25 Julho 2025
As árvores não esquecem. Assim é possível resumir o espírito de La morera de Jerusalén (Errata naturae), o mais recente livro da jornalista e historiadora Paola Caridi, no qual explora a história política, cultural e ecológica da Palestina e de Israel por meio de suas árvores. Nos troncos centenários, nos olivais arrancados, nas hortas urbanas clandestinas e laranjas exportadas para o mundo se esconde uma memória vegetal que resistiu a guerras, colonizações e ditaduras.
A entrevista é de Guillem Pujol, publicada por La Marea, 10-07-2025. A tradução é do Cepat.
Caridi propõe olhar para o Mediterrâneo Oriental a partir das plantas, deslocando o ser humano do centro da narrativa. “Enquanto nós, humanos, nos fechávamos em casa durante a pandemia, o mundo seguia o seu curso sem problemas”, recorda. E nessa constatação nasce o seu exercício de mudar o ponto de vista e narrar a história a partir das árvores, hortas e paisagens devastadas.
Nesta conversa, falamos de árvores como sujeitos políticos, da paisagem como arquivo da memória, das ditaduras que temem os parques e da capacidade das plantas de resistir às narrativas oficiais. Como diz Caridi: “O verdadeiro conflito entre israelenses e palestinos é que, para os primeiros, a terra é propriedade, posse; para os segundos, é pertencimento, um vínculo profundo que dispensa explicação”.
Seu livro é mais do que uma visão geral de algumas histórias da flora no Oriente Médio. É também uma declaração acerca do que significa ‘ser’, pois sua leitura estimula a pensar na vida como uma rede relacional. Você tinha em mente essa ampliação do sujeito quando o escreveu?
Não o havia pensado por esse ângulo específico, mas gosto muito que você o conceba assim. Na verdade, considero que La morera de Jerusalén nasceu justamente dessa necessidade de deslocar o ser humano do centro da narrativa. Não para negá-lo, mas para situá-lo em sua justa dimensão dentro de um sistema muito mais amplo e complexo, onde outros seres vivos têm voz, história e agência própria.
A pandemia foi decisiva nesse sentido: fechados em casa, nós, humanos, percebemos que a natureza seguia sem nós, e que essa normalidade natural sem a presença humana era ao mesmo tempo perturbadora e reveladora. A partir daí, senti que era necessário pensar a partir de outros lugares, de outras formas de vida, e repensar nossa relação com o ambiente.
Imagino que viver a pandemia fechada em um povoado da Sicília deve ter sido uma experiência radicalmente diferente da vivida em uma cidade grande.
Completamente. Em um lugar pequeno, você percebe imediatamente a mudança. Os sons se transformam, os pássaros retornam em massa, a paisagem respira sem nós. E se compreende que enquanto os humanos se recolhem em suas casas, o ecossistema segue o seu curso, perfeitamente funcional. Isso ajudou a mudar a minha visão e me perguntar: e se começarmos a narrar não a partir dos humanos, mas de outros elementos: as plantas, as árvores, o vento?
A pandemia foi como um gatilho, mas leituras anteriores também me influenciaram, especialmente Amitav Ghosh. Suas obras, como The Hungry Tide, me mostraram como narrar a partir dos manguezais, do mar, dos vínculos entre os elementos. Não foi um plano metódico, mas uma mistura de acaso, disposição corporal e memória acumulada, especialmente a da minha estadia em Jerusalém.
Lá, viveu momentos decisivos.
Sim. Cheguei em 2003, quando Israel começou a construir o muro de separação entre Jerusalém e Belém. Fui testemunha do modo como arrancavam olivais centenários para erguê-lo. Ver aqueles troncos centenários empilhados ao lado do muro foi comovente. Essas imagens ficaram na minha memória e fazem parte desse “depósito” íntimo de experiências que depois afloram na escrita.
Nessa paisagem vegetal, como arquivo de memória, também aparece a laranja de Jaffa, com uma história fascinante.
As laranjas de Jaffa sintetizam muito mais do que parece. Durante séculos, foram símbolo da riqueza e cosmopolitismo da Palestina, muito antes da criação do estado de Israel. Jaffa foi uma cidade aberta, vibrante, com imigrantes egípcios, libaneses, iemenitas... Tudo isso girava em torno das frutas cítricas, que eram sua maior riqueza.
Contudo, após 1948, a narrativa oficial israelense se apropriou dessa imagem, apagando sua origem palestina. Por isso, Darwish escreve: “Amo as laranjas e odeio o porto”. As laranjas são a sua recordação, já o porto é o lugar de onde eram exportadas, vendidas e transformadas em outra coisa. É um símbolo poderoso que explica muito desta história.
Ressalta que israelenses e palestinos se relacionam de forma muito diferente com a terra.
Sim, e é algo que compreendi enquanto escrevia. Para o Estado israelense, a relação com a terra se baseia na posse, no domínio, na transformação das árvores em ferramenta política ou mercantil. Para os palestinos, ao contrário, a terra é pertencimento, uma continuidade quase ontológica. Consideram-se parte dessa paisagem. Não a racionalizam porque não precisam. É um vínculo profundo, natural, que não se explica, se vive. E isso está no cerne de todo o conflito.
Considera que essa desconexão moderna com a natureza tem raízes mais profundas?
Absolutamente. Penso que boa parte disso começa com a taxonomia de Lineu, no século XVIII, quando começamos a classificar, separar e nomear. Foi útil para conhecer, mas também para controlar e subordinar. A isso se somou o produtivismo capitalista, que transformou árvores e paisagens em mercadoria.
Esquecemos memórias coletivas da convivência interespécie que existiram durante séculos, quando a relação com as árvores e a terra fazia parte da vida cotidiana. E em apenas três séculos, construímos um mundo sem árvores, sem estrelas, sem rios, sem hortas. Basta ver os mosaicos bizantinos da Jordânia. Neles, as árvores aparecem no mesmo nível das casas, refletindo uma convivência equilibrada que hoje perdemos.
E as ditaduras também entenderam a vegetação como aliada ou inimiga, conforme a conveniência.
Totalmente. Vi isso no Cairo, onde, após a revolução de 2011, árvores foram cortadas e bairros de cimento sem vegetação foram construídos para romper os vínculos sociais. As árvores, além de sombra e refúgio, ocultam, protegem, impedem a vigilância absoluta. Em Istambul, aconteceu algo similar. As ditaduras desconfiam das árvores porque não conseguem controlar tudo.
Na Europa, enquanto isso, crescem as hortas urbanas. Como você observa esse fenômeno?
É muito interessante. Em Berlim, por exemplo, essas hortas surgiram como uma ideia Bauhaus: misturar campo e cidade. Hoje, são microcosmos onde comunidades são reconstruídas, o contato com a terra é recuperado e, sobretudo, as pessoas saem de casa, com o rompimento do isolamento. Não importa tanto o que você colhe, mas a experiência coletiva.
Talvez porque, nestes séculos, também perdemos a relação com o céu e as estrelas.
É verdade. Não querendo idealizar o passado, mas em apenas três séculos construímos um mundo sem árvores, sem estrelas, sem rios para escutar. Basta olhar para os mosaicos bizantinos na Jordânia: casas e árvores representadas na mesma altura, reflexo de uma convivência equilibrada. Hoje, as árvores são decoração estética, não sujeitos de uma relação viva.
E talvez também uma forma de recuperar a escuta. Como você diz em seu livro, “ser natureza é escutar”.
Exatamente. Perdemos nestes séculos a capacidade de escutar as árvores, o vento, outros seres vivos. A negação da mudança climática não é apenas ideológica, é surdez. E recuperar essa escuta é um ato político, íntimo e coletivo.