06 Agosto 2025
"Com respeito às formas de lidar com o morrer, vários procedimentos podem ser adotados. Ainda vivemos uma situação precária, sobretudo aqui no Brasil, onde a experiência do morrer para muitos ocorre sem cuidado algum. É o que se nomeia como mistanásia, ou seja, a radical carência de cuidados, que afeta em particular o mundo dos mais pobres e desvalidos", escreve Faustino Teixeira, teólogo, professor emérito da Universidade Federal de Juiz de Fora e colaborador do Instituto Humanitas Unisinos - IHU.
As questões relacionadas ao envelhecimento e às condições do morrer mostram-se cada dia mais complexas e urgentes, sobretudo em tempos de aumento de expectativa de vida, que se combina com a redução na taxa de fecundidade. Estamos passando por momentos difíceis no Brasil, com o crescimento da população idosa e a falta de uma política específica para lidar com atenção e cuidado com a nova conjuntura. Como mostrou com pertinência a geriatra Ana Claudia Quintana Arantes, “em 1900 uma pessoa vivia em média 46 anos. Nos anos 2000, no Brasil, chegamos à expectativa de vida média de 78 anos” [1].
O personagem Paulo Honório, do romance São Bernardo (1934), de Graciliano Ramos, revelava-se velho aos cinquenta anos [2]. Era uma outra situação. A velhice hoje ocorre mais tarde, com a melhoria das condições de vida. As condições de morte, porém, tornam-se a cada dia mais difícil. Numa pesquisa realizada em 2010 e divulgada numa publicação britânica envolvendo o tema da qualidade de morte em diversos países, o Brasil ficou na terceira colocação como o “pior país do mundo para se morrer” [3]. O aumento da taxa etária no Brasil não vem, infelizmente, acompanhado por uma boa qualidade de vida. E se vamos nos dando conta, percebemos que parte do orçamento familiar vem se deslocando a cada ano, para despesas com cuidadores.
O que se vê hoje no Brasil, vem ocorrendo há tempos em países como o Japão, onde a população idosa, com mais de 65 anos chega hoje a cerca de 36,24 milhões, em torno de 29,3% da população [4]. O país traz uma estatística sombria no interior das residências, com o fenômeno conhecido como care killing, ou seja, “a cada oito dias, uma pessoa idosa é morta por um cuidador exausto, quase sempre um familiar – e em muitos casos, a ação é seguida de suicídio” [5].
Trata-se de outra questão complexa que estamos enfrentando não só no Brasil, mas em todo o mundo: o cansaço extremos dos cuidadores diante do extenuante trabalho com os idosos em situação de precariedade de vida. Junta-se a isso a questão da preparação especializada desses cuidadores para lidar com um processo tão delicado, que exige um aperfeiçoamento profissional de qualidade.
Outro dado preocupante apontado por Ana Cláudia, que é especializada em cuidados paliativos, é a taxa de suicídio de idosos no Brasil, que se revela superior à da população geral, “com média de 7,8 casos a cada 100 mil habitantes”. Trata-se de um fenômeno presente entre os idosos com 80 anos ou mais [6]. O envelhecimento da população no Brasil não vem acompanhado por política específica de cuidado voltado para esse segmento da população. Como apontou com razão Ana Cláudia, há uma “zona cinza da terminalidade” no país, onde apenas 0,3% da pessoas têm acesso aos cuidados paliativos [7].
Com respeito às formas de lidar com o morrer, vários procedimentos podem ser adotados. Ainda vivemos uma situação precária, sobretudo aqui no Brasil, onde a experiência do morrer para muitos ocorre sem cuidado algum. É o que se nomeia como mistanásia, ou seja, a radical carência de cuidados, que afeta em particular o mundo dos mais pobres e desvalidos. A seguir, temos uma prática que é recorrente, nomeada como distanásia. Trata-se do procedimento de intervenção terapêutica que prolonga ao máximo a vida do paciente mediante a utilização de aparelhos que buscam manter vivo o paciente. Trata-se de uma prática que estende a vida, mesmo ao custo de muito sofrimento do paciente. É um recurso ainda muito utilizado no Brasil, e que vem sendo, em geral, a opção escolhida por boa parte dos médicos e dos familiares dos pacientes.
Nas últimas décadas, tem crescido a opção em favor da ortotanásia, que envolve o respeito pelo tempo da morte. Trata-se de um procedimento que busca salvaguardar a dignidade do paciente, que nos casos de terminalidade, facultam todos os cuidados possíveis para aguardar com serenidade e acolhida o tempo da passagem, com o alívio da dor e sem os incômodos que antecipam a cerimônia do adeus [8]. É no âmbito da ortotanásia que se firmam os cuidados paliativos, voltados para a melhoria das condições de vida dos pacientes e seus familiares face a uma doença complexa. Esta prática terapêutica foi aprovada em 2002 pela Organização Mundial da Saúde (OMS), e no Brasil pelo Ministério da Saúde, em portaria de maio de 2024, que institui um política nacional de cuidados paliativos [9].
Há ainda outra possibilidade que vem sendo adotada por alguns países, que envolve a morte assistida ou a eutanásia. Trata-se de um recurso, proibido por lei no Brasil, que provoca intencionalmente a morte do paciente, com a finalidade de interromper o sofrimento. Na eutanásia, a morte ocorre mediante a adoção de medicamentos em doses letais, com a ajuda de um médico ou profissional da saúde. Na morte assistida, o procedimento é autoadministrado pelo paciente, com assistência médica. A assim chamada Morte Voluntária Assistida (MVA) vem hoje permitida em quatorze países: Suíça, Colômbia, Holanda, Bélgica, Luxemburgo, Canadá, Estados Unidos, Austrália, Alemanha, Espanha, Nova Zelândia, Áustria, Portugal e Reino Unido [10]. Em três desses países, Estados Unidos (11 estados), Austrália (sete estados) e Nova Zelândia, “a legislação requer que a pessoa seja portadora de uma doença terminal, com diagnóstico de sobrevida de seis meses” [11]. Em outros países da Europa, como no Canadá, o procedimento vem acolhido em razão do sofrimento do indivíduo, mesmo sem um diagnóstico específico de terminalidade imediata. Há casos, como na Suíça, onde só se permite a MVA autoadministrada, proibindo a MVA administrada por terceiros. Em todos os casos aventados, o procedimento vem autorizado em favor do direito de autodeterminação da pessoa.
A aceitação do procedimento terapêutico que envolve os cuidados paliativos tem ganhado espaço em vários cenários do mundo. Mesmo no âmbito da igreja católica, observa-se uma tendência favorável a aceitar tal procedimento. É o que verificamos na Carta Samaritanus Bonus, da Congregação para a Doutrina da Fé (CdF), de 14 de julho de 2020, já em tempos do papa Francisco. O tema do cuidado ao próximo já aparece no início do documento, bem como a tomada de consciência da morte como “parte da condição humana”. A carta reage contra a “obstinação terapêutica” e sublinha a dignidade da pessoa humana e o direito de todos a uma morte digna, e de um morrer vivido com “a maior serenidade possível” [12]. O documento lembra que “a suspensão de toda obstinação irrazoável na administração dos tratamentos não deve ser desistência terapêutica”. Daí reforçar a importância dos cuidados paliativos, voltados para as necessidades do paciente. Trata-se, segundo a CdF, de “um instrumento precioso e irrenunciável para acompanhar o paciente nas fases mais dolorosas, sofridas, crônicas e terminais da doença” (n. 4). A carta reconhece ainda o direito do paciente de expressar o seu desejo sobre os procedimentos a serem adotados com ele, numa declaração antecipada da vontade.
Em seu pontificado, o papa Francisco demonstrou em ocasiões específicas, sua sintonia com os procedimentos voltados para os cuidados paliativos. Vale registrar sua mensagem aos participantes do encontro regional europeu da World Medical Association, sobre as questões do fim da vida [13]. A mensagem foi direcionada a Dom Vincezo Paglia, presidente da Pontifícia Academia para a vida, em 07 de novembro de 2017. Francisco retoma a crítica à “obstinação terapêutica”, reafirmando, porém, o permanente dever de cuidado com o doente, em todas as fases de seu processo. Reitera a necessidade de um “suplemento de sabedoria” para lidar com o tratamentos indicados, reconhecendo que nem sempre eles propiciam o bem integral da pessoa. Há que resguardar e garantir, confirma Francisco, um lugar fundamental para a dignidade da pessoa humana.
No Brasil, os cuidados paliativos ainda são pouco recorrentes, mas já se começa a firmar no país a presença de profissionais da saúde voltados para a sua firme defesa, como a doutora Ana Claudia Quintana Arantes. Para a geriatra, “os cuidados paliativos podem ser úteis em qualquer fase da doença, mas sua necessidade e seu valor ficam muito mais claros quando a progressão atinge níveis elevados de sofrimento físico e a medicina nada mais tem a oferecer” [14] Segundo Ana Claudia, o profissional dedicado a tais cuidados deve estar sempre atento aos sofrimentos presentes no tratamento dado aos pacientes. Ela sublinha que pode ocorrer um momento onde aquilo que foi uma esperança transforma-se em sofrimento fútil, exigindo uma tomada de decisão distinta. O profissional precisa ouvir o corpo e o espírito do paciente, e reconhecer o momento específico em que este corpo pede alívio e descanso. É quando o corpo sinaliza que não aguenta mais. Ocorre assim o sinal para a intervenção do profissional e seu dom para fornecer ao paciente uma nova esperança. O passo fundamental do profissional que lida com os cuidados paliativos é saber garantir uma presença de acolhida e apoio ao outro em sua dor. Na visão de Ana Claudia, o decisivo para o profissional, nesses casos, “é cuidar com integridade até o fim – não apenas manter um corpo funcionando, mas sustentar a dignidade de uma existência que está se despedindo” [15]. O profissional que lida com cuidados paliativos é alguém que busca “desaconselhar ou até suspender tratamentos fúteis que só prolongam o sofrimento de um ser humano”. E tal conduta vem respaldada por profunda dimensão ética e compassiva [16].
Entramos aqui num tema extremamente delicado e complexo, que ainda provoca resistências por todo lado. São resistências que vêm das religiões, dos governos, dos profissionais de saúde e dos familiares dos doentes que aventam tal possibilidade. A contundente oposição da igreja católica contra tal procedimento se faz notar nos dois documentos emitidos pela Congregação da Doutrina da Fé, tanto o de 1980 como o de 2020. No primeiro documento, assinado pelo pelo Prefeito da CdF, Franjo Seper e Jerónimo Hamer, a eutanásia vem identificada como um “gesto homicida”, um “crime contra a vida”, que viola a lei divina e a dignidade da pessoa humana. O texto vai ainda mais longe, identificando a prática como um “atentado contra a humanidade” [17].
No documento de 2020, que é a Carta Samaritanus Bonum, a CdF mantém o mesmo teor contundente e crítico do texto anterior. Trata-se de um documento publicado durante o pontificado do papa Francisco, tendo sido assinado pelo então Prefeito da CdF, o teólogo jesuíta Luis F. Ladaria, em 14 de julho. Percebe-se no texto uma nítida preocupação de deixar bem clara a posição da igreja católica a respeito. Há críticas precisas contra o uso considerado equivocado do conceito de “morte digna”, e a presença de um neopelagianismo ao abordar a temática dos direitos à liberdade da pessoa em decisões que são extremas. No texto reitera-se a posição oficial da igreja católica na condenação viva da eutanásia. Tanto a eutanásia como o “suicídio assistido” são considerados ali como proibidos. O documento identifica a eutanásia como um “ato intrinsecamente mau, em qualquer ocasião e circunstância”. Fala-se em “gesto homicida”. O documento condena ainda todos aqueles que atuam na colaboração para o ato realizado, e impede qualquer atuação ministerial de membros da igreja na assistência ministerial ou sacramental para aqueles que estão envolvidos no ato da eutanásia. Talvez tenha sido esse o documento mais duro e claro de oposição da igreja católica contra a eutanásia. Um documento corroborado pelo papa Francisco, que em ocasiões precisas manifestou-se contra qualquer possibilidade de eutanásia ou morte assistida, como no caso do bebê britânico Alfie Evans, cujo tratamento foi interrompido por ação médica [18].
Dentre os profissionais de saúde aqui no Brasil, temos o caso de Ana Claudia Quintana Arantes, que se posiciona igualmente crítica face à eutanásia ou morte assistida. Sua resistência ao tema firma-se em razões médicas e não necessariamente religiosas, como se deduz da leitura de seus textos a respeito. Como indica Ana Claudia, a “eutanásia é a eliminação do sofredor, enquanto o cuidado paliativo é o alívio do sofrimento” [19]. A autora justifica sua posição, dizendo não ser contra nem a favor, mas para os que acompanham sua reflexão, percebe-se uma clara resistência da médica ao procedimento. Ela é bem clara a respeito: “Eu não faço eutanásia. Se esse procedimento fosse liberado no Brasil, ainda assim provavelmente eu não faria” [20]. Segundo Ana Claudia, não há no Brasil condições para uma reflexão sensata e lúcida sobre o tema, sobretudo pelo fato da inexistência de uma presença mais efetiva dos cuidados paliativos nos procedimentos em curso. Para Ana Claudia, “só poderemos entrar num debate honesto quando pelo menos 90% dos brasileiros tiverem acesso a cuidados paliativos” [21].
Em favor da morte assistida e da eutanásia temos muitos autores e estudiosos sérios, que argumentam em favor do procedimento em casos bem específicos. As colocações nessa direção são pautadas por experiências bem concretas que suscitam um posicionamento menos restritivo ou apriorístico a respeito. Nos últimos anos, nos deparamos com muitos casos complexos envolvendo a decisão em favor da eutanásia ou morte assistida. Poderíamos citar como exemplos o do escritor brasileiro, Antonio Cícero ou do cineasta francês, Jean-Luc Godard. Outros casos que suscitaram muito debate ocorreram nos últimos anos envolvendo várias pessoas: Laura Santi, Daniele Pieroni, Piegiorgio Welby, Terri Schiavo, Ramón Sampedro, Alfie Evans e Martina Oppeli. Diante de experiências tão sofridas e prolongadas, fica difícil assumir uma posição contundente e crítica, sem uma consideração mais detalhada sobre as circunstâncias particulares.
Temos o caso específico de Laura Santi, a jornalista italiana de 50 anos, que sofria há tempos com a esclerose múltipla, e depois de uma dura batalha jurídica conseguiu o acesso à morte assistida. Antes da cerimônia de adeus, a jornalista pediu aos amigos e parentes “um esforço adicional de compreensão” para o gesto extremo. Ela tinha plena consciência do duro gesto assumido, e de toda a repercussão que causaria na Itália e no mundo. Tinha plena consciência que estava diante do “gesto mais total e definitivo” a ser assumido em liberdade por um ser humano. Em sua carta de despedida reconhece que seu gesto final, ocorrido em silêncio, causaria desapontamento e dor. Reconhece ainda que ele não foi fácil, exigindo “sangue frio e nervos de aço”. Mas foi o caminho que escolheu, por livre convicção. Dizia ainda em sua carta que por trás de sua foto bonita estava um “cotidiano doloroso, vazio, feroz e em constante piora. Um sofrimento crescente, dia após dia”. E acrescentou:
“Tive muito tempo para elaborar e amadurecer essa decisão, muito tempo para saber quando era realmente a hora. Tinha aquele famoso parapeito – sobre o qual vocês leram tantas vezes – de onde me debruçar. Tive muito tempo também para mudar de ideia e adiar a decisão. E me permiti, enquanto ainda conseguia, saborear os últimos resquícios de vida e de beleza. Despedi-me de cada canto, cada lugar, cada rosto, cada pessoa, cada situação, cada céu, cada cor, cada mínima caminhada ao ar livre (...). Parto tendo saboreado os últimos bocados da vida de forma intensa e consciente. Entendam-me: eu acredito que toda vida continua sendo digna de ser vivida mesmo nas condições mais extremas. Mas somos nós – e só nós – que devemos escolher” [22].
No Brasil, a morte de Antonio Cicero causou muito consternação. Sua decisão pela eutanásia na Suíça se deu em razão do avanço da doença de Alzheimer. Em carta de despedida, Cícero sublinha que sua vida tinha se tornado algo “insuportável” [23]. Não conseguia mais reconhecer muitas pessoas com as quais conviveu, e nem mais escrever bons poemas ou ensaios de filosofia. Em artigo escrito por ele antes no jornal Folha de São Paulo, sublinha que só mesmo quem passa por tamanho sofrimento é capaz de dar conta de tamanho sofrimento, dor, aflição e humilhação [24].
No artigo publicado na FSP em 2008, Antonio Cicero faz menção ao teólogo Rubem Alves e sua defesa da eutanásia, também tornada pública. No mesmo periódico paulista, Rubem Alves tinha escrito sobre o tema, e defendido o direito ao gesto derradeiro. Na visão de Alves, a vida é como um instrumento musical, “só vale a pena ser vivida enquanto o corpo for capaz de produzir música” [25].
Em precisa reflexão sobre a eutanásia, publicada na revista IHU-Online, o professor espanhol Diego Gracia, especialista em bioética, abordou o tema do desejo de morrer que se faz presente naquele que vive uma violenta experiência de sofrimento e dor. Na sua visão,
“há pessoas que, apesar de estarem muito bem cuidadas e de lhes serem aplicados os melhores cuidados paliativos do mundo, querem morrer, porque consideram sua vida indigna ou humilhante. Isso acontece muito quando elas não podem mais realizar sozinhas as funções mais elementares e íntimas da vida. Para algumas pessoas, ter que depender de outros parece muito humilhante. E querem evitá-lo, inclusive pondo fim à sua vida, para que elas não sofram e para não fazer os outros sofrerem” [26].
Segundo Diego Gracia, tal modo de pensar revela-se plausível e “perfeitamente respeitável”. É o que eu igualmente penso a respeito.
Outros dois teólogos de renome internacional partilham de semelhante reflexão, levantando ponderações profundamente dignas a respeito da morte assistida e eutanásia. Um deles é o teólogo suíço, Hans Kung, que morreu em abril de 2021. Em seus últimos anos de vida, o teólogo padecia de diversos males, entre os quais artrose nos dedos, início de surdez num dos ouvidos, maculopatia irreversível e mal de Parkinson. Pôde também acompanhar o desenrolar de uma dura demência sofrida por um amigo pessoal, Walter Jeans, que morreu em junho de 2013. Tudo isso serviu de base para uma reflexão pessoal do teólogo suíço sobre a eutanásia [27].
Hans Kung tinha escrito um livro sobre o tema da dignidade do morrer justamente com o amigo Walter Jens, em 1995 [28], e depois veio acompanhá-lo de perto em sua dolorosa travessia. Hans Kung foi tomando consciência de que a eutanásia constituía uma “ajuda importante para a vida”. Em período anterior de sua vida chegou a defender com paixão o movimento dos cuidados paliativos (Hospice). Veio a perceber com o tempo que mesmo dentro dessa corrente havia aqueles que não excluíam a priori a possibilidade da morte confiada à própria responsabilidade da pessoa. Foi se dando conta de que a medicina paliativa nem sempre constitui uma resposta válida a todos os desejos de morte. Há aqueles, lembra Kung, que em razão de sua situação desesperada querem algo além da medicina paliativa [29]. Argumenta ainda que são inúmeros os casos de pessoas que estão “cansadas de viver”, mesmo estando sob cuidados paliativos. Nesse sentido, em razão de sua própria dificuldade pessoal de saúde, Kung foi assumindo a defesa da eutanásia. Entendia que era uma “decisão ilegal”, mas “moralmente legítima” [30]. Considerava que ninguém estava condenado a suportar o insuportável, justificando isso como uma “disposição divina”. Mesmo tendo terminado sua vida, com morte natural, Kung permaneceu convicto, ao final da vida, de que todo ser humano tem “o direito de morrer quando não vê mais esperança de uma vida conforme os próprios critérios pessoais” [31]. E chegou a descrever no seu longo livro o jeito específico em que gostaria de morrer. A morte para ele não era um fim, mas uma transformação (vita mutatur, non tollitur). Via a morte como a entrada do finito no imenso infinito, o ingresso derradeiro no mistério de Deus [32].
O outro teólogo que aborda a questão da morte assistida é o italiano Vito Mancuso. Acho suas reflexões preciosas, não só nesse campo particular, mas em diversos outros ângulos de abordagem teológica. Em tempos recentes, lançou um precioso livro onde aborda o tema da finitude da vida: Livres para viver. O sentido das coisas para além da finitude da vida [33]. Trata-se de reflexões mais espirituais que dogmáticas, que nos ajudam a pensar o tema da finitude e da morte. Como ele mesmo diz, se não somos capazes de pensar a morte, não sabemos o significado da vida. O que me agrada em Vito Mancuso é a sua liberdade de teólogo. É um verdadeiro teólogo público. Vale para ele o que Christian Duquoc falou sobre um dos grandes desafios para a teologia nos tempos que correm: os teólogos só têm credibilidade se “´ousarem pensar por si mesmos`, conforme a exigência de Kant” [34]. Sinto-me muito próximo à liberdade de Mancuso. Fomos sempre acostumados a lidar com teologias que se entendem como súditas do magistério, e quando nos defrontamos com autores que não se subjugam e que ousam pensar com autonomia e leveza, sentimos a verdadeira força e vigor da teologia pública. Em artigo reproduzido no IHU-Notícias, da Unisinos, Mancuso sinalizou: “Se ser católico significa obedecer sempre e sem discussão à ética e à doutrina do magistério, há tempo não sou mais católico. Prefiro dizer crente” [35].
É com essa liberdade de reflexão que Mancuso aborda o tema da morte assistida. Toda sua abordagem sobre o tema traz em seu bojo a consciência viva do primado da consciência na vida da igreja. Ele cita um texto presente no Catecismo da Igreja Católica que está em sintonia com o que pensa: “O ser humano deve obedecer sempre ao juízo certo da consciência” [36]. Mancuso serve-se ainda de uma passagem do livro do Eclesiástico, do Primeiro Testamento: “É melhor a morte do que uma vida cruel, o repouso eterno do que uma doença constante” (Eclo 30,17).
Em suas reflexões sobre o fim da vida, Mancuso nos chama a atenção para a visão aberta da Bíblia com respeito ao tema do sentido da vida. Reconhece que não se encontra propriamente uma condenação do suicídio no livro sagrado, como também lembrou o teólogo Karl Barth. Há várias passagens sobre o tema no Primeiro e Segundo Testamento, sem que se assuma uma condenação. Há o caso de Sansão, que será reconhecido no Segundo Testamento como um dos pais da fé; e o caso de Judas, que não envolve igualmente um julgamento moral [37]. Como um traço vivo das bem-aventuranças está a advertência contra o risco apressado do julgamento do outro (Mt 7,1-2).
Dentre os mestres de Mancuso está o cardeal Martini, de Milão, que desenvolve uma reflexão serena sobre o tema:
“É importante reconhecer que a continuação da vida física humana não é, em si mesma, o princípio primeiro e absoluto. Acima dele está aquele da dignidade humana, uma dignidade que, na visão cristã e de muitas religiões, comporta uma abertura à vida eterna que Deus promete ao homem. Podemos dizer que aqui reside a dignidade definitiva da pessoa... A vida física deve, portanto, ser respeitada e defendida, mas não é o valor supremo e absoluto” [38].
Ao indicar a centralidade da dignidade humana, situada, inclusive, acima do valor da vida física, abre-se um campo novidadeiro para a reflexão sobre a morte assistida, quando a experiência de vida vem percebida como um limite imposto contra a própria dignidade da pessoa. Quando alguém vive em situação de grande e inaudito sofrimento, é possível colocar em cena a possibilidade de uma outra alternativa, para além dos cuidados paliativos. Mancuso sublinha que no caso específico de uma pessoa que se encontra encerrada e “aprisionada” em seu próprio corpo, vivendo o limite de um sofrimento abissal, é possível e moralmente aceitável recorrer a uma alternativa, que pode ser a morte assistida [39]. O próprio cardeal Martini, em conversa com o ex-prefeito de Roma, Ignacio Marino, considerou inadequado condenar a morte assistida.
Uma vez considerado o valor sagrado da consciência, adverte Mancuso, é possível recorrer a outras possibilidades. E conclui:
“Respeito quem decide recorrer a tratamentos paliativos e o Estado deve garanti-los a todos, mas exijo o mesmo respeito a quem faz outra escolha. Quem considera que mesmo com esses tratamentos perderia a dignidade deve ser livre para poder fazer escolhas sobre a sua vida” [40].
Concluindo, diria que a vida é o grande bem, não há dúvida, mas ela precisa ser vivida com dignidade e nobreza. Quando situamos o caso-limite vivido por Laura Santi, e pudemos ler com atenção a sua carta-testamento, entendemos que o seu gesto final não foi de clausura, mas de abertura, de respiro, de vida. Ao lidarmos com casos semelhantes aos de Laura, constatamos situações onde a violência atua sobre a pessoa de forma a sequestrar ou impedir a própria presença de uma vida digna. Na visão do psicanalista italiano, Massimo Recalcati, aqueles que escolhem a morte assistida ou a eutanásia não estão rejeitando a vida, mas a redução da vida a uma coisa já inerte e sem verdadeiro hálito vital. Laura manifesta claramente em sua carta-testemunho que aquilo que sempre desejou foi a vida, e se escolheu a morte em certo momento de sua dor foi em razão dos tormentos recorrentes suscitados e mantidos por uma doença incurável. E ela foi clara ao relatar que somente ao doente cabe “a liberdade de decidir como encontrar o seu limite. Não como um escravo acorrentado a máquinas ou cuidados paliativos” [41].
A rendição pelo cansaço e desespero não é o mesmo que capitulação, diz Recalcati. Por trás do gesto limite há uma revolta específica,
“contra a retórica tóxica da ´luta` que transforma o doente num gladiador obrigado a lutar pelo voyeurismo de quem talvez desconhece essa dor sem fim e se permite julgá-la considerando-a como necessária. Mas necessária a que? Nenhum defensor da eutanásia pretenderia impô-la como a única opção possível. Somente o indivíduo sofredor e sem esperança deveria poder pedir livremente para ser acompanhado a deixar uma vida que se tornou irreconhecível por ser fonte constante de tormento” [42].
Diante de situações trágicas, incuráveis, que provocam a decisão dolorosa de romper com a vida, o que se pode e deve demonstrar com serenidade é um profundo respeito, envolvido pelo silêncio misericordioso.
[1] Ana Claudia Quintana Arantes. Cuidar até o fim. Como trazer paz para a morte. Rio de Janeiro: Sextante, 2024, p. 2.
[2] Graciliano Ramos. São Bernardo. 23 ed. São Paulo: Martins, 1974, p. 188.
[3] Ana Claudia Quintana Arantes. A morte é um dia que vale a pena viver. São Paulo: Sextante, 2019, p. 47.
[4] Fátima Kamata. Envelhecido, Japão convive com idosos mortos em casa por seus cuidadores, muitas vezes um familiar. FSP, 21/06/2025.
[5] Idem.
[6] Ana Claudia Quintana Arantes. Cuidar até o fim, p. 148.
[7] Idem, ibidem, p. 47.
[8] Ibidem, p. 147.
[9] https://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2024/prt3681_22_05_2024.html (acesso em 01/08/2025). Veja também a resolução do Conselho Federal de Medicina 1995/12.
[10] Adriano Silva. O dia em que Eva decidiu morrer. São Paulo: Vestígio, 2025, p. 193-211.
[11] Idem, p. 147.
[12] CONGREGAÇÃO para a Doutrina da Fé. Carta Samaritanus Bonum. Sobre o cuidado das pessoas nas fases críticas e terminais da vida, n. 2: https://www.vatican.va/roman_curia/congregations/cfaith/documents/rc_con_cfaith_doc_20200714_samaritanus-bonus_po.html
[13] https://www.vatican.va/content/francesco/pt/messages/pont-messages/2017/documents/papa-francesco_20171107_messaggio-monspaglia.html (acesso em 01/08/2025).
[14] Ana Claudia Quintana Arantes. A morte é um dia que vale a pena viver, p. 44.
[15] Ana Claudia Quintana Arantes, postagem em seu Facebook – julho de 2025.
[16] Ana Claudia Quintana Arantes. Cuidar até o fim, p. 145.
[17]https://www.vatican.va/roman_curia/congregations/cfaith/documents/rc_con_cfaith_doc_19800505_eutanasia_po.html (acesso em 01/08/2025).
[18] https://g1.globo.com/mundo/noticia/morre-alfie-evans-o-bebe-britanico-que-foi-alvo-de-batalha-judicial.ghtml (acesso em 01/08/2025).
[19] Ana Claudia Quintana Arantes. Cuidar até o fim, p. 146.
[20] Idem, p. 146.
[21] Ibidem, p. 146.
[22] https://www.ihu.unisinos.br/categorias/654974-carta-de-despedida-de-laura-santi-lembrem-se-de-mim-como-uma-mulher-que-amou-a-vida (acesso em 01/08/2025).
[23] https://www.cartacapital.com.br/cultura/a-carta-deixada-por-antonio-cicero-antes-da-morte-assistida-na-suica/ (acesso em 01/08/2025).
[24] Antonio Cícero. Sobre a eutanásia. Folha de São Paulo, 26/01/2008: https://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq2601200823.htm#:~:text=O%20direito%20%C3%A0%20eutan%C3%A1sia%20%C3%A9,curta%2C%20menor%2C%20mais%20leve. (acesso em 01/08/2025).
[25] Rubem Alves. Eutanásia. Folha de São Paulo, 08/01/2008: https://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/ff0801200804.htm (acesso em 01/08/2025).
[26] Diego Gracia. Uma reflexão sobre a autonomia contemporânea em relação à morte (entrevista). IHU-Online, Edição 162, 31/10/2005: https://www.ihuonline.unisinos.br/edicao/162 (acesso em 01/08/2025).
[27] Hans Kung. Una battaglia lunga una vita. Milano Rizzoli, 2014, p. 1064-1065; 1078-1081.
[28] Walter Jens; Hans Kung. Della dignità del morire. Una difesa della libera scelta. Milano: Rizzoli, 1996.
[29] Hans Kung. Una battaglia lunga una vita, p. 1064.
[30] Idem, p. 1065
[31] Ibidem, p. 1085.
[32] Ibidem, p. 1086-1087.
[33] Vito Mancuso. Liberi di vivere. Il senso delle cose ltre la finitezza della vita. Trento: Il Margine, 2024
[34] Christian Duquoc. A teologia no exílio. O desafio da sobrevivência da teologia na cultura contemporânea. Petrópolis: Vozes, 2006, p. 13.
[35] Vito Mancuso. “O fim da vida na Bíblia”. Convido os prelados contrários a um debate (entrevista): https://www.ihu.unisinos.br/categorias/637271-o-fim-da-vida-na-biblia-convido-os-prelados-contrarios-a-um-debate-publico-entrevista-com-vito-mancuso (acesso em 01/08/2025).
[36] CATECISMO da Igreja Católica. Petrópolis/São Paulo: Vozes/Paulinas/Loyola/Ave-Maria, 1993, p. 422 (n. 1800).
[37] Vito Mancuso. Porque, em relação ao fim da vida, a dignidade é escolher. IHU-Notícias, 25/07/2025: https://ihu.unisinos.br/653426-porque-em-relacao-ao-fim-da-vida-a-dignidade-e-escolher-artigo-de-vito-mancuso (acesso em 01/08/2025
[38] Apud Vitor Marcuso. Porque, em relação ao fim da vida...
[39] Vitor Mancuso. Porque, em relação ao fim da vida...
[40] Ibidem.
[41] Massimo Recalcati. Somos nós que decidimos sobre a vida. IHU-Notícias, 28/07/2025: https://www.ihu.unisinos.br/publicacoes/78-noticias/655000-somos-nos-que-decidimos-sobre-a-vida-artigo-de-massimo-recalcati (acesso em 01/08/2025).
[42] Ibidem.