29 Dezembro 2023
”Aqueles que não têm grande familiaridade com a fé podem apreciar o poder da linguagem poética e mística usada por Teilhard. Sem ignorar, no entanto, que desde a antiguidade se pensava que os poetas tinham uma misteriosa relação com as forças divinas ("Canta-me, ó musa do Pelida Aquiles", escreveu Homero), e talvez fossem os únicos capazes de expressar em palavras o mistério que a prosa não pode captar”, escreve Claudio Tagliapietra, professor de teologia fundamental na Pontifícia Universidade da Santa Cruz, em Roma, em artigo publicado por Settima News, 21-12-2023
"Porque mais uma vez, Senhor, não mais nas florestas do Aisne, mas nas estepes da Ásia, estou sem pão, sem vinho, sem altar. Eu me elevarei acima dos símbolos até a pura majestade do Real; e oferecerei a Ti, eu, Teu sacerdote, sobre o altar da Terra total, o trabalho e a pena do Mundo." [1]
Assim começa uma longa oração do paleontólogo e pensador jesuíta Teilhard de Chardin, "A Missa sobre o Mundo", composta no deserto de Ordos há 100 anos, em 6 de agosto de 1923, na época da Festa da Transfiguração do Senhor.
Neste dia, as tradições cristãs lembram o episódio dos discípulos que, no monte Tabor, ficam deslumbrados ao ver Jesus brilhar com uma luz que torna suas roupas tão brancas que "nenhum lavadeiro na terra" poderia lavá-las tão bem (Mc 9,3). Após as palavras do Pai que o manifestam como Filho predileto, Jesus se aproxima deles e os "toca" (Mt 17,7), convidando-os a levantar o olhar para ele sem medo. Agora eles sabem que a pessoa divina de Jesus é capaz de intervir nesse relacionamento, permitindo que seu corpo manifeste a Glória do Pai, sua presença divina.
O episódio desafia a compreensão que os discípulos tinham até então das relações entre Deus e a matéria criada: "Eles ficaram em silêncio e naqueles dias não contaram a ninguém o que tinham visto" (Lc 9,36). As muitas perguntas são guardadas no sagrado silêncio de seus corações.
Teilhard se introduz nesse silêncio, anotando entre colchetes a data de redação de uma experiência mística. O que lemos na Missa de Teilhard é o relato de um evento interior nascido do olhar para a paisagem do Deserto de Ordos, uma região desértica montanhosa na parte sul da República Autônoma da Mongólia Interior, na China. Teilhard estava lá como parte de uma expedição como paleontólogo, e não podia celebrar a Missa.
Quando ele começa o ensaio escrevendo "mais uma vez", o jesuíta se refere a uma experiência semelhante vivida 15 anos antes durante a Primeira Guerra Mundial. Também no ensaio "O Sacerdote", Teilhard havia começado com palavras semelhantes:
"Porque hoje não tenho, Senhor, eu, teu sacerdote, nem pão, nem vinho, nem altar, estenderei as mãos sobre a totalidade do Universo e farei de sua imensidão a matéria do meu sacrifício." [2]
Os dois escritos estão ligados por um fio tênue, quase indicando uma experiência eucarística contínua. Para Teilhard, como lembra o então cardeal Ratzinger, a Hóstia consagrada é
"uma antecipação da transformação da matéria e de sua divinização na "plenitude" cristológica. A eucaristia indica, por assim dizer, a direção do movimento cósmico; ela antecipa o seu fim e ao mesmo tempo o impulsiona em direção a ele." [3]
Teilhard continuou por muitos anos esse canto silencioso e longo ao poder que o homem recebeu de Deus para oferecer-lhe o mundo que tem em suas mãos. É exatamente assim, "A Oferta", que é o título da primeira seção deste ensaio, onde Teilhard começa a descrever sua oferta do mundo, a Criação, sua prodigiosa divinização, e seu ser "sugado" para o coração do mundo na comunhão com Deus.
Dessa comunhão brota sua oração, não algo meramente espiritual, pois incorpora em si a matéria do mundo. Essa "Missa" especial lembra a Teilhard o relacionamento que Deus quer ter com o mundo, com a matéria, e que requer que pelo menos o homem seja capaz de oferecer-lhe o que já recebeu: "o trabalho e a pena do Mundo", o mundo em que vive e se move, existe (At 17,28).
A partir dessa experiência, Teilhard encontra a oportunidade de renovar sua convicção: a este Mundo, pão e vinho dos quais o homem se nutre e vive, que na Missa se torna realmente e verdadeiramente o Corpo de Cristo, Teilhard se vota integralmente "para viver e morrer." [4] Quantas pessoas tiraram força dessas palavras para poder oferecer seu trabalho e circunstâncias como oração.
Aqueles que não têm grande familiaridade com a fé podem apreciar o poder da linguagem poética e mística usada por Teilhard. Sem ignorar, no entanto, que desde a antiguidade se pensava que os poetas tinham uma misteriosa relação com as forças divinas ("Canta-me, ó musa do Pelida Aquiles", escreveu Homero), e talvez fossem os únicos capazes de expressar em palavras o mistério que a prosa não pode captar.
O próprio João Paulo II dedicou sua Carta aos Artistas "A todos aqueles que com dedicação apaixonada buscam novas 'epifanias da beleza para oferecer ao mundo na criação artística", incluindo os poetas:
"Ninguém melhor do que vocês, artistas, construtores geniais de beleza, pode intuir algo do pathos com que Deus, no alvorecer da criação, olhou para a obra de suas mãos. Uma vibração desse sentimento se refletiu inúmeras vezes nos olhares com os quais vocês, como artistas de todos os tempos, cativados pelo assombro do poder arcano dos sons e palavras, das cores e formas, admiraram a obra de sua inspiração, sentindo quase o eco desse mistério da criação ao qual Deus, o único criador de todas as coisas, quis de alguma forma associá-los" (4/4/1999, n. 1).
Esta carta está repleta de referências ao trabalho poético como uma porta para Deus: "faísca divina", "vocação artística". Por outro lado, assim que o cristianismo jovem emitiu seus primeiros murmúrios, teve que falar em poesia: pense nos muitos hinos cristológicos encontrados nos escritos de Paulo de Tarso, e na poesia sagrada de "Hilário, Ambrósio, Prudêncio, Efrem o Sírio, Gregório de Nazianzo, Paulino de Nola" (ibid., n. 7), Gregório Magno e os "cânticos", e os autores dos muitos hinos da tradição cristã: "o 'belo' se conjugava assim com o 'verdadeiro', porque também através das vias da arte as almas eram arrebatadas do sensível para o eterno" (ibid.).
Este aniversário pode nos levar a redescobrir o poder revelador da obra poética dos místicos. Quem lê a Missa de Teilhard percebe estar diante das palavras de um místico: esse é o registro de sua poética com a qual expressa - para usar as palavras de João Paulo II - o eco do mistério ao qual Deus quis associá-lo. Este é um dos presentes de Teilhard à humanidade: sua ciência, sua fé, sua vida no mistério de Deus só podiam ser expressas em linguagem poética, mas não menos verdadeiras por isso. Difícil e obscuro às vezes, mas não menos verdadeiro.
A obra de Teilhard nutriu a interioridade das últimas gerações de teólogos e pontífices (lembremos palavras de apreço de Paulo VI, João Paulo II, Bento XVI, Francisco). Em particular, observa o estudioso Thomas King, entre os admiradores da Missa de Teilhard, encontramos João Paulo II. [5].
Em 1995, por ocasião do quinquagésimo aniversário de ordenação, o Pontífice usou um trecho da Missa de Teilhard para dizer o que a Missa significava para ele: a Eucaristia é "para oferecer 'sobre o altar da terra inteira o trabalho e o sofrimento do mundo', segundo uma bela expressão de Teilhard de Chardin" [6]. O texto parece ter permanecido no coração do Santo Padre, lembra King. Na encíclica Ecclesia de Eucharistia (2003), ele descreve o "caráter cósmico" da Missa, quase reproduzindo em sua própria vida a experiência de Teilhard:
"Quando penso na Eucaristia, olhando para minha vida como sacerdote, como bispo, como Sucessor de Pedro, vem-me espontaneamente à mente tantos momentos e tantos lugares em que me foi concedido celebrá-la. Lembro-me da igreja paroquial de Niegowić, onde desempenhei meu primeiro cargo pastoral, a colegiada de São Floriano em Cracóvia, a catedral de Wawel, a basílica de São Pedro e as muitas basílicas e igrejas de Roma e do mundo inteiro. Pude celebrar a Santa Missa em capelas colocadas nos caminhos de montanha, nas margens dos lagos, nas margens do mar; celebrei-a em altares construídos em estádios, nas praças das cidades... Esta cena tão variada das minhas Celebrações Eucarísticas me faz experimentar fortemente o seu caráter universal e, por assim dizer, cósmico. Sim, cósmico! Porque mesmo quando é celebrada no pequeno altar de uma igreja rural, a Eucaristia é sempre celebrada, de certa forma, sobre o altar do mundo. Ela une o céu e a terra. Abrange e permeia toda a criação" (João Paulo II, Ecclesia de Eucharistia, 8).
Meu encontro com a Missa de Teilhard de Chardin é bastante recente e, confesso, análogo. Em um Deserto, para mim também. Jovem sacerdote, eu também. Era junho de 2021, e eu estava passando alguns dias de retiro na ilha eremitério de São Francisco do Deserto, na Laguna de Veneza. Eu estava atravessando um período muito doloroso, a fase terminal da doença de minha mãe. Enquanto rezava em um ambiente de paz ao pôr do sol na laguna, as palavras iniciais da Missa de Teilhard foram como um raio que iluminou intensamente minha interioridade e talvez tornou a celebração diária da minha Missa e o trabalho científico que realizo mais "cósmicos" e "eclesiais", mais "meus".
[1] P. Teilhard de Chardin, «La Messa sul Mondo», in Inno dell’Universo, Queriniana, Brescia 1992, p. 9.
[2] P. Teilhard de Chardin, La vita cosmica. Scritti del tempo di guerra (1916-1919), Il Saggiatore, Milano 1971, p. 361.
[3] J. Ratzinger, Introduzione allo spirito della liturgia, San Paolo, Cinisello Balsamo (MI), p. 25.
[4] Cf. La Messa sul mondo, p. 23.
[5] Per uno studio storico sulla Messa di Teilhard, si legga Thomas M. King, Teilhard’s Mass: Approaches to “The Mass on the World”, Paulist Press, New York/Mahwah 2005.
[6] Giovanni Paolo II, Dono e Mistero, LEV, Citta del Vaticano 1996, p. 84.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Teilhard de Chardin: cem anos da “Missa sobre o mundo” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU