02 Mai 2023
Não podemos ter certeza de como Teilhard veria a inteligência artificial, mas, como paleontólogo, ele provavelmente não ficaria surpreso com seu potencial. A humanidade sempre evoluiu em resposta à introdução de novos elementos em nosso ambiente.
O comentário é de Thomas Higgins, que foi vice-secretário de Gabinete na Casa Branca durante o governo de Jimmy Carter (1977-1981). O artigo foi publicado por National Catholic Reporter, 26-04-2023. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Não sabemos o estágio final dos desenvolvimentos recentes em inteligência artificial ou mesmo se é que existe um, mas pelo menos a trajetória é clara. A relação entre humanos e sociedade, cultura e economia global será fundamentalmente modificada.
O desenvolvimento da inteligência artificial tem levantado muitas questões – tanto técnicas quanto filosóficas. Eu diria que uma perspectiva teológica também está em questão.
A maioria de nós conhece a história de Adão e Eva no Jardim do Éden. Eles foram tentados pelo maligno com o fruto da árvore do conhecimento (alerta de spoiler: eles pegam o fruto, embora Deus os tenha avisado de que, se o fizessem, perderiam o paraíso). É claro, a história é alegórica, mas, como os cristãos acreditam que esse ato de arrogância foi o pecado original, vale a pena explorar sua relevância para novas tentações com outros frutos “proibidos”.
Já estamos sendo avisados. Mais de 1.000 dos maiores nomes do mundo da tecnologia, incluindo Elon Musk, Steve Wozniak e outros, fizeram um abaixo-assinado por uma pausa nesse desenvolvimento, para avaliar as consequências de novos avanços. Em um artigo recente na revista Time, um dos fundadores desse campo, Eliezer Yudkowsky, pediu que o desenvolvimento fosse encerrado, ou “todos morrerão”. Isso chama a nossa atenção.
Isso é muito mais do que uma pesquisa avançada. Essa ferramenta, com uma capacidade sem precedentes de simular outras “vozes” e de possuir quantidades de informação sem precedentes, vai mudar completamente a forma como interagimos uns com os outros e o modo como formamos as nossas próprias opiniões e ideias.
O grande potencial tanto para o bem quanto para o mal que flui dessa revolução está começando a se manifestar. Há muitas razões para duvidar se estamos à altura do desafio do uso sábio. Pensemos apenas nos danos à sociedade provocados pelo rápido crescimento – e pelos abusos – das plataformas de mídia social. Com a implantação generalizada de inteligência artificial nessas mídias, as manipulações maliciosas da verdade estão praticamente garantidas.
Sim, a descoberta e a inovação geralmente trazem enormes benefícios. É que os humanos, na melhor das hipóteses, têm um histórico misto quando se trata de governar esses instrumentos de mudança.
Quando nossos ancestrais metafóricos ganharam consciência e, portanto, “agência”, seu propósito dificilmente era nobre. Caim matou Abel, as tribos guerrearam incessantemente entre si, e as sementes do nacionalismo atual foram semeadas. Um cientista evolucionista poderia postular que a competição pela sobrevivência quase sempre leva a uma guerra mortífera. Mas eles também observam que a competição saudável produziu resultados desejáveis para a sociedade.
A partir de uma perspectiva bíblica, nossa longa história de conflito pode ter sido predeterminada, uma vez que rejeitamos a primazia de Deus e cedemos ao desejo de poder. Nós acreditamos que apenas a providencial disrupção pela Encarnação ofereceu a redenção do pecado original. Esse é o mistério da fé. Isso não pode ser nem provado nem refutado, mas é a nossa esperança duradoura.
Prestar culto parece estar em nosso DNA. A questão sempre foi: quem ou o que é cultuado? Poder e riqueza são objetos de veneração para a maioria das pessoas, independentemente da fé que possam professar. Agora surge uma nova habilidade, nascida do conhecimento e da engenhosidade humanos, para alcançar o objeto do nosso desejo. Ela transformará o nosso pensamento e, obrigatoriamente, os nossos valores.
O ponto de inflexão será quando a inteligência artificial passar para a inteligência geral e alcançar uma consciência simulada, um livre-arbítrio quimérico. Alguns especialistas em grandes modelos de linguagem (LLMs), o mecanismo de aprendizagem de máquina, insistem que isso é impossível. Mas eu não tenho tanta certeza. E muitos desenvolvedores de inteligência artificial também não. Poderia ser um fenômeno evolutivo.
O grande paleontólogo jesuíta Pe. Pierre Teilhard de Chardin acreditava que o próximo estágio da evolução humana era em direção à “noosfera”, uma espécie de fusão entre a sabedoria e o corpo místico de Cristo. Ele descrevia o nosso atual estágio de evolução como a “biosfera”, inaugurada com o surgimento da vida vegetal e animal. Em sua visão, durante o longo arco da criação, continuaríamos evoluindo por meio da noosfera até a culminação da existência – o ponto ômega – com todas as coisas em Cristo no fim dos tempos.
A concepção de Teilhard representava uma nova interpretação da cristologia, assim como da evolução. Por isso, ele enfrentou o opróbrio e foi silenciado pelo Santo Ofício, o sucessor da Inquisição. Ele foi repetidamente proibido de ensinar e de publicar suas ideias, que estão resumidas em sua obra-prima “O fenômeno humano”. Ele morreu em 1955, pouco depois de terminar de escrever o livro.
Ainda em 1962, o Vaticano censurou suas ideias e lhes proibiu um imprimatur. Mas, nos últimos anos, o Papa Bento XVI e o Papa Francisco foram mais aquiescentes com seus estudos e elogiaram sua obra.
Podemos nos perguntar se ele foi presciente. Teilhard de Chardin era um darwinista e um teólogo. Ele achava que não havia nenhuma razão para acreditar que a evolução humana pararia conosco.
Ele se foi há quase 70 anos. Apesar de muitos desafios, há evidências de que a nossa espécie é mais avançada socialmente hoje do que há um século. É possível que a inteligência artificial seja um deus ex machina que pode levar a humanidade ao próximo estágio de um caminho de evolução divinamente ordenado?
Não podemos ter certeza de como Teilhard veria a inteligência artificial, mas, como paleontólogo, ele provavelmente não ficaria surpreso com seu potencial. A humanidade sempre evoluiu em resposta à introdução de novos elementos em nosso ambiente.
Talvez não estejamos diante da extinção da humanidade, mas sim da possibilidade de uma extensão da criação a uma esfera superior. Afinal, foi uma escolha que nos tirou do Éden. Temos uma escolha melhor e mais sábia ao nosso alcance.
Assim é como se escreve o destino. Os próximos anos serão um teste existencial da nossa humanidade e da nossa crença em uma ordem transcendente. Acho que não temos a opção de deter isso.
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Teilhard de Chardin pode nos ajudar a entender teologicamente a inteligência artificial? - Instituto Humanitas Unisinos - IHU