15 Outubro 2024
Ausência de saneamento de águas e coleta de lixo, proliferação de lixões irregulares, superlotação humana, multiplicação de poços salinizados e lagoas de água pútrida, contaminação química, degradação de terras agrícolas... Gaza enfrenta uma catástrofe ambiental e sanitária.
A reportagem é de Pablo Rivas, publicado por El Salto, 14-10-2024.
Mais de 85.000 toneladas de explosivos. Essa é a estimativa do Escritório de Mídia da administração gazatí sobre a quantidade de bombas que o Estado de Israel lançou na Faixa de Gaza durante o último ano, uma quantidade que se multiplicou desde o início do ano. Para entender tal nível de destruição, nada como uma comparação: é um volume superior à soma de todas as bombas que caíram sobre Londres, Nagasaki, Dresde e Hamburgo nos seis anos da II Guerra Mundial. Segundo as estimativas da Royal Air Force britânica da época, o percentual de infraestruturas danificadas em Dresde e Hamburgo foi de 59% e 75%, respectivamente.
Em Gaza, um território hiperpopulado de 41 quilômetros de comprimento e entre seis e doze de largura, onde vivem 2,14 milhões de pessoas — 1,7 milhão são refugiados da Palestina histórica junto com seus descendentes e 1,9 milhão se viu forçado a se deslocar no último ano — os últimos dados sobre infraestruturas danificadas indicam que 66% do total foi afetado, com pelo menos um quarto de todas elas completamente destruídas, segundo números fornecidos pelas Nações Unidas em setembro, baseados em observações satelitais. Isso inclui 227.000 unidades habitacionais, 400 escolas — 85% das instalações educativas desapareceram — e 600 mesquitas, entre outros edifícios. O volume de escombros supera, segundo o balanço da ONU, 14 vezes o total gerado por conflitos armados ocorridos no planeta desde 2008. Em maio, as Nações Unidas alertaram que a reconstrução não seria concluída até pelo menos 2040, e desde então as bombas israelenses não pararam de cair.
Longe de parar por aí — e ignorando o genocídio dos, pelo menos, 42.000 palestinos mortos, um número que não contabiliza mais de 10.000 desaparecidos — a devastação de Gaza não se limita a edifícios e escombros. A destruição atinge todos os sistemas básicos para que a vida animal e vegetal possa existir em condições de saúde e segurança ambiental no superpovoado enclave palestino. O sistema de esgoto e as plantas de tratamento de águas residuais estão destruídos, o que permite a proliferação de lagoas de águas putrefatas e doenças como a poliomielite ou a hepatite A. O lixo se acumula por toda parte, incluindo 1,2 milhão de toneladas de resíduos sólidos espalhados em 63 aterros irregulares — os aterros habituais estão nas inacessíveis “zonas de exclusão” e “de amortecimento” declaradas por Israel — próximas a campamentos de deslocados, segundo dados da Rede Palestina de ONGs Ambientais (Pengon) - Amigos da Terra Palestina. Os aquíferos se contaminam e salinizam a passos largos, devido à sobreexplotação nas áreas onde os refugiados estão aglomerados. As terras cultiváveis se deterioram entre o abandono, a salinização, a contaminação das águas e a destruição causada por crateras, tanques e escavadeiras. E o meio ambiente se enche de toxinas que caem do céu — incluindo o temido fósforo branco — e se misturam entre escombros e água contaminada. Um verdadeiro coquetel que, como aponta o engenheiro Bahjat Jabarin, diretor da área de Monitoramento e Inspeção da Autoridade Palestina de Qualidade Ambiental, “transformou Gaza em uma zona sem possibilidade de vida, com contaminação biológica, química e até radioativa em todos os níveis”.
Após o cumprimento de um ano dos ataques do Hamás em 7 de outubro e do início da invasão e cerco de Gaza por parte de Israel, a rede Pengon e a Universidade de Newcastle apresentaram um relatório que analisa o impacto ambiental da guerra na Faixa de Gaza. A pesquisa faz parte do projeto War and Geos, sediado na universidade britânica mencionada e focado nas consequências ambientais do militarismo no mundo. Isso inclui, como destaca o pesquisador Mohamed El-Shewy, “os resíduos e as consequências que a guerra provoca”. Além disso, como aponta Rasha Abu Dayyeh, integrante da equipe de pesquisa, o projeto está elaborando em Gaza “um mapa da concentração de resíduos de munições, para o qual estamos coletando dados qualitativos e quantitativos sobre os impactos ambientais e na vida das pessoas devido a todo esse armamento”.
As explosões de bombas, como as Mark 82 de fabricação norte-americana, que o exército israelense tem lançado sobre Gaza por meses, produzem temperaturas de 2.000ºC, matando toda a matéria orgânica e os microorganismos presentes no solo. Isso resulta em “uma perda total da fertilidade do solo”, explica o doutor Husam Al-Najar, especialista em saneamento ambiental e da água e membro da rede Pengon na Faixa de Gaza. Ao deterioro do solo se soma a destruição de árvores e cultivos sob as esteiras dos centenas de tanques e escavadeiras que Israel introduziu no território palestino, patrulhando as novas zonas declaradas unilateralmente por Israel como ‘zonas de exclusão’ ou ‘zonas-tampão’, muitas das quais eram usadas para cultivo antes da invasão, mesmo que os alimentos já fossem escassos na época.
Esse tipo de maquinaria militar pesada, cujo deslocamento danifica completamente a camada superficial da terra, provoca “a compactação do solo e a perda de sua permeabilidade, levando à sua secagem total”, explica o especialista. Isso ocorreu especialmente nas áreas de uso militar exclusivo israelense, decretadas à medida que a invasão avançava.
A análise da salinidade da água usada para irrigação dos poucos cultivos sobreviventes revela uma situação catastrófica. Se nas regiões de Al Mawasi-Al Qarara e Jan Yunis, no terço sul da Faixa de Gaza, os olivais costumavam ser irrigados com água de poços com uma concentração de salinidade de 1.800 miligramas por litro, a equipe de campo da Pengon denuncia que a salinidade dos poços agora é de 4.000 mg/l devido ao bombeamento excessivo de água subterrânea para abastecer as centenas de milhares de pessoas deslocadas por Israel. Como consequência, os olivais recém-plantados não sobreviveram, e outras verduras não crescem como de costume.
Conforme aponta o doutor Husam Al-Najar, “a população foi forçada pelas forças israelenses a se deslocar para as ‘zonas de segurança’, que não são seguras, mas eles as chamam assim”. Essas áreas, localizadas na faixa costeira sul do enclave, “também são áreas agrícolas, o que fez com que as pessoas deslocadas internamente tivessem que se estabelecer nessas zonas, de modo que a maioria dos poços agrícolas está sendo usada para abastecer os deslocados”. Essa superexploração está provocando uma intrusão de água do mar nos poços costeiros da região, salinizando a água e tornando-a de difícil uso, ou até letal para os cultivos.
Todos esses fatores resultam no fato de que “68% dos campos agrícolas de Gaza apresentaram um declínio significativo em termos de saúde e densidade em setembro”, conforme denuncia Rasha Abu Dayyeh, do projeto War and Geos. A isso se soma o que a Pengon define como “a destruição completa do setor pecuário” devido à falta de alimento para os animais.
A acumulação de lixo é um dos fatores que mais está degradando a biosfera de Gaza. A equipe da Pengon identificou um total de 63 aterros irregulares surgidos próximos aos campos de deslocados, com um total de 1,2 milhão de toneladas de resíduos sólidos.
“A principal razão para a formação desses aterros insalubres é a proibição por parte do exército israelense de impedir o acesso aos aterros oficiais, já que agora todos estão localizados nas ‘zonas de exclusão’ estabelecidas pelas forças israelenses”, denuncia o doutor Mohammed Alibweini, da rede de ONGs. Isso significa que o sistema de coleta e processamento de resíduos sólidos está, segundo a Pengon, em ‘colapso quase total’ após sua interrupção praticamente completa “devido ao ataque direto a garagens, caminhões e veículos por parte do exército israelense e à grave escassez de combustível”. A consequência óbvia é o deterioro da saúde pública e a proliferação de doenças derivadas da acumulação e decomposição de resíduos, uma situação que Alibweini classifica como uma ‘iminente catástrofe sanitária’.
A isso se soma a situação das águas residuais. Todas as instalações de tratamento estão inoperantes. Isso se deve tanto a ataques diretos israelenses quanto à paralisação das estações de bombeamento por falta de manutenção ou combustível, após o corte de energia elétrica em toda a Faixa de Gaza decretado por Israel, segundo informações da rede de ONGs.
Essa situação levou ao surgimento de 72 lagoas de águas pútridas, de acordo com o monitoramento da equipe da Pengon. Segundo os dados da organização, essas lagoas acumulam um milhão de metros cúbicos de águas residuais não tratadas. Além disso, no leste de Gaza ocorrem “inundações generalizadas de águas residuais nas três principais estações de tratamento da região”, o que provoca o acúmulo de águas contaminadas nas terras baixas, “áreas designadas para a coleta e filtragem da água da chuva, como a lagoa de Sheikh Radwan, na cidade de Gaza”, lamentam.
Com esse cenário, a concentração de centenas de milhares de pessoas na ‘zona de segurança’ marcada pelo Estado sionista forçou os deslocados a criar fossas sépticas para eliminar as águas residuais não tratadas. Como resultado, “a quantidade diária desse tipo de água não tratada que se infiltra nas águas subterrâneas no sul da Faixa de Gaza é de 10.200 metros cúbicos por dia”, revela o relatório.
Tamanha insalubridade provocou a proliferação de diversas doenças gástricas e infecciosas, como cólera, febre amarela, poliomielite, tracoma e hepatite A. Esta última já afetou metade das crianças de Gaza, segundo o Ministério da Saúde, e a situação provavelmente se agravará com a chegada das chuvas de outono e inverno.
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Gaza, biosfera morta: da guerra dos lixões às 85.000 toneladas de explosivos - Instituto Humanitas Unisinos - IHU