08 Agosto 2025
"Parafraseando Shakespeare, há mais segredos, sigilos e mistérios no vaivém da migração do que pode supor nossa vã sociologia".
O artigo é de Alfredo J. Gonçalves, padre, CS e vice-presidente do Serviço Pastoral dos Migrantes - SPM/São Paulo, 07-08-2025.
No domingo, dia 3 de agosto de 2025, na costa sul do Iêmen, naufragou mais uma embarcação apinhada com imigrantes indocumentados. Foram encontrados 76 corpos sem vida, ao passo que o destino de dezenas de outros “permanece desconhecido, considerados como desaparecidos”. Inútil afirmar que o desaparecimento, neste caso, equivale ao próprio sepultamento nas águas traiçoeiras de mares e oceanos que há décadas veem se tornando “cemitério de migrantes”. Sempre de acordo com a notícia, o Santo Padre Leão XIV enviou uma mensagem ao núncio apostólico que acompanha as autoridades competentes daquele país. A gravidade da ocorrência nos remete, uma vez mais, às visitas fúnebres do Papa Francisco às ilhas de Lampedusa e de Lesbos, respectivamente na Itália e na Grécia, como também à sua presença em Ciudad Juárez, fronteira entre México e Estados Unidos.
O turbilhão de fatos e boatos que diariamente se abate sobre a mídia e as redes digitais não consegue ocultar os naufrágios reais, concretos, anônimos e impiedosos que prosseguem envolvendo migrantes e refugiados. O mundo vem sofrendo tantos naufrágios metafóricos que não raro é relegada a segundo plano a tragédia dos naufrágios reais. A metáfora marítima foi utilizada por Amin Maalouf, escritor libanês radicado na França. Com ela, o autor procura desvendar O naufrágio das civilizações, capa de um livro lançado em 2019. Esse título, de resto, leva em consideração a quantidade de naufrágios e náufragos que, nas terras do Levante ou da região denominada Oriente Médio, permanece mergulhados na morte, no esquecimento e na indiferença, tanto do mundo Ocidental quanto e da economia mundial globalizada. Tais civilizações surgem, crescem e sucumbem num cenário de grande turbulência socioeconômica e político-cultural.
Simbolicamente, contam-se aos milhares e milhões os náufragos da violência, das guerras, das mudanças climáticas, da falta de oportunidades, da pobreza, da carência e da fome. Territórios, regiões, povos e países inteiros são marcados, drasticamente, por naufrágios de ordem social, econômica, política, cultural, étnica, ambiental... Como se as placas tectônicas que sustentam a vida sobre a Terra estivessem se movendo de forma permanente e perigosa, provocando terremotos e tsunamis, também eles reais e metafóricos. Quantos são os náufragos que seguem escapando do Haiti, da Venezuela, da Bolívia, do México, de Honduras, de El Salvador, da Ucrânia, do Sudão do Sul, do Iêmen, da Etiópia, da Somália... E quantos outros, de pior sorte, que mesmo náufragos, famintos, sedentos, enfermos e esqueléticos, sequer podem fugir da Faixa de Gaza!... Encurralados e massacrados, de cá para lá, tal como “cordeiros conduzidos ao abate” (Is 53, 7-120).
Pior ainda é que, quase por toda parte, semelhantes náufragos, já exaustos de tanta fuga e tanta busca em vão, são ainda submergidos por ondas inimigas e colossais de xenofobia, intransigência, intolerância, preconceito, discriminação, rechaço e crescente hostilidade – tudo isso agravado, recentemente, seja pelo endurecimento da legislação migratória de países como Portugal, Espanha, Grécia, entre outros países da Europa, seja pela ruidosa, estridente e espetacular avalanche de deportações em massa perpetrada, de modo particular, pelos Estados Unidos, sob o comando do presidente Donald Trump. Deportações precedidas de ameaças e medo, de perseguição e prisão, de separação familiar e total falta de reconhecimento. Uma gigantesca, monumental “caça às bruxas”, onde os hereges, os infiéis, os loucos, as feiticeiras e os desocupados da Idade Média são substituídos, nos dias que correm, por migrantes e refugidos cujo único crime foi tentar um lugar ao sol para si e para a família, um futuro menos desolador.
No campo da mobilidade humana, outros naufrágios, reais ou não, ocorrem de forma silenciosa e silenciada. Silenciada, porque não convém aos governos e autoridades divulgar o que se passa, por ex., nos bastidores obscuros do mercado informal, nos serviços análogos à escravidão, na forma de auto exploração do trabalho doméstico, na agitação do comércio ambulante, na cilada do empreendedorismo, na via infernal do tráfico de órgãos e de pessoas humanas com vistas à exploração trabalhista ou sexual... Não seria difícil prolongar esses rostos anônimos, invisibilizados nos porões, periferias e fronteiras dos países. Silencioso, porque todo migrante e refugiado, como aliás toda pessoa humana, possui sua dignidade. Torna-se patente a dificuldade de revelar o próprio fracasso diante de familiares, parentes e amigos. A nudez é coisa sagrada, só se expõe na intimidade mais recôndita e protegida. Parafraseando Shakespeare, há mais segredos, sigilos e mistérios no vaivém da migração do que pode supor nossa vã sociologia.