03 Março 2020
"Pessoas de todo o mundo estão ainda processando as notícias de que o reverenciado líder espiritual Jean Vanier violou sexual e emocionalmente várias mulheres que foram ao seu encontro em busca de 'acompanhamento' espiritual durante várias décadas".
O comentário é de Michael W. Higgins, professor de Pensamento Católico da Sacred Heart University, em Fairfield, EUA, e ex-reitor de duas universidades católicas canadenses, em artigo publicado por La Croix International, 29-02-2020. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
As revelações provocaram uma tempestade midiática dentro e fora do catolicismo. Celebridades abusadoras estão no centro das atenções do nosso trêmulo tempo: Bill Cosby, Harvey Weinstein, Jeffrey Epstein, sem falar dos abusadores em série que assombraram os estúdios da BBC, os acampamentos dos escoteiros e as celas curiais dos apparatchiks vaticanos.
Mas há algo ainda mais perturbador em relação aos líderes espirituais, pois eles são aqueles em quem mais confiamos, que se afastam da agitação e das loucas contradições que definem a nossa humanidade defeituosa. Eles são faróis em uma paisagem sombria. E agora uma luz se apagou.
Quando a L’Arche International realizou uma investigação sobre o ministério e o comportamento do renegado frade dominicano Thomas Philippe em 2014, eles tinham pouca ideia da extensão de suas alianças amorosas disfarçadas de aconselhamento espiritual, do seu abuso de noviças, da sua predação psicológica.
Eles levaram a sério as acusações feitas pelas vítimas, obtiveram uma investigação canônica e, em 2015, emitiram seu relatório.
Foi condenatório.
O Père Thomas quebrou seus votos e demonstrou “um controle psicológico e espiritual sobre essas mulheres das quais ele exigia silêncio, porque, segundo ele, isso correspondia a ‘graças especiais’ que ninguém podia entender”.
Já vimos isso antes: o emprego de uma linguagem sedutora, a criação de um sigilo privado e sagrado, a invocação de status especial por intervenção sacerdotal.
Vanier, é claro, tinha um relacionamento único e duradouro com Philippe, a quem ele chamava de “pai espiritual” ao descrever a orientação que o dominicano havia fornecido desde 1950. Sua preocupação pastoral compartilhada pelas pessoas desafiadas emocional e intelectualmente levou ao estabelecimento da L’Arche na França em 1964.
Quando a L’Arche International questionou Vanier sobre as acusações contra Philippe, ele afirmou que não tinha conhecimento do comportamento do frade.
Isso parece não ter sido verdade. A L’Arche International, após acusações de duas mulheres, em 2016 e 2019, lançou uma investigação sobre Vanier para determinar a relação precisa entre ele e Philippe, e para esclarecer o carisma fundador e a história inicial do movimento L’Arche, com o expresso propósito de determinar se havia outras acusações que precisavam ser trazidas à tona.
As conclusões dessa investigação foram detalhadas em um relatório publicado no dia 22 de fevereiro, cujas conclusões chocaram o mundo católico, assim como consternaram o grande número de seguidores de Vanier, independentemente de credo ou etnia.
O dano colateral dessas descobertas foi imediato e continua sendo sentido: assistentes e membros desmoralizados nas 152 casas da L’Arche em todo o mundo (está sendo preciso muito cuidado para explicar o que aconteceu aos membros principais, as pessoas com deficiência intelectual, devido aos possíveis traumas e à descrença agonizante); o futuro de vários institutos, órgãos de pesquisa e escolas que levam o nome de Vanier (após uma discussão com os vários envolvidos para determinar se o nome deve ser retirado ou recontextualizado); a remoção de seus livros dos catálogos das editoras e a retirada de cópias não vendidas (uma revelação: a editora da minha biografia de Vanier, “Logician of the Heart”, irá reciclar as cópias restantes).
De dano maior, é claro, é o profundo sentimento de traição pessoal e de profunda decepção pelo fato de que um homem em quem elas confiavam – e Vanier elevou a confiança como uma pedra angular de uma vida integrada e significativa – não era a pessoa que elas pensavam que era.
Não haverá nenhum momento “santo subito”, nenhuma onda de aclamação pública de que Vanier era um santo; o brilho da santa liderança foi eliminado.
Como isso aconteceu? Por que um clérigo francês excêntrico e narcisista exerceu tanto poder sobre Vanier e até mesmo sobre membros da sua família, e por tanto tempo, mesmo depois de ser submetido à sanção canônica da deposição por parte do Santo Ofício em 1956, privado do seu direito de celebrar os sacramentos, de se envolver em direção espiritual ou mesmo de pregar?
A própria ordem de Philippe consentiu, e todas as partes foram informadas de que ele havia sido censurado pelas autoridades por causa da sua “doutrina mística” e da sua conduta.
Os arquivos dominicanos estabelecem conclusivamente que Vanier estava ciente das razões da censura de Philippe, mas Vanier persistiu mantendo contato com ele, facilitou sua inclusão em várias casas da L’Arche e assegurou que suas práticas espirituais fossem retomadas.
Eu perguntei a algumas autoridades sobre Vanier – Mary Frances Coady, autora de “Georges and Pauline Vanier: Portrait of a Couple”, e Carolyn Whitney-Brown, organizadora de “Jean Vanier: Essential Writings” – se elas tinham conhecimento da verdadeira natureza das sanções de Philippe e se elas estavam pelo menos vagamente cientes da conduta de Vanier. Ambas disseram enfaticamente “não”. Essa também foi a minha experiência.
Todos nós labutamos com a impressão de que a pena canônica de Philippe foi imposta exclusivamente com base em suas teorias mariológicas esotéricas, sem nenhum indício de que havia preocupações mais sérias que ocupavam as autoridades do Vaticano e também os seus superiores dominicanos.
Como consequência do relatório sobre Vanier, os dominicanos estão abrindo duas investigações – uma referente ao tratamento da ordem em relação a Philippe, à luz do fato de que ele parece ter insinuado seu caminho de volta ao ministério ativo com a ajuda de Vanier – e uma relativa ao irmão de Philippe, Marie-Dominique Philippe, fundador da Comunidade de São João e recentemente objeto de uma exposição gráfica do seu comportamento imoral e abusivo contra membros dessa comunidade.
Parece haver algo nos genes Philippe que merece ser examinado.
Durante toda a investigação, a equipe de especialistas respeitou as acusações das mulheres que se manifestaram nos casos de Philippe e Vanier.
Eles atuaram sob o princípio de um “equilíbrio de probabilidades” em vez de “para além de qualquer suspeita”; reconheceram o fato de que ambos haviam morrido (Philippe em 1993, e Vanier em 2019); mas também foram capazes de acessar materiais de arquivo até então indisponíveis, incluindo uma densa correspondência entre Philippe e Vanier.
Além disso, eles conseguiram realizar algumas entrevistas com o próprio Vanier, em uma das quais ele reconheceu um relacionamento que ele teve nos anos 1970, que ele acreditava ser recíproco.
Não há nenhuma ilegalidade em nada disso; nenhum crime contra jovens ou deficientes; nenhum pedido de indenização. Apenas um esforço triste, mas determinado, de purificar as águas da percepção, de ouvir as vítimas com compaixão, de olhar para as origens da L’Arche sem piscar os olhos, de começar as tarefas de cura e de dizer a verdade.
Mentiras e enganos, subterfúgios e evasão comprometeram a integridade da missão da L’Arche. Mas o órgão internacional responsável pela investigação está comprometido – com uma dignidade moderada e eloquente, na minha opinião – em recuperar o seu propósito e em garantir a sua sobrevivência desmistificando as suas origens, responsabilizando o pai e o filho espirituais, e corrigindo os males cometidos.
Permitam-me concluir com uma passagem da minha biografia prestes a ser reciclada que fala do bem duradouro da visão de Vanier, um bem que não deve ser apagado da nossa memória, um bem que nos permite ver além do fundador fraturado, até à verdade mais profunda da nossa humanidade ferida:
“A ‘espiritualidade dos feridos’ de Vanier é uma espiritualidade enredada no mundo de corpos feridos, de mentes feridas, de espíritos feridos. Vanier sabe escancarar a ‘praga da cerebração’ de Albert Camus que envenena a nossa cultura. Para expor ao ar livre as falácias da razão, devemos permitir que ‘os feridos’ curem as nossas feridas e toquem as nossas cicatrizes invisíveis do coração e da mente.”
A L’Arche International, ao conduzir essa investigação, foi motivada por nada menos do que permitir que os feridos curem as nossas feridas à luz da verdade.
O Instituto Humanitas Unisinos – IHU promove o seu X Colóquio Internacional IHU. Abuso sexual: Vítimas, Contextos, Interfaces, Enfrentamentos, a ser realizado nos dias 14 e 15 de setembro de 2020, no Campus Unisinos Porto Alegre.
X Colóquio Internacional IHU. Abuso sexual: Vítimas, Contextos, Interfaces, Enfrentamentos
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Uma luz apagada: Jean Vanier e a traição da confiança - Instituto Humanitas Unisinos - IHU