Neoliberalismo apresenta-se como uma descrição da ordem natural, diz o jornalista
Em A doutrina invisível, o jornalista, ambientalista e terror profissional dos ricos e governos tíbios, George Monbiot, alia-se ao cineasta Peter Hutchison para rastrear como uma filosofia marginal dos anos 1930 foi adotada pelas elites como escudo, armadura e catecismo. E como acabou disfarçada de lei natural: algo tão inevitável quanto a gravidade, mas muito mais rentável para poucos. Como uma ideia tão impopular conseguiu se impor como senso comum global?
Segundo Monbiot, a armadilha foi perfeita: os ricos se convenceram de que se tornaram ricos por méritos próprios, e os pobres de que sua miséria era culpa deles. Se você não vence é porque não se esforçou [...]. No neoliberalismo mais selvagem, a culpa do sistema é assumida pelo indivíduo e, ainda por cima, com um sorriso de coach.
O problema, claro, é que “não há alternativa”, como sentenciou Margaret Thatcher. Ela, juntamente com Reagan, foi uma das forças motrizes deste capitalismo turboalimentado e seu legado perdura até mesmo na esquerda. “Minha maior conquista foi Tony Blair”, gabou-se a Dama de Ferro. Para Monbiot, o ex-primeiro-ministro britânico e sua Terceira Via - juntamente com a presidência decepcionante de Obama - são a prova de que o neoliberalismo não só colonizou a política, como também adentrou até na intimidade da esquerda.
Nesta entrevista, Monbiot não poupa lenha: dispara sem olhar a quem e alerta que o neoliberalismo não precisa mais sequer fingir amor pela democracia. Trump, Bolsonaro, Orbán e até mesmo Keir Starmer são sintomas do que está por vir. E o que está por vir, alerta, não parece nada bom. Haverá alternativa ou Thatcher estava certa?
A entrevista é de Ibai Azparren, publicada por Naiz, 27-07-2025. A tradução é do Cepat.
Seu livro começa dizendo: “Imaginemos que o povo da URSS nunca tivesse ouvido falar de comunismo”. Isto aconteceu com o neoliberalismo? Por que é uma doutrina invisível?
Porque se disfarçou. Inicialmente, nos anos 1930, 1940 e 1950, seus criadores estavam encantados de se autodenominarem neoliberais. Depois, abandonaram o rótulo e começaram a dizer que não era uma ideologia, nem mesmo uma filosofia, mas simplesmente uma descrição da ordem natural. Como a gravidade ou a seleção natural. É assim que o mundo funciona. Queriam que sua doutrina extrema parecesse inevitável e qualquer objeção a ela antinatural. Deram-lhe nomes como “thatcherismo”, “reaganismo”, “monetarismo” ou “economia de oferta”. Todos igualmente enganosos.
O neoliberalismo era uma ideologia marginal nos anos 1930. Quais mecanismos conseguiram transformá-lo no que se supõe ser uma “condição natural” da existência humana?
Muito dinheiro. Esta foi a chave. Enquanto a maioria das pessoas considerava suas ideias bastante desagradáveis, houve outras que ficaram encantadas: eram os mais ricos do planeta. E, após a Segunda Guerra Mundial, começaram a financiar o movimento neoliberal.
O capitalismo sempre tentou derrotar a democracia e, por um tempo, teve sucesso por meio do fascismo. Mas, em 1945, o fascismo teve certos... inconvenientes. E foi então que o neoliberalismo apareceu, com livros como O caminho da servidão, de Friedrich Hayek, e Burocracia, de Ludwig von Mises.
Não é que dissessem abertamente “vamos destruir a democracia”. Na verdade, não acredito que realmente pretendessem isso, mas suas ideias serviam perfeitamente para isso: diziam que as decisões tinham de ser tomadas pelo “mercado”, não pela política. E isto, na prática, significa deixar que os ricos façam o que quiserem, sem interferências incômodas como sindicatos, impostos ou serviços públicos.
E como conseguiram transformar essas ideias em senso comum?
Criaram uma estrutura argumentativa que conseguiam vender. Fundaram a Sociedade Mont Pèlerin e, com ela, uma “Internacional Neoliberal”: think tanks que não pensavam muito, mas pressionavam muito bem, departamentos acadêmicos, jornalistas afins, assessores etc. E claro, se você tem dinheiro suficiente, pode contratar pessoas muito inteligentes para refinar as mensagens, testá-las, adaptá-las e repeti-las até que comecem a soar razoáveis. Aos poucos, suas ideias foram penetrando na classe política.
Milton Friedman disse claramente: era necessário esperar que a social-democracia entrasse em crise. E sendo possível acelerar, melhor. Então, derrubaram os controles de capital, os controles cambiais... O capital pressionou muito para se libertar dessas restrições keynesianas. E por essa e outras razões, no final dos anos 1970, a social-democracia keynesiana teve grandes problemas. E este foi o momento em que os neoliberais puderam intervir e dizer: “Aqui está a nossa solução. Aqui está a alternativa”. Chegaram com a sua solução debaixo do braço. E com Thatcher e Reagan esperando a sua vez.
Além de Thatcher e Reagan, você diz que a principal vitória do neoliberalismo foi penetrar na esquerda. Qual foi o dano provocado pela “Terceira Via” de Tony Blair e Bill Clinton?
Provocaram danos em muitos níveis. Primeiro, ao minar o Estado distributivo, mas também ao destruir a fé na política. Como a política foi capturada pelo neoliberalismo – tanto à direita, quanto à esquerda –, a possibilidade de escolha desapareceu. O neoliberalismo reduziu o que o governo consegue fazer, independentemente de qual seja o governo. Para eles, o governo deve intervir menos, mudar menos. E isto significa que os ricos podem fazer o que quiserem e o capital circular sem restrições, ao passo que o poder do Estado encolhe.
E as pessoas acabam renunciando à política...
É o que vemos agora no Reino Unido. Elegemos um governo trabalhista com a promessa de “mudança”, e não houve qualquer mudança. De fato, em muitas coisas são piores que os conservadores: mais cortes, mais austeridade, mais destruição do ecossistema, e seguem fornecendo armas a Israel em pleno genocídio. Tudo isto vai minando a esperança. E então, uma vez e outra, aparece a extrema-direita.
São oportunistas. Não importa quais políticas defendem, querem poder e farão de tudo para obtê-lo. Apropriam-se de todos os tipos de narrativas e dizem: “O sistema político está falhando, sua vida está piorando. A culpa é dos migrantes, dos muçulmanos, das mulheres, das pessoas trans...”. De qualquer um, menos do capital. Dizem que estão fora do sistema, que vieram para varrer tudo. E mesmo sendo os mais corruptos, sua promessa tem eco porque a política tradicional não oferece mais absolutamente nada.
Isto cabe a Trump, um oportunista?
Cara, não é exatamente um neoliberal. Tem políticas extremamente neoliberais, como desmantelar departamentos governamentais inteiros, cortar de forma massiva o Estado, baixar impostos para os ricos... Mas também tem algumas políticas que não são, como as tarifas ou tentar acabar com a globalização, por exemplo. É isto que estou dizendo sobre a extrema-direita: são oportunistas. Ele entrou em um vazio político. Em uma situação em que a política tradicional fracassou para as pessoas. E ele, como oportunista, conseguiu explorar essa situação.
Em seu livro, você critica o ex-presidente estadunidense, Barack Obama, por desperdiçar a crise financeira de 2008. Foi uma oportunidade perdida?
Uma enorme oportunidade perdida. De fato, toda a sua presidência foi. Tinha um apoio popular gigantesco, podia ter feito quase tudo e optou por não fazer praticamente nada. É uma tragédia. Era um homem muito encantador, muito elegante, mas sem nenhum compromisso político firme, nem objetivos claros. Muito semelhante a Keir Starmer, atualmente no Reino Unido, que não é encantador, nem elegante, mas também não tem nenhum compromisso firme com qualquer política em particular. E, além disso, está cercado por assessores maquiavélicos, alguns deles profundamente sinistros.
Voltando a Obama, o que ele poderia ter feito com esse capital político?
A crise financeira foi a oportunidade perfeita para dizer: “Vamos construir algo novo, algo melhor, um sistema mais distributivo, uma sociedade mais justa, mais verde”. E não fez nada disso. Telefonou para os bancos, convocou-os para uma reunião, e eles pensavam que seriam repreendidos, que a eles seriam impostas novas regras, que a festa tinha acabado. Mas, em vez disso, Obama perguntou: “Do que vocês precisam?”. E eles responderam: “Muito dinheiro... muito, muito dinheiro, e a liberdade de fazer o que quisermos”. E foi exatamente isto que conseguiram.
Então, em vez de usar seu poder para transformar o sistema, ele o usou para consolidar a destruição da política como ferramenta de mudança. E o mais impactante e trágico é que representava a esperança. Tinha por trás dele uma enorme massa de pessoas que queriam uma mudança, mas uma das primeiras coisas que fez quando chegou ao poder foi cortar laços com os movimentos sociais que o levaram até lá. Em vez de mobilizar as pessoas – porque se você está em qualquer ponto à esquerda de Vlad, o Empalador, precisa mobilizar as pessoas se quiser ter sucesso na política -, ele as ignorou e disse: “Eu me encarrego disso”. E não cuidou de nada.
Após a austeridade de 2008, a pandemia e o retorno do protecionismo de Trump, estamos vivendo o fim do neoliberalismo ou sua versão mais franca?
Bem, sem dúvidas, Trump está colocando fim a algo, mas não está claro ao quê, e não sabemos o que virá depois. Pode ser a fase final e autodestrutiva do neoliberalismo ou a passagem a algo ainda pior. Mas, nem ele e nem o trumpismo se sustentarão. São uma etapa intermediária em direção a outra coisa. E é justamente este o momento em que a esquerda deveria intervir e oferecer uma alternativa, mas nós o estamos tornando fatal. Quando nos perguntam o que queremos, as respostas vão de “keynesianismo requentado” a “um pouco menos de neoliberalismo”. Há um leque muito amplo de respostas, a maioria bastante vagas. Não temos um programa claro e é urgente construí-lo.
As propostas não são ousadas o suficiente?
Para começar, não estamos coordenados. Sempre falamos de coletivismo e solidariedade, mas brigamos como gatos em um saco. Somos muito individualistas. A direita, que prega o individualismo, age como um cardume: todos dizem a mesma coisa e aplicam as mesmas políticas ao mesmo tempo. Não estou dizendo que devemos imitá-los, mas devemos nos coordenar muito melhor em torno de um conjunto claro de políticas.
Existem ideias brilhantes por aí, propostas fantásticas de muitos pensadores, mas todas competem entre si. E o que precisamos urgentemente é de um movimento que agilize essas ideias, que tire o melhor delas e crie um programa coerente, e então conte uma história muito simples e clara que permita que as pessoas entendam esse programa.
Acontecerá algo que traga a esperança.
Nunca se sabe de onde virá a esperança. Tenho visto isso ao longo da minha carreira: justamente quando tudo parece perdido, surge um grande movimento social. Às vezes, dos lugares mais inesperados, como uma garota de 15 anos sentada em frente ao Parlamento sueco. Quem imaginaria? É assim que pode começar.
Por outro lado, o que está acontecendo agora nos Estados Unidos, onde há grandes protestos, é muito animador. Parece um bom começo, mas não basta se opor ao poder. Também é preciso propor uma alternativa e esta tem sido a grande fragilidade dos movimentos sociais, nos últimos vinte anos: muita oposição, pouca proposta.
O melhor exemplo é o Occupy [Wall Street]: foi brilhante ocupando espaços, chamando a atenção..., mas deliberadamente não tinha qualquer programa político. Sinto muito, mas isto não basta. É necessário dizer às pessoas o que se almeja, mostrar uma saída clara para algo melhor. E contar isto com uma narrativa simples: é isto, é isto o que acontece com você, esta é a causa, este é o caminho e é assim que vamos percorrê-lo.
Todos os movimentos bem-sucedidos agiram assim. E é aí que está a nossa falha. Em A doutrina invisível, Peter e eu propomos alguns caminhos possíveis, mas não pretendemos ser os gurus com todas as respostas. Não somos Marx e Engels. A política não deveria mais funcionar assim; não deveria depender de homens brancos envelhecidos alisando a barba e dizendo: “Aqui está a solução”. Precisa ser um movimento enorme que reúna a inteligência coletiva das pessoas. Nós apenas dizemos: “Olha, pode ser isto ou aquilo”. É preciso ter ideias, sim. Contudo, essas ideias precisam ser construídas e integradas a outras. É assim que deve funcionar.
No seu livro, você dá muita importância à participação democrática, no entanto, a esquerda continua precisando do Estado liberal?
Sim. Não acredito que sejam coisas contraditórias. Quero um Estado forte que taxe os ricos, financie serviços públicos, crie uma rede de segurança econômica e melhore a vida das pessoas. Contudo, isto não basta. Um dos erros do keynesianismo foi pensar que tudo poderia ser feito a partir do centro. No fim das contas, isto só cria dependência do Estado e fragiliza a comunidade. Precisamos das duas coisas: provisão estatal e cidadãos politicamente empoderados, que sintam que controlam a política, não que a política os controla.
Vivemos em democracias muito frágeis, não é mesmo?
É que nossos sistemas hierárquicos não foram projetados para a democracia; a democracia foi acrescentada depois, como um remendo. No Reino Unido, o símbolo do Parlamento é uma coroa: poder que não presta contas, por trás de um portão de castelo com pontas, com correntes dos dois lados. O sistema está dizendo a você o que é, acredite. E nossa estrutura política é pré-democrática.
Sim, há eleições a cada cinco anos, mas uma vez com maioria, um governo pode fazer o que quiser. Com a tecnologia digital, poderíamos ter uma democracia muito mais participativa e deliberativa.
Não deveríamos ser entes suplicantes, esperando que o Estado centralizado nos deixe cair algo de cima, mas que, em muito maior grau do que hoje, possamos tomar decisões coletivas em nível local e transferir essas decisões para cima, em vez de tê-las impostas de cima.
Como ambientalista, o que lhe sugere ver Elon Musk gastando bilhões para explorar Marte, convencido de que algum dia poderemos viver lá? Será este o capítulo final do capitalismo: assumir que este planeta já está perdido e procurar outro para explorar?
O capitalismo está sempre expandindo sua fronteira: queima recursos, comunidades, ecossistemas e, depois, passa para o próximo lugar. Seu padrão é: ascensão, colapso, abandono. E agora, o abandono atingiu o planeta inteiro. Pessoas como Musk e Bezos querem partir. Bem, que se dane, que partam e nós pagamos a passagem deles se necessário, pois aqui na Terra não estão ajudando. O problema é que parecem determinados a nos arrastar com eles.
Mas eles, os neoliberais, que têm muitos seguidores, transformaram a “liberdade” em sua bandeira, e funcionou. Voltando ao início: Foram mais inteligentes, mais estratégicos... ou simplesmente mais ricos?
As três coisas. Ser mais rico torna você mais inteligente, não porque o dinheiro confere inteligência, mas porque você pode contratar pessoas muito inteligentes. Podem pagar os salários mais altos e, assim, ter pessoas muito astutas trabalhando para eles. Contudo, o nosso lado tem os números: milhares de pessoas desesperadas por uma mudança real. Só que precisamos dar a elas um eixo, uma história que diga: “Aqui, há ideias coerentes, aqui, há um futuro melhor, e você pode fazer isso acontecer, trazendo seu próprio brilhantismo”. Toda mudança real precisa de um ecossistema de pessoas, não apenas manifestantes e jornalistas radicais, também contadores radicais, advogados, economistas, professores, jardineiros, mecânicos...
Quando as pessoas me perguntam “o que eu posso fazer?”, eu sempre digo: “Faça o que você já sabe fazer, mas coloque isto a serviço desta tarefa de transformação”.