25 Janeiro 2024
"No início do livro [Dio e il suo destino] ele [Vito Mancuso] faz sua confissão de fé: “Eu creio em Deus. Porém, o modo com que Deus vem há anos nomeado pelo catolicismo, a religião na qual fui educado e que pude estudar longamente, deixa-me cada vez mais insatisfeito”. É uma confissão que também partilho", escreve Faustino Teixeira, teólogo, professor emérito da Universidade Federal de Juiz de Fora – UFJF e colaborador do Instituto Humanitas Unisinos – IHU.
Segundo ele, "o que Jesus ensinou é viver no caminho do amor e da justiça, como está tão bem expresso no Sermão da Montanha. E Mancuso cita o grande cardeal Martini, que certa vez falou: “Devemos aprender a viver a vastidão do ser católico”. E Mancuso, apoiado em Martini, conclui que o verdadeiro Deus “é muito maior que Deus”.
Lendo ontem o IHU-Notícias, deparei-me com três matérias que me interessaram. Duas delas falavam do grande teólogo Yves Congar, um dos nomes mais importantes do Vaticano II. Ele, com outros teólogos, como De Lubac, viverem momentos difíceis na relação com a Igreja católica em tempos pré-conciliares. Em seu diário, Journal d´un théologien (2000), Congar fala de todo o sofrimento que passou em razão das tensões com o Santo Ofício. Seu livro, Chrétien desunis, de 1937, sofreu grande oposição, mesmo dentro de sua ordem (dominicanos). Foi denunciado ao Santo Ofício, e sofreu punições bem dolorosas, que envolveram também outro grande dominicano: M.D-Chenu. Em seu diário chegou a identificar o Santo Ofício com a Gestapo: um órgão “supremo, inflexível, onde não se pode discutir as decisões”.
Recordo aqui dois livros importantes que abordam as tensões vividas por Congar e Chenu antes do Vaticano II. Em livro-entrevista, Jean Puyo interroga Congar sobre a sua vida teológica (Centurion, 1975) e um dos capítulos do livro trata dos anos sombrios da repressão romana à teologia francesa. O período mais difícil foi em torno de 1947, com a dura ofensiva contra a Nova Teologia Francesa. As escolas teológicas de Fourvière e Le Saulchoir foram palco de muita repressão. Outro livro de entrevistas, agora com Chenu, interrogado por Jacques Duquesne (Le Centurion, 1975), o teólogo e grande historiador da Igreja, Chenu, relato seu sofrimento quando estava na direção da famosa escola teológica Le Saulchoir. Um precioso trabalho de Chenu, Une école de théologie (1937) foi denunciado e depois, em 1942, colocado no index. Foi igualmente demitido da direção de Saulchoir, diante de toda a comunidade, o que para ele foi profundamente penoso.
Recordo também aqui outro livro doloroso, que relata todo o sofrimento de outro grande teólogo, estudioso da moral, Benhard Haring. Trata-se do livro Fé, história, moral (1989). Sofreu, como outros, um pesado processo doutrinário que revelou, na verdade, a profunda incompetência dos peritos responsáveis pelo seu julgamento. Ele sofreu um processo do Santo Ofício, que coincidiu com um câncer na garganta. Passou por um “longo calvário”, que somou os dois sofrimentos. Ele chegou a dizer: “Quanta amargura percebi em muitos teólogos e pastores de almas, vítimas da profunda contradição existente entre a competência ´legal` do Santo Ofício e a absoluta incompetência de tantos de seus membros!”. Uma ignorância que se somava à arrogância.
Com respeito ao papa Francisco, li com pesar a entrevista de Vito Mancuso sobre a solidão do papa Francisco (IHU-Notícias, 23/01/2024). Mancuso sublinha a tristeza, solidão e amargura de Francisco em perceber “que grandes setores da Igreja, os mais praticantes, não o seguem”. Indica ainda que não faltam aqueles que rezam não mais por ele, mas contra ele. Sem dúvida, Francisco encontra-se circundado por “lobos” ferozes, também na cúria romana, que torcem pela mudança de pontificado.
E agora me chega às mãos o corajoso livro de Vito Mancuso: Dio e il suo destino (Garzanti, 2015). Já no início do livro, ele fala do Deus que precisa ser libertado de Deus, o que me fez lembrar Mestre Eckhart. Sinaliza com clareza que “o Deus a que a mente ocidental geralmente se refere quando pensa o divino não é o verdadeiro Deus, mas a figura que neste livro denomino Deus”, ou seja, o Deus que no Novo Testamento vem nomeado como amor.
Ainda no início do livro ele faz sua confissão de fé: “Eu creio em Deus. Porém, o modo com que Deus vem há anos nomeado pelo catolicismo, a religião na qual fui educado e que pude estudar longamente, deixa-me cada vez mais insatisfeito”. É uma confissão que também partilho. É o mesmo que diz Teilhard de Chardin em carta à sua amiga Leontine Zanta, em maio de 1927: “As nossas igrejinhas nos escondem a Terra”. Por isso tem razão Mancuso em dizer, na entrevista publicado no IHU-Notícias, que a potente visão de Francisco em defesa da criação, na Laudato si, só poderá ser compreendida e implementada daqui a cem anos.
Voltando, porém, ao livro de Mancuso. Ele diz que acredita em Deus, mas não mais no Deus da sua religião, assim “como vem professado na doutrina oficial da Igreja católica” (p. 35). E continua sua argumentação:
“A minha tomada de posição não é teorética, mas uma tomada de posição ética, e mais ainda, espiritual”. Diz não mais aderir a esta figura de Deus. Esse não é, segundo ele, o Deus que nutre sua fé e esperança. E continua: “Entre Deus e o Deus da minha vida foi ocorrendo um progressivo distanciamento que acabou provocando em mim a impossibilidade de professar a fé tradicional”. Relata que sua experiência espiritual convocou-o a ir além, de ultrapassar esse Deus, de libertar-se de seus tratos insustentáveis e opressivos”. Diz com razão que Jesus nunca ensinou teologia dogmática, mas foram outros que o fizeram e armaram os dogmas da tradição. O que Jesus ensinou, adverte, é viver no caminho do amor e da justiça, como está tão bem expresso no Sermão da Montanha. E cita o grande cardeal Martini, que certa vez falou: “Devemos aprender a viver a vastidão do ser católico”. E Mancuso, apoiado em Martini, conclui que o verdadeiro Deus “é muito maior que Deus”.
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As dificuldades com o catolicismo romano. Artigo de Faustino Teixeira - Instituto Humanitas Unisinos - IHU