivos militares para suas operações em Gaza", "suas ações e consequências indicaram outras motivações, incluindo vingança e punição coletiva". Ele também aponta declarações públicas de líderes israelenses como "evidência direta que expressa a intenção de destruir os palestinos em Gaza".
A Comissão desmonta o argumento de Israel de que sua campanha militar carecia da intenção especial (dolus specialis) necessária para o genocídio, demonstrando que nem a alegação de necessidade militar nem a de legítima defesa poderiam explicar o escopo e a natureza de suas ações. Israel sustentou que suas operações foram direcionadas a objetivos militares legítimos — neutralizar o Hamas, resgatar reféns e se proteger no exercício da legítima defesa —, mas a Comissão considera isso inconsistente tanto com as evidências diretas quanto com as circunstanciais”, observa o professor.
“Crucialmente, a Comissão enfatiza que a existência de objetivos militares, políticos ou de autodefesa não exclui a intenção genocida, visto que o propósito genocida pode coexistir com outros objetivos; o que importa é se a conduta demonstra a intenção de destruir, no todo ou em parte, um grupo protegido. Aplicando essa estrutura, a Comissão conclui que tanto as declarações diretas quanto a única inferência razoável derivada do padrão de conduta confirmam a presença de intenção genocida, e que o apelo de Israel à necessidade militar ou à autodefesa não poderia explicar plausivelmente a natureza sistemática e desproporcional de sua operação”, conclui.
Alerta outros países contra a cumplicidade
Mas Israel não é o único que deveria se sentir desafiado por este relatório. “Como decidiu a Corte Internacional de Justiça (CIJ) no caso do genocídio na Bósnia, o dever de prevenção exige que os Estados Partes empreguem todos os meios razoavelmente disponíveis para evitar o genocídio, mesmo quando os atores em questão não estejam sob seu controle direto. Esse dever surge quando um Estado sabe, ou deveria saber, de um risco grave de genocídio. Isso inclui garantir que empresas e indivíduos sob sua jurisdição não auxiliem ou incitem o genocídio, cooperar com investigações internacionais (incluindo aquelas do Tribunal Penal Internacional) e apoiar medidas para fazer cumprir as ordens da CIJ”, afirma Boulos.
O Tribunal também estabeleceu uma distinção entre a obrigação de prevenir o genocídio, prevista no Artigo 1º da Convenção, e a cumplicidade no genocídio, prevista no Artigo 3º, alínea e). A cumplicidade 'exige a adoção de alguma ação positiva destinada a prestar auxílio ou assistência aos perpetradores do genocídio', enquanto a violação da obrigação de prevenir 'resulta simplesmente da falha em adotar e implementar medidas adequadas para impedir que o genocídio seja cometido'", acrescentou Boulos.
Os Estados-Membros estão, portanto, cientes da situação. “A obrigação de prevenir e punir o genocídio aplica-se não apenas ao Estado responsável, mas a todos os Estados Partes na Convenção sobre o Genocídio e, na verdade, a todos os Estados abrangidos pelo direito internacional”, afirma o relatório, apontando datas anteriores para a sua consideração, como as medidas cautelares solicitadas pelo Tribunal Internacional de Justiça em janeiro de 2024.
Aponta o caminho para um embargo de armas
É por isso que o relatório aponta um embargo de armas a Israel como uma das medidas que seus parceiros podem tomar para prevenir o genocídio, que é sua obrigação legal. "Ao afirmar a plausibilidade do genocídio em Gaza, a CIJ alertou todos os Estados Partes. Consequentemente, o fornecimento contínuo de armas a Israel não apenas constitui uma violação da obrigação de prevenir o genocídio prevista no Artigo 1, mas pode muito bem equivaler à cumplicidade em genocídio prevista no Artigo 3(e). Essa conclusão é inescapável", explica Boulos.
Esta não é a única exigência feita a outros países. A comissão também exige que eles garantam que as empresas que operam em seus territórios não colaborem com genocídios, que facilitem investigações e que cooperem com o Procurador do Tribunal Penal Internacional.
Quem são os genocidas?
“Com base em provas inteiramente conclusivas, a Comissão conclui que as declarações das autoridades israelenses constituem prova direta de intenção genocida. Além disso, com base em provas circunstanciais, a Comissão considera que a intenção genocida foi a única conclusão razoável que se pôde extrair do padrão de conduta das autoridades israelenses. Portanto, a Comissão conclui que as autoridades israelenses e as forças de segurança israelenses têm a intenção genocida de destruir, no todo ou em parte, os palestinos na Faixa de Gaza”, concluem os especialistas.
Além do fato de um Estado estar perpetrando genocídio, a Comissão aponta os culpados. "Com relação à incitação ao genocídio, a Comissão conclui que o presidente israelense Isaac Herzog, o primeiro-ministro Benjamin Netanyahu e o então ministro da Defesa, Yoav Gallant, incitaram a prática do genocídio e que as autoridades israelenses não tomaram medidas contra eles para punir essa incitação." No entanto, reconhece que não avaliou o papel de outros membros do governo, como os ministros da Segurança Nacional e das Finanças, Itamar Ben-Gvir e Bezalel Smotrich, que foram sancionados por vários países, incluindo a Espanha. Acredita que sua conduta deve ser analisada.
Leia mais
- Comissão da ONU acusa Israel de genocídio em Gaza
- Relatório da ONU acusa Israel de “atos genocidas” contra palestinos e violência sexual em Gaza
- Estudiosos acusam Israel de cometer genocídio em Gaza
- Contra o genocídio palestino, o sumud como força inabalável de resistência. Entrevista especial com Ashjan Sadique Adi
- Como nasceu o termo genocídio. Não havia palavras
- "O genocídio israelense em Gaza não vai parar porque é lucrativo; há pessoas ganhando dinheiro com isso". Entrevista com Francesca Albanese
- O debate sem fim sobre o termo genocídio e a capacidade de reconhecer o mal. Artigo de Rosario Aitala
- Quando negar o genocídio é a norma. Artigo de Martin Shaw
- "É genocídio, parte meu coração, mas agora preciso dizer". Entrevista com David Grossman
- Hamas e suas táticas de ataque a bases: Israel corre o risco de pagar um alto preço por invadir a Cidade de Gaza
- Um extremismo alimenta outro: é por isso que o Hamas continua de pé. Artigo de Mario Giro
- “O Hamas existe desde 2006, a tragédia palestina há 75 anos”. Entrevista com Raniero La Valle
- O plano de Netanyahu para ocupar Gaza vai a votação. E os EUA querem administrar a ajuda
- Netanyahu quer ocupar toda a Faixa de Gaza, apesar das dúvidas do exército
- Negociações de trégua em Gaza estagnam enquanto Israel avança com ofensiva que deslocou 180 mil pessoas em 10 dias
- "Israel e seus apoiadores desencadearão o caos pelo mundo". Entrevista com Pankaj Mishra