A política contemporânea se reconfigura em somatopolítica, a (im)política do corpo sobrevivente, cuja vida nua é gerida para que não se esgote por completo, mas também não se livre de sua precariedade. Entretanto, uma outra política pode surgir justamente nas quebradas, da ginga, à revelia do poder soberano
Foi no 7º ano do Ensino Fundamental, na escola pública que frequentava na comunidade de Itaquera, Zona Leste de São Paulo, que Paulo Ricardo Barbosa de Lima ouviu falar pela primeira vez de Michel Foucault e seu conceito de disciplina. O nome do pensador jamais foi esquecido, e outros tantos lhe foram apresentados ao ingressar no Ensino Médio, quando o professor Fabiano Ramos Torres, uma espécie de Merlì paulista, lançou sementes filosóficas no solo fértil das suas turmas de Filosofia, com aulas que iam das quebradas à cozinha da escola, às praças, esquinas e casas dos alunos.
O Fórum Nômade de Educação e Arte, do qual Paulo Ricardo é cofundador, é um dos frutos dessa semeadura. Na graduação em Direito, ingressou como bolsista integral pelo Programa Universidade para Todos – PROUNI na Universidade Presbiteriana Mackenzie, em Higienópolis, São Paulo, vivendo um verdadeiro choque existencial, onde a periferia e o bairro nobre se encontravam em corredores povoados por uma maioria branca: “A minha pele era a mais escura que eu podia enxergar”. Permaneceu por teimosia: “decidi ser um corpo intruso”, contou na entrevista concedida por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU.
De casa para o trabalho, do trabalho para a universidade e da universidade para casa, Paulo Ricardo aproveitava os trajetos sobre os trilhos para estudar: suas anotações iam margeando as páginas em uma letra trêmula, resultado da ginga necessária para se equilibrar no trem. Essa vida periférica em deslocamento constante virou alvo de seu interesse acadêmico quando se deparou com as ideias de Giorgio Agamben, autor italiano conhecido por seu projeto filosófico Homo sacer e um diagnóstico político sombrio da Modernidade, de que o campo de concentração é a matriz oculta da política, tendo o estado de exceção como expediente jurídico legal para mantê-lo operativo. A hipótese de pesquisa para um mestrado em Filosofia floresceu: “Para mim, estava claro que mesmo espremida dentro de um vagão de trem, a vida se reinventa, encontra escapes, desvios, faz conexões”. E acrescenta: “No horário de pico, as pessoas caminham com passos bem apertados, arrastando os pés, dada a superlotação, enquanto mexem em seus celulares, por isso os pés fazem um estranho barulho, como de uma marcha bem lenta. E, então, comecei a me indagar: por que não se rebelam? Por que não quebram toda essa estrutura? Por que aceitam a humilhação? Por que não percebem que estão sendo conduzidos como gados e que o tempo de suas vidas tem sido sugado?”
Em sua antropofagia filosófica, Paulo Ricardo leu Agamben de forma crítica, percebendo os limites teóricos do modelo epistêmico focado na Europa. Regurgitou sua própria análise olhando para o Brasil: “Quando falamos de uma reatualização da biopolítica e apontamos para eventos catastróficos como o Holocausto, a escravidão, entre outros, com o intuito de ler a atual situação das periferias, não estamos tratando das mesmas coisas ou comparando, mas identificando as assinaturas entre elas, identificando quais forças operaram nesses eventos históricos e permanecem atuando aqui e agora”. No contexto brasileiro, explica, “a racionalidade que pulsa mais forte repondo a vida nua nos trilhos está particularmente ligada ao racismo e à escravização. Não podemos esquecer que os navios negreiros foram precursores dos transportes de massa, da logística de comércio, do mercado de trabalho, da globalização e um dos primeiros empreendimentos transatlânticos”.
Paulo Ricardo Barbosa de Lima (Foto: Arquivo pessoal)
Paulo Ricardo Barbosa de Lima é advogado, bacharel em Direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, mestre em Filosofia pela Universidade Federal do ABC – UFABC, com a dissertação Vida nos trilhos: corpo, vida nua e sobrevivência a partir de Giorgio Agamben, e doutorando em Filosofia pela Universidade Federal do Espírito Santo – UFES com o projeto de tese Periferia e potência a partir de Giorgio Agamben: da sobrevivência à política-que-vem. Acaba de publicar o romance Samir. Corpo em crise, pele em chamas (São Paulo: Mondru, 2025), disponível para aquisição aqui.
IHU – Como surgiu o interesse pela filosofia em sua adolescência?
Paulo Ricardo Barbosa de Lima – Meu encontro com a filosofia ocorreu em duas etapas: primeiro, por meio de uma provocação, depois por meio de um acontecimento. Sou de Itaquera, bairro periférico do extremo leste da cidade de São Paulo, e vim de uma família de migrantes nordestinos, pessoas simples, a maioria sem nenhum grau de escolaridade. Minha formação foi realizada em escolas públicas estaduais, com toda a conflitualidade que isso envolve, ou seja, infraestrutura precária, violência, salas superlotadas, falta de professores, mas também amizades, expressão das diferenças, intercâmbios, vozes, agitação, barulho, hormônios em guerra. Foi na escola pública que aprendi a ler e que segurei um livro nas mãos pela primeira vez. Particularmente, a escola se tornou para mim um lugar de criação. Em seu interior fervilhavam o sofrimento, a escassez, a contradição, juntamente com o universo dos livros, da imaginação. Tudo ao mesmo tempo. Ali acontecia uma espécie de caos que nos expunha à indeterminação, tanto ao possível quanto ao que simplesmente pode não ser.
Fotografia de vagão do Expresso Leste (CPTM) em dia útil. Trem com destino ao centro de São Paulo (estação Brás). Fotografia em preto e branco em granulação do filme (produzida pelo autor, 2022).
Em um ambiente assim, há muita improvisação, instabilidade, disfuncionalidade, pois as formas rígidas simplesmente não funcionam. No meio da aula, explode uma briga, uma confusão... durante a leitura, a inspetora passa pelo corredor gritando. A grade horária é interrompida pela falta de professores, geralmente adoecidos pelas péssimas condições de trabalho, e abre-se um vácuo, um buraco, a chamada aula vaga, em que os estudantes ficam literalmente “vagando” pela escola, aquela estrutura arquitetônica hostil, cheia de concreto, câmeras de segurança, muros altos e arame farpado.
Curiosamente, foi esse caos que permitiu, por exemplo, que ainda na 7ª série do ensino fundamental, a professora de História escrevesse na lousa o nome de Michel Foucault (1). Isso ocorreu em meio a uma discussão acalorada, em que os assuntos se misturaram, pois eu a havia desafiado, e ela contrariada, gesticulava enquanto escrevia o nome do filósofo e tentava explicar o seu conceito de disciplina. É claro que não entendi nada, mas aquilo foi uma espécie de provocação devolvida, e, chateado, depois da aula fui à biblioteca procurar o livro indicado, Vigiar e Punir, mas encontrei apenas alguns exemplares de Microfísica do Poder. Tentei ler, e sem sucesso, desisti. O nome “Michel Foucault”, entretanto, não saiu mais da minha cabeça.
O segundo momento aconteceu em 2006, quando a escola foi revirada de cabeça para baixo com a chegada de um professor de Filosofia chamado Fabiano Ramos Torres (2). Fabiano era um agitador que misturava performance, aula, texto e literatura. Pelo jeito inquieto, o associei à polêmica professora de História. Suas aulas profanavam a estrutura física da escola. Por exemplo, ao mencionar os peripatéticos, Fabiano começou a vagar com a turma pelos corredores: mais de quarenta alunos, e juntando-se a eles, aqueles em aula vaga, caminhando pelo pátio, sentando-se nas escadas... para desespero das inspetoras! Ao abordar Epicuro (3), a aula foi realizada numa pequena horta comunitária, ao abordar Diógenes (4), a aula foi realizada na presença de alguns cachorros caramelos; a aula sobre maiêutica foi realizada na cozinha da escola, junto com as merendeiras.
Textos relatando as discussões sobre público e privado foram escritos num beco, ao lado do portão de entrada, enquanto moradores passavam com suas sacolinhas de supermercado, alguns dos quais simplesmente paravam para escutar o que se dizia e acabavam participando. Eu lembro que numa fria manhã de inverno chegamos à escola e a sala de aula estava vazia. A informação era de que o professor havia registrado presença, mas onde ele estava? A turma começou a procurá-lo até que alguém avistou o teatro da escola com a porta entreaberta, escuro, com uma luz ao fundo, focando no palco... Era o professor encolhido, acorrentado, para abordar o Mito da Caverna de Platão (5). Houve o dia em que o encontramos maquiado, com louros na cabeça, arrastando um imenso lençol branco, numa encenação de “Eustáquio e o espírito do capitalismo”, peça criada por ele para tratar de Max Weber (6); isso para não mencionar o choque de encontrá-lo com a cabeça raspada e literalmente todo pintado de azul, compondo o “Blue Man Foucault”, personagem que interagia com os alunos sobre os principais conceitos do filósofo francês. De Macunaíma a Marx (7), misturando Clarice Lispector (8) e Guimarães Rosa (9), passando por Nietzsche (10) e Paulo Freire (11), a filosofia chacoalhava a escola e seu entorno.
É claro que toda essa movimentação esbarrou na estrutura burocrática, provocando duras reações. Chaves desapareciam, livros sumiam, reuniões eram inventadas, alunos eram punidos e eventos completamente deslocados atravessavam a rotina para desarticular as aulas de Filosofia. Havia uma micropolítica interna que se esforçava de todas as formas para controlar os movimentos ingovernáveis. Entretanto, essas coisas tiveram o efeito reverso e acabaram impulsionando nossa experiência com o grêmio estudantil, despertando a atenção para alguns autores da filosofia política, muito em decorrência dos vídeos e textos de Marilena Chaui (A), que certamente exerceu influência decisiva sobre todos nós.
Fotografia da plataforma de embarque da estação Guaianases, extremo leste, periferia de São Paulo. Fotografia em escala de cinza, focando o corrimão, as escadas e a disposição dos corpos aguardando a chegada da composição (produzida pelo autor, 2022).
A partir da necessidade de resistir a esses meandros da burocracia, criamos o Fórum Nômade de Educação e Arte, onde realizávamos debates intermináveis sobre os mais variados assuntos, encontros nos minúsculos apartamentos do conjunto habitacional, aulas públicas em terrenos baldios, protestos, roda de conversas nas praças, e principalmente nas esquinas, que apelidamos de “encruzilhadas do saber moribundo”. Na periferia não existem centros culturais, então na maioria das vezes permanecíamos até tarde da noite conversando na rua. Foram, de fato, dois anos muito intensos. Alguns poucos registros desse período podem ser vistos num antigo blog que ficou à deriva na internet (B), como que mostrando as cascas, os restos do acontecimento.
Costumo brincar dizendo que muito antes da série Merlí (12) chegar às telas da Netflix, nós vivemos uma travessia muito empolgante, infelizmente privados da linda paisagem de Barcelona. Parte dessa experiência, redundou na tese de doutorado do professor Fabiano Ramos Torres, pela Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo – USP, intitulada “Travessias do beco: a educação pelas quebradas” (C). Além de influenciar significativamente a trajetória de muitos alunos, inclusive a minha, a tese se tornou uma espécie de arquivo e um ponto de inflexão na comunidade local. E o que é importante, frise-se mais uma vez: tudo isso sempre a partir da escola pública.
IHU – Poderia recuperar as circunstâncias que o inspiraram a realizar a pesquisa de mestrado “Vida nos trilhos: corpo, vida nua e sobrevivência a partir de Giorgio Agamben”?
Paulo Ricardo Barbosa de Lima – Logo na adolescência, a necessidade de trabalhar para ajudar financeiramente no sustento da casa produziu uma rotina de amplos deslocamentos entre casa e trabalho. A cidade de São Paulo é particularmente cruel nesse sentido porque suas periferias estão majoritariamente localizadas em suas bordas, em seus extremos. Costumo dizer que São Paulo é uma centrífuga exclusora. O resultado é que milhões de pessoas se deslocam diariamente para a região central, e o tempo médio de deslocamento é de cerca de duas horas e meia por trajeto. Significa dizer que milhões de pessoas passam todos os dias cerca de cinco horas em trânsito, geralmente através de um sistema de transporte público superlotado.
Nanobolhas – fotografia de passageiros em horário de pico, trabalhada em mosaico de bolhas (produzida pelo autor, 2022).
Por meio do Exame Nacional do Ensino Médio – ENEM e do Programa Universidade para Todos – PROUNI, ingressei no curso de direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie como bolsista integral, e essa rotina de deslocamentos se intensificou. Entre casa, trabalho e universidade, a prática da leitura era realizada em meio às travessias pela cidade. Apertado num vagão de trem superlotado, eu realizava minhas anotações enquanto o chacoalhar dos trilhos produzia letras trêmulas, pensamentos interrompidos, pequenas anotações em símbolos e conceitos inacabados. Na maioria das vezes, eu me equilibrava segurando a alça de apoio com a mão direita e um livro com a mão esquerda, completamente comprimido pelo corpo de algum outro trabalhador ao meu lado, estudando em pé, balançando entre uma estação e outra... Em casa, mesmo nos fins de semana, o estudo era interrompido pelo funk em último volume, pela gritaria da vizinhança, pelo som da briga no bar ou pelo grito de gol, já que na periferia tudo é guerra. Era preciso, então, improvisar para conseguir avançar nos estudos.
Penso que isso tudo produz um tipo de saber, talvez um saber menor no sentido deleuziano, atravessado pelas infinitas interrupções, por uma carga de inacabamento, como a paisagem periférica das casinhas coloridas, feitas de tijolos baianos, marcadas tanto pela escassez quanto pela criatividade. Um saber que não pode simplesmente ser descartado ou apenas considerado assistemático. É como se esse saber periférico adquirisse uma ginga, um balanço como o balanço do trem que acaba nos ajudando a encontrar um pequeno espaço para suportar a viagem. E minha intuição era de que esse gingado influenciava minha forma de compreensão do mundo, perpassando, consequentemente a forma como meu pensamento se organizava, minha leitura de mundo, minhas escolhas e perspectivas teóricas.
O que estou querendo dizer é que essa travessia diária produziu algo em meu próprio corpo e evidenciou questões sociais incontornáveis. Na faculdade de Direito, isso se intensificou, porque o meu cotidiano era um choque entre dois mundos completamente distintos: de um lado, Itaquera, a periferia com seus becos, buracos, vielas, quebradas... e de outro, Higienópolis, onde fica o campus da Universidade Mackenzie, a terra da higiene, um dos bairros de elite de São Paulo, com sua assepsia, com suas ruas projetadas, arborizadas, com suas linearidades e sua arquitetura cuidadosamente planejada.
Para mim, aquilo gerava um incômodo que na linguagem jurídica se expressava na contradição entre a vida juridicamente protegida e a vida economicamente vulnerável. De alguma forma, a Constituição Federal estava lá como num pedestal, protegendo a vida, sacralizando a vida, intocada, garantindo direitos de todo tipo, mas, ao mesmo tempo, não era isso que eu via em ato, pois a vida periférica permanecia exposta a todo tipo de violência. Era um ordenamento jurídico com aplicações diferentes, sendo notável a pura vigência sem aplicação convivendo com espaços desordenados de aplicação sem vigência, ou seja, uma estranha naturalização de territórios inteiros onde a aplicação da Constituição simplesmente não se realiza, é suspensa ou no mínimo adiada.
Vida passando bem diante dos olhos - bricolagem de fotografias de passageiros olhando a paisagem pela porta da locomotiva, trabalhadas em escala de cores e transparência (produzida pelo autor, 2022).
No fim das contas, a vida em Higienópolis adquire um valor diferente da vida na periferia, como se uma forma de vida valesse mais do que a outra. E a minha angústia só aumentava, ao perceber que o discurso dos direitos, embora tenha a sua importância, não dá conta de parar a sangria e, em alguns casos, ao contrário, a reforça, já que a saída indiretamente oferecida é de que os periféricos se tornem civilizados... Como se o sistema jurídico fosse o caminho para realizar essa dialética, onde Itaquera, com um pouco de sorte, quem sabe, um dia, se tornará uma Higienópolis. Então pensei: há algo de equivocado nisso! Desconfiado, comecei a revirar autores, sobretudo fora do direito, que denunciassem esse conflito entre a vida juridicamente protegida e, ao mesmo tempo, vulnerabilizada. No meio do caminho, encontrei diversas teorias críticas que apontavam para o conflito entre ambos os polos e, principalmente, para o recorte econômico da organização social da cidade. Porém, meu incômodo só aumentou! (risos).
Primeiro, ao perceber que a via do mero reconhecimento de direitos não deixava de reinscrever a vida na arena jurídica, já empobrecida, e que só reforçava um determinado tipo de saber, ou melhor, um determinado regime discursivo. Em segundo lugar, eu realmente me sentia incomodado com o fato de que, mesmo nas teorias críticas, ainda se exigia uma dialética onde as práticas sociais se orientavam teleologicamente, o que me fez questionar se o futuro escondido nisso tudo não era a Europa, e o direito, o seu caminho. Em terceiro lugar, a crença no progresso não me parecia aceitável, sobretudo pelo apagamento de culturas, línguas e saberes considerados inferiores e descartáveis que se realiza no meio do caminho até a terra prometida, que nunca chega, diga-se de passagem. E, em quarto lugar, a minha própria trajetória indicava que, embora tais teorias fossem importantes para identificar o abismo socioeconômico entre o centro e a periferia, elas deixavam de captar todo o meio, isto é, o ambíguo universo social existente na micropolítica do cotidiano.
Para mim, estava claro que, mesmo espremida dentro de um vagão de trem, a vida se reinventa, encontra escapes, desvios, faz conexões... dentro dos trens, existem os vendedores ambulantes, o vagão dos crentes que transformam o percurso em culto, aqueles que jogam baralho tomando uma cerveja, o artista que se apresenta e, em seguida, passa o chapéu, as mulheres que se tornam amigas e marcam o horário de se encontrar para embarcarem juntas, a galera que se junta para assistir a um jogo de futebol no celular... Há toda uma efervescência que escapa às lentes de algumas teorias críticas, e, a meu ver, o caminho para uma resistência passa por aí, ou seja, por essa reinvenção da vida diante da assimetria, muito mais do que por classe, partido, ideologia, organização, consciência... que são palavras que perderam sentido no meu contexto. Por isso, no começo da minha caminhada de pesquisador, já na monografia de conclusão de curso, levantei uma bibliografia que partisse para uma crítica radical da modernidade. Assim, encontrei alguns pensadores muito interessantes como Nietzsche, Jean François Lyotard, Gilles Deleuze (13), Antonio Negri (14), Maurizio Lazzarato, Sueli Carneiro (15), além de Foucault, claro, que nunca me deixou. Mas foi em Giorgio Agamben (16) que a coisa se intensificou.
Nóia - fotografia de um nóia na bilheteria da estação de metrô Vila Matilde, zona leste de São Paulo, coberto com um lençol branco, pedindo esmolas, como um fantasma. Seu rosto foi preservado, assim como o das pessoas ao redor. Trabalhando a fotografia, ao preservar o seu rosto, o autor percebeu que não há rosto – apenas o corpo, sobre o qual não há luto, só anonimato. Trabalhada em escala de cinza e transparência, com sobreposição (produzida pelo autor, 2022)
Tomei contato com a filosofia de Agamben ao ler três pequenos ensaios chamados “O que é um dispositivo?”, “O que é o contemporâneo?” e “O amigo”. Li esses ensaios pela primeira vez no saguão da Estação da Luz que faz a ligação entre o Expresso Leste e a linha azul do metrô. O espaço estava superlotado, e como de costume a multidão arrastava seus pés parecendo uma horda de zumbis, vidrada na tela de seus celulares. E eu estava lá, no meio daquela multidão, emocionado com a sutileza das palavras e, claro, ninguém notou, porque todos pareciam entorpecidos.
No horário de pico, as pessoas caminham com passos bem apertados, arrastando os pés, dada a superlotação, enquanto mexem em seus celulares, por isso os pés fazem um estranho barulho, como de uma marcha bem lenta. Então, comecei a me indagar: por que não se rebelam? Por que não quebram toda essa estrutura? Por que aceitam a humilhação? Por que não percebem que estão sendo conduzidos como gados e que o tempo de suas vidas tem sido sugado?
É claro que essas questões também diziam respeito ao meu próprio corpo, a forma como me tornei o que sou. Nesse turbilhão de sensações, a filosofia de Agamben me empurrava a olhar para as trevas, para o escuro do meu próprio tempo, enquanto procurava entender os espaços imperceptíveis onde se cruzam as técnicas biopolíticas que conduzem pessoas como gados e as tecnologias que as fazem internalizar essa condição. Quando decidi pelo deslocamento do direito em direção à filosofia, era isso que eu estava procurando compreender, muito mais do que entender as contradições do ordenamento jurídico, eu queria entender como a vida é submetida a uma condição degradante e não se revolta contra isso. Agamben me ofereceu as ferramentas iniciais e o percurso culminou na dissertação de mestrado Vida nos trilhos (D), defendida junto ao departamento de filosofia da Universidade Federal do ABC. Não sem a preciosa ajuda do meu orientador Carlos Eduardo Ribeiro (17), e da minha coorientadora Márcia Junges (18). Ambos abraçaram a coisa toda, toparam a aventura e, mais do que isso, tiveram a sensibilidade de me ajudar a encontrar um ponto de equilíbrio entre interdisciplinaridade e rigor conceitual.
IHU – Quais foram suas maiores dificuldades em levar adiante a graduação em Direito no Mackenzie? E depois, como aluno de mestrado em Filosofia da UFABC, que desafios encontrou ao refletir as temáticas da realidade sob a ótica acadêmica?
Paulo Ricardo Barbosa de Lima – Ingressei no Mackenzie em 2009, no auge da política de universalização do ensino superior conduzida pelos primeiros governos Lula. Todo o foco estava no acesso, mas pouco ou nada foi feito pensando na permanência, ou seja, os cinco anos de graduação em Direito foram marcados pela imensa dificuldade entre ajudar no sustento da casa e se manter com custos de transporte, vestuário, alimentação e livros. Aliás, os livros no Brasil são muito caros, e os de direito, em particular, mais caros ainda. Além disso, havia outro elemento em jogo: o Mackenzie é uma universidade privada de elite, e as primeiras semanas foram assustadoras, porque os corredores eram monocolores. Só havia gente branca de olhos claros, e a minha pele era a mais escura que eu podia enxergar. Com o tempo, e conforme eram realizadas as chamadas do ProUni, aos poucos a diversidade começou a aparecer, a diferença começou a se manifestar. Para mim, estava claro desde o princípio que aquele ambiente não havia sido projetado para pessoas como eu.
hipsters? - foto de passageiros do metrô, conduzidos pelo gradil organizador no momento de embarque em vagão do metrô de São Paulo, Itaquera (produzida pelo autor, 2022).
Na pós-graduação outro problema surgiu: o horário das aulas coincidia com o horário comercial, ou seja, a pós-graduação também não foi pensada para pessoas como eu, para trabalhadores-pesquisadores. As deficiências teóricas também ressurgiram e, no fim das contas, a falta de professores, a falta de estrutura, a incompletude dos conteúdos na escola pública pesaram no processo de adaptação acadêmica. Além disso, as escassas bolsas oferecidas pelas agências de fomento à pesquisa não consideram em seus esquemas avaliativos essa trajetória. Pelo contrário, elas privilegiam a densidade técnica dos projetos e os currículos Lattes recheados por uma produtividade sem sentido, que exige tempo disponível, e isso definitivamente alija os trabalhadores-pesquisadores da possibilidade de preencher esses requisitos.
No fundo, a luta concreta é para não cair nos índices de evasão, para não virar um número frio numa tabela qualquer da burocracia. Ciente disso, resgatei uma das frases que mais usávamos no ensino médio lá na escola pública da periferia, uma frase de Caetano Veloso que anotei em meu caderno: “Não posso negar o que já li, nem esquecer onde vivo. Nego-me a folclorizar meu subdesenvolvimento para compensar as dificuldades técnicas” e decidi permanecer por teimosia, decidi ser um corpo intruso.
Creio que também é importante registrar que, mesmo oriundo do direito, fui muito bem recebido no PPG em Filosofia da UFABC, que é um programa com uma certa abertura às chamadas filosofias do Sul Global e a outras áreas do saber. Isso facilitou muito em vários aspectos, primeiro porque realiza um acolhimento inicial em relação às circunstâncias que geraram o interesse na pesquisa, o que é um fator importante até mesmo para uma melhor definição do problema de pesquisa; segundo, porque, ampliando o cânone da filosofia, permitiu encontros muito potentes com textos de autores como Aimé Césaire, Frantz Fanon, Achille Mbembe (19), Lélia González (20), Aníbal Quijano, entre outros. E esse é um importante passo, porque ainda existe, de modo geral nos programas de pós-graduação, certa resistência em lidar com teorias transpassadas por questões periféricas, ora acusadas de falta de rigor, ora acusadas de uma confusa relação com os autores do Norte.
Ocorre que o justo clamor por rigor, não pode ser um obstáculo à abertura às questões concretas dos nossos territórios nem à interdisciplinaridade, que, a meu ver, só enriquece o conjunto de reflexões filosóficas. Nós também pensamos com os pés, e isso é interessante, especialmente no que diz respeito à filosofia contemporânea, até porque é difícil qualquer inteligibilidade do presente sem ser atravessado por muitos vetores, por uma pluralidade de forças, sem estar aberto a isso.
Assim, quando se é afetado, atravessado por uma pluralidade de forças que incomoda e nos conduz à reflexão filosófica, o passo seguinte é relacionar isso à tradição, ciente de que o que chamamos de tradição é uma convenção político-social e não está determinada a priori. Isso é especialmente importante porque o ponto fundamental repousa na forma como nos relacionamos com essa tradição, com os autores do Norte Global, justamente para não se construir uma relação de submissão, de mera repetição. Isso exige muito esforço, um trabalho inicialmente sobre si mesmo, para então se enfrentar uma efetiva produção de filosofia.
Acredito que esse caminho é longo e passa por um experimentalismo, por uma postura filosófica que convoque ao mesmo tempo uma aproximação e um distanciamento, ou seja, uma postura do pesquisador que se esforça para não cair nem na mera aderência, nem na simples recusa, instaurando um jogo conflituoso de trocas e aberturas que por definição afasta a unilateralidade e estabelece um campo de possibilidades para além da mera atividade de reprodução. E, num campo de possibilidades, sabemos, tudo é possível, inclusive nada. Uma dessas possibilidades, que procuro levar comigo inspirado por minha trajetória, é antropofagizar, comer o invasor, digeri-lo, misturá-lo com os nossos ácidos, com nossas angústias e produzir uma outra coisa que nos faça mais sentido (risos)... Eu acho que a coisa caminha por aí!
IHU – O Brasil é um país marcado pela colonização exploratória e até predatória, pelo genocídio indígena e pela escravidão negra. Como esses eventos históricos continuam a se expressar dentro e fora da periferia em uma biopolítica que se reatualiza de forma impiedosa?
Paulo Ricardo Barbosa de Lima – Para responder a essa questão, preciso fazer um excurso em Agamben, delimitando o que é a vida nua, o conceito que nos permite enxergar esse movimento de reatualização impiedosa. A vida nua é o primeiro conteúdo do poder soberano, dividindo e conectando no corpo bíos político e zoé animal, o limiar entre vida politicamente qualificada e a animalização do humano. Isso porque o pensamento agambeniano descortina a política como estrutura metafísica ocidental apontando a zona indistinta entre esses termos, sendo essa indiferenciação, segundo o filósofo, seu principal fundamento.
Foi em Foucault, mais precisamente nas notas marginais do curso “Sociedade Punitiva”, que Agamben pinçou uma figura do antigo direito penal romano chamada homo sacer. Essa figura que significa “homem sagrado” dizia respeito a quem cometia um delito contra alguma divindade, colocando em risco a pax deorum, isto é, a paz entre a coletividade e os deuses que, segundo as crenças da época, garantia a prosperidade da cidade. Essa figura era extremamente ambígua, porque, ao violar a lei, era condenada à morte e entregue à vingança dos deuses, ou seja, estava ao mesmo tempo dentro e fora da legislação. Condenado à morte, mas sem execução direta, o homo sacer restava abandonado, expulso do grupo social, sem direitos, inclusive sem direito a ser morto segundo os rituais religiosos. Portanto, podendo ser morto a qualquer momento por qualquer um, sem que ninguém fosse responsabilizado, o homo sacer era uma mera vida, ao mesmo tempo sagrada e vulnerabilizada, o que permitiu a Agamben elegê-la como paradigma para expor a dinâmica de violência anátomo-política e biopolítica do direito incidente sobre os corpos. O interessante é que essa relação de abandono paradoxal expõe um corpo banido e ao mesmo tempo incluído através do próprio banimento, concomitantemente objeto e sujeito, onde interno e externo se confundem. Essa radical politização da vida tem no corpo o fundamento primeiro, o que culmina num revestimento de todos os aspectos da existência, no horário de trabalho ou fora dele.
Isso também vem de Foucault, que afirmava que no fim do século XVIII e início do século XIX, o capitalismo socializou o corpo enquanto força de trabalho. Em “A verdade e as formas jurídicas” ele explica que o objetivo passa a ser não mais a exclusão, e sim fixar os indivíduos. Não se trata mais de reclusão que procura segregar, mas do que ele chama de sequestro, de uma tomada do corpo para administrar, controlar e normalizar. Há, portanto, um investimento sobre os corpos visando à docilização, não mais a pura segregação. Esse investimento sobre os corpos, ao esquadrinhar, desarticular, sugere uma espécie de vampirização da vitalidade.
Estação brutal - fotografia da estação da CPTM José Bonifácio, periferia de São Paulo em preto e branco (produzida pelo autor, 2022)
Quando Giorgio Agamben começa seu projeto filosófico Homo Sacer, o que ele tem em mente é justamente vasculhar a relação entre biopolítica e as disciplinas, como se relaciona o disciplinamento do corpo individualizado e as biopolíticas sobre o corpo social, ou melhor, o ponto de intersecção entre técnicas de individualização e procedimentos totalizantes. E é justamente nesse ponto que nasce o conceito de vida nua em Agamben, como uma articulação que divide e, ao mesmo tempo, conjuga vida biológica e vida social, o que nos sugere com certa perspicácia que o corpo continua sendo uma realidade incontornável para o capitalismo, mesmo para esse capitalismo onde tudo parece se desmaterializar. Penso que as transformações do capitalismo nesse início de século revelam essa direção, ao caminhar aceleradamente para uma crescente conjugação entre hard e soft, entre o corpo humano e as novas tecnologias de ponta.
Mas voltemos para Agamben. Para o filósofo, esse lugar onde disciplinas e biopolíticas se cruzam é um limiar, uma abstração que se torna real ao se incorporar em figuras históricas concretas. A vida nua, portanto, é um conceito talhado para identificar as vidas vulnerabilizadas pelos poderes vigentes num determinado regime; os corpos que caem na condição de “coisas”, atravessados ao mesmo tempo por disciplinas e por estratégias biopolíticas. As periferias de todo tipo são os lugares por onde precisamos iniciar essa visibilização. Como dizia Lyotard, “deve-se entrar nas cidades pela periferia”. Por isso, quando olhei para corpos que se arrastam cotidianamente entre periferia e centro em condições precárias de superlotação com absurdas cargas horárias de deslocamento, o instrumental do projeto Homo Sacer se tornou interessante, porque, entre outros motivos, ele não apenas nos permite perceber quais as figuras históricas da nudez em nosso tempo, mas também busca entender onde se situa essa terrível convergência entre as técnicas políticas dos poderes dominantes e a servidão voluntária, ou seja, os processos de subjetivação que vinculam esses indivíduos tanto à própria identidade quanto a um poder de controle externo.
Agora, perceba, se Foucault mostra muito bem como esse corpo na modernidade é adestrado em espaços fechados e sucessivos, a teoria de Agamben nos permite visualizar que na contemporaneidade o sequestro dos corpos não é mais apenas realizado em espaços fechados, mas em campo aberto e, penso eu, pela distribuição espacial que produz e administra a máquina anatômica acoplada à biopolítica. Para isso, o capitalismo estabelece uma colonização do tempo como parte de uma estratégia mais ampla de colonização do corpo individualizado e do corpo social. Infere-se daí que tanto o regime temporal quanto a disposição dos espaços nas grandes cidades são elementos fundamentais para o governo do vivo. Assim, o corpo é posto constantemente em prontidão, em disposição frente a um tempo de emergência que não só Agamben mas também outros autores mencionam como estado de exceção permanente.
Essa disposição redunda na produção do que Peter Pál Pelbart (21), comentando Agamben, chama de “sobrevida modulável”, de “gado cyberzumbi que pasta mansamente”, que em suma significa a perda da especificidade de uma vida acompanhada da sujeição das forças humanas e dos corpos em si a um controle qualquer. Aqui mais uma vez é importante destacar que a colonização do tempo, o adestramento dos corpos e sua disposição como sobrevida modulável não são dados do acaso, são operações logísticas pautadas numa racionalidade de Estado, mas também de mercado, que vem sendo aprimorada ao longo dos séculos, passando pelo período colonial, pelo genocídio dos povos originários, pela escravização, pelo nazifascismo, entre outros horrores. No caso brasileiro especificamente, eventos como a colonização, o genocídio indígena, a escravização negra e, mais recentemente, a ditadura militar foram determinantes para que esse instrumental de sujeição da vida fosse aprimorado. Há, por assim dizer, uma semelhança, um retorno dessas técnicas de assujeitamento que precisa vir à tona.
IHU – Qual é o nexo que une os trens do Holocausto judeu, os trens metropolitanos das megalópoles brasileiras como São Paulo, e o “trem de doido” de Barbacena, Minas Gerais?
Paulo Ricardo Barbosa de Lima – Aqui, acredito que precisamos desfazer um mal-entendido. Quando falamos de uma reatualização da biopolítica e apontamos para eventos catastróficos como o Holocausto, a escravidão, entre outros, com o intuito de ler a atual situação das periferias, não estamos tratando das mesmas coisas ou comparando, mas identificando as assinaturas entre elas, identificando quais forças operaram nesses eventos históricos e permanecem atuando aqui e agora. E isso tem a ver com o método. Em sua filosofia, Agamben elabora um método chamado arqueológico-paradigmático, tentando perceber a teia de forças e tensões que se estabelece entre polos aparentemente antagônicos, ou seja, é uma espécie de bipolaridade, operada com duplas categoriais.
O que me chama atenção nisso é a capacidade que essa forma de pensar tem de desvendar dinâmicas paradoxais, contraditórias, que se manifestam contemporaneamente, como a exclusão-inclusiva de indivíduos nos sistemas político e econômico. É certo que hoje mesmo o pobre na favela está, de certa maneira, incluído em alguns circuitos de consumo, ao ostentar um iPhone 16, um tênis Nike, óculos Juliet e redes sociais monetizadas. Essa inclusão não deixa de ser exclusora, porque tudo ocorre na favela, diante da miséria e da real possibilidade de morte num tiroteio qualquer, mas, ao mesmo tempo, também há que se entender que essa exclusão é diferente do que ocorreu no passado, porque agora é concomitantemente inclusiva, na medida em que essas vidas nuas são celebradas em festivais, em exposições, na construção de logomarcas voltadas para suas demandas enquanto são mantidas em suas posições. Obviamente, essa relação paradoxal não pode ser ignorada, pois nela funcionam mecanismos de captura e extração, e a escolha do método tem a ver com isto: visualizar melhor as matizes e gradações pelas quais a periferia é excluída dos centros políticos, mas ao mesmo tempo se torna central para esses circuitos de consumo.
A arqueologia de Agamben não trabalha com comparações, mas, como o próprio nome sugere, com a arché, e a arché não é um ponto inicial que pula a linha do tempo e se reapresenta tal e qual no cenário atual. Nada disso. A arché em direção à qual o método regride não é um dado localizável em uma cronologia linear, pois o filósofo nem sequer trabalha com uma noção retilínea de tempo. Para Agamben, arché é uma força que opera dentro da história produzindo efeitos sobre os sujeitos. Força identificável pelo estudo dos paradigmas que nos mostram as assinaturas de um regime. No interior de sua filosofia, os paradigmas assumem grande importância, pois o autor menciona fenômenos históricos tratando-os dessa maneira, objetivando constituir um contexto histórico-problemático mais amplo e romper a antinomia entre particular e universal. Em poucas palavras, um paradigma é um singular que, no entanto, torna inteligível um novo conjunto, mas não deixa de ser um singular. Fugindo tanto da indução quanto da dedução, esse método opera por analogia, isto é, de singularidade a singularidade, para fazer emergir as complexas tensões que cruzam a história produzindo sujeição.
A meu ver, o ponto interessante é que esse método nos permite expor como a racionalidade política à qual alguns se agarram para evitar o horror, na verdade, não apenas foi incapaz de impedir o Holocausto (para ficar no paradigma invocado pelo próprio filósofo), como foi essencial para que ele ocorresse. A democracia liberal, a tripartição dos poderes, as eleições, o parlamento, o processo penal, a Constituição, os partidos políticos, as indústrias, as empresas, a imprensa, as universidades, a ciência, todos esses elementos estavam presentes na Alemanha Nazista não como freios, mas como peças da brutal engrenagem de morte. Isso não deveria nos dizer alguma coisa?
Pois bem, no contexto brasileiro, especificamente, a racionalidade que pulsa mais forte repondo a vida nua nos trilhos está particularmente ligada ao racismo e à escravização. Não podemos esquecer que os navios negreiros foram precursores dos transportes de massa, da logística de comércio, do mercado de trabalho, da globalização e um dos primeiros empreendimentos transatlânticos. Os navios negreiros arrancaram pessoas negras de suas casas e as conduziram a campos de trabalho forçado, organizando sistemas logísticos de designação territorial, distribuição, alocação de recursos e tomadas de decisão. Esse terrível empreendimento influenciou a ciência do governo nos primórdios do Estado moderno, porque desempenhou um papel estratégico no ajustamento dos fenômenos populacionais aos processos econômicos.
A sangria provocada do continente africano em direção à América do Sul envolveu logística, mobilidade e acesso como fatores determinantes na definição das vidas indignas de viver. O corpo negro era simultaneamente a mercadoria a ser transportada e o motor do veículo, ou seja, essa mesma logística reaparece diariamente no interior do urbanismo, na arquitetura, no direito, no planejamento e na política econômica ao tratar os corpos pobres negros ou enegrecidos como cargas de mercadoria e, ao mesmo tempo, como mão de obra precarizada. Mais do que exemplos disso, a segregação socioeconômica, o racismo, a criação de guetos, a arquitetura hostil, a aporofobia, as câmeras de vigilância, a explosão de condomínios fechados e as infinitas catracas digitalizadas para controle dos grandes fluxos de pobres demonstram que os modelos de vida atuais permanecem enraizados em um passado infame que não cessa de retornar.
Sabemos que no Brasil as periferias estão repletas de corpos negros que são vistos pela oligarquia como corpos ameaçadores que devem ser controlados. A pele negra ou enegrecida é banida, abandonada por um Congresso esmagadoramente branco. É a “carne mais barata do mercado”, como diz a canção, excluída por seu desvalor, mas ao mesmo tempo incluída porque, afinal, está no mercado. O processo de urbanização brasileiro evidencia isso, ou seja, a cidade brasileira se funda na exclusão da pele negra como redefinição tupiniquim do que é o “homem-lobo”, o “wargus”, ou ainda os bárbaros que moram no morro, os favelados e, em último grau, os bandidos da história. É uma espécie de reatualização da senzala e do engenho. Com isso, o tráfego desses corpos e seus trajetos passam a ser elementos altamente políticos, pelos quais se realizam as operações do poder estabelecido, não só de vigilância e repressão, mas também de excitação.
E eu ainda acredito que essa modulação se dá pelo trabalho, que é uma palavrinha sacralizada que quase passa desapercebido, que ganhou importância na modernidade e esteve decididamente presente em todos esses paradigmas mencionados (Holocausto, trens metropolitanos e o chamado ‘trem de doido’). De alguma forma, a logística do poder vigente mantém em seu interior um cálculo preciso sobre a inarredável distinção entre aqueles que são dignos do trabalho protegido e aqueles que são expostos a perigos maiores, os indignos, relegados a toda sorte de trabalho precário, o famoso “se vira nos trinta”, romantizado pelo discurso do empreendedor-de-si-mesmo. A definição das linhas férreas e dos outros modais passa, com certeza, por isso.
Por causa dessa percepção, penso que é preciso dar um passo além. Quero chamar a atenção para o fato de que essas lógicas se entrecruzam e, mesmo com distinções que guardam entre si, elas se encontram no que Achille Mbembe chama de “brutal extração”, numa analogia ao projeto de colonização imposto ao território africano, e, por que não dizer, também ao território brasileiro. Os trens são parte da logística de extração, assim como exerceram esse papel no Holocausto judeu e no infame Hospital Colônia de Barbacena, ao passar recolhendo os corpos considerados indignos de viver. Isso deixa ainda mais compreensível a afirmação de Mbembe, qual seja, de que a função precípua dos poderes atuais é possibilitar o esvaziamento das substâncias orgânicas, o que decerto exige engenharia, planejamento. O que se espera dos corpos que atravessam diariamente a cidade? Que eles entreguem tudo! O máximo desempenho, a autogestão de si para obter, por meio de algum mérito, o sucesso. Não basta mais colonizar a máquina anatômica: para os soberanos, é preciso colonizar também a subjetividade, extrair tudo o que for possível, fazer com que esses corpos ofereçam autoimolação, em suma, que amem o poder.
É aterrador dizê-lo, mas a historiografia demonstra que, durante a escravidão brasileira, os corpos negros eram chamados de peças, vendidos em leilões públicos, seus dentes eram lustrados, seus cabelos raspados e óleos eram aplicados sobre a superfície da pele para fazê-la brilhar e garantir um bom preço. Durante o nazismo, as indústrias alemãs compravam dos campos de concentração pele, dentes e cabelos de cadáveres judeus para usar como matéria-prima. Mais recentemente, no Brasil, algumas obras recuperaram tanto a existência de campos de concentração durante o Estado Novo quanto a história do Hospital Colônia de Barbacena com suas mais de 60 mil mortes, e a venda de cadáveres, órgãos e ossos humanos. E o que isso nos revela, além de toda a indignação? Penso que isso revela que o capitalismo não tem limites quando o assunto é a gana extrativista, e que, em última análise, essa condição é sempre induzida, ou como diz Judith Butler (22), trata-se de um reforço programático e modulável da precarização de alguns grupos específicos como objetos de extração.
Aqui eu quero aprofundar duas ideias importantes que se abriram no percurso da pesquisa.
1) Primeiro, a ideia de que a racionalidade logística é fundamental aos poderes constituídos. Por ser disperso, microfísico, perpassar as ciências, o Estado, a mídia, as igrejas, os discursos, o poder, em geral estabelecem relações na concretude do dia a dia, investindo na vitalidade dos corpos, orientando, monitorando, incitando, mas também coordenando as disposições de tempo e espaço. Isso significa que hoje os corpos estão enredados em circuitos que determinam previamente formas de relacionamento com a cidade. O Comitê Invisível (23), por exemplo, denuncia que o poder contemporâneo é herdeiro da ciência logística dos militares, isto é, da arte de posicionar e movimentar tropas que asseguram os fluxos, abastecimentos e comunicações da mobilidade estratégica. Ora, atualmente governar equivale a assegurar a interconexão dos homens, dos objetos e das máquinas, assegurar e controlar fluxos, sobretudo numa época em que o poder político se desinstitucionaliza tornando-se crescentemente arquitetônico, impessoal e friamente urbanístico. Por isso, dizer que o poder é cada vez mais logístico é dizer que a arte do movimento, a organização dos fluxos digitais e físicos, bem como o movimento dos corpos são essenciais para as sociedades complexas, o que envolve um conjunto infraestrutural de equipamentos públicos e privados, capazes de demarcar os laboratórios de separação entre o vivente e o falante.
Dada a prevalência da internet e das redes sociais, temos a falsa sensação de que essas abstrações, os softwares, sustentam a si mesmos, quando na verdade são dependentes de uma gama de equipamentos como cabos, antenas, satélites, dutos e vias de todo tipo que infraestruturam suas conexões. Olhando por esse prisma, a arte de organizar estrategicamente esses elementos ganha uma renovada importância, sobretudo nas megacidades. Ocorre que minha transição de Foucault a Agamben se pautou bastante por essa perspectiva, pela ideia do italiano de que a vida nua se transforma numa linha em movimento que deve ser constantemente rastreada, redesenhada, domada. Eu estava ciente de que o capitalismo paulatinamente secundarizou os espaços fechados do século XX em nome do campo aberto nas cidades caóticas do presente.
Hoje, como em nenhum outro tempo, as linhas se expandem numa malha urbana de captura exclusora, emaranhando-se com ruas, vielas, bairros, praças, bosques, terrenos baldios, pequenas passagens... criando desenhos geopolíticos capazes de definir e redefinir acessos, produzir margens, marcar corpos, não mais apenas por megaestruturas industriais, por imensos projetos de intervenção urbana, mas agora também capturando o fora da modernidade industrial através das linhas invisíveis como o Wireless Fidelity (Wi-Fi), o Sistema de Posicionamento Global (GPS), a Inteligência Artificial (IA), as ondas sonoras, a tecnologia smart e os apps. Nesse contexto, o Estado foi estilhaçado até se tornar um gás do mercado, anulando a fantasia do centro visível do poder. E o que resta? Resta uma ordem incorporada nos próprios objetos da vida cotidiana, como o celular, que organizam a vida em torno de circuitos, percursos a serem percorridos para que tudo permaneça em ordem inquestionável ou, na expressão popular, para que tudo permaneça “nos trilhos”, sejam eles físicos, sejam eles digitais.
É óbvio que a crescente integração de elementos materiais e imateriais produz conhecimento técnico estratégico que, por sua vez, conecta cada um ao funcionamento da máquina social, havendo efetiva dependência material que torna os sujeitos, em sua sobrevivência diária, dependentes do bom funcionamento geral. Isso não é novo: a produção de guetos, a indução da fome, a distribuição de trabalho dos kapos, a distinção entre campos de trabalho e de extermínio foram peças-chave no nazismo, assim como o uso de corpos negros como motores dos navios negreiros, a escolha dos portos de desembarque dos escravizados e sua distribuição pelas fazendas foram peças-chave da escravidão brasileira.
É também importante sublinhar a importância da logística nos últimos anos, como as técnicas de isolamento e sufocamento aéreo e fluvial das comunidades yanomamis durante o governo Bolsonaro, a guerra de infraestrutura movida pela Rússia contra a Ucrânia ou ainda o abjeto uso da fome como arma de guerra por Israel contra Gaza. São operações logísticas que permitem aos poderes contemporâneos realizarem experimentos com os corpos precarizados, e a vantagem das oligarquias reside aí: elas detêm a visão geral dos dispositivos, elas cartografaram a Terra e detêm o controle da infraestrutura. São as oligarquias que detêm a capacidade de estriar os espaços, distribuir temporalmente o cotidiano, como forma política de desencadear tensões sociais pelas quais realizam a demolição e a reconstrução dos corpos humanos e não humanos, determinando quantidades, volumes, escalas, medidas capazes de modular, extrair vitalidade, o que Achille Mbembe, de forma acertada, chama de “sistemática transformação da humanidade em energia extraível”.
2) A segunda ideia que procurei incentivar é de que o sobrevivencialismo é uma assinatura do nosso tempo e uma importante chave de leitura do contemporâneo. Nas minhas pesquisas, essa chave surge no encontro com os escritos de Levi e Elias Canetti. Da imagem inicial de uma multidão que arrasta os pés entre uma vida sofrida e um trabalho sofrível, funcionando sob intensa captura de dispositivos cada vez mais sofisticados, extraí a ideia da sobrevivência como esforço contínuo para manter o próprio corpo de pé. É claro que o sobrevivencialismo é um projeto radicalmente impolítico, pois por ele se mantém tudo funcionando enquanto a casa queima, isto é, as pessoas continuam retornando no dia seguinte, com suas cabeças baixas, com seus olhos vidrados nos celulares sem nem mesmo notar os rostos ao redor.
Acontece que mais do que uma política da morte, a política contemporânea se apresenta como uma somatopolítica, a política do corpo que sobrevive em condições limítrofes. O biopoder atual reduz a vida à sobrevida biológica, produzindo ativamente a figura do sobrevivente. Isso é uma mudança importante, revelando vidas nuas administradas para que não se esgotem totalmente e nem se liberem da condição precária.
O sobrevivencialismo é ambíguo, como diz Canetti. Afirma-se o sobrevivente pelo acúmulo de corpos que caíram ao seu lado. Ele insere a convivência quase inteiramente no âmbito da concorrência em busca da invulnerabilidade. A subjetividade é moldada na perspectiva do trabalhador precarizado como herói, como empreendedor agente de seu próprio sucesso, capaz de manter o corpo num celebrado esforço em busca da invulnerabilidade. Aos poucos, isso se torna “uma paixão perigosa e insaciável”, nas palavras de Canetti, que faz com que as pessoas se comportem como animais encurralados. Entre outros efeitos deletérios, o sobrevivencialismo expõe o corpo à luta pelo fiapo de vida que lhe resta e isso o posiciona num enfrentamento contra o próximo, que já não é mais próximo, mas concorrente. Os laços de solidariedade desaparecem em nome de um antagonismo generalizado.
Podemos concluir com isso que o combate pela própria sobrevivência é então um dispositivo que fabrica corpos e subjetividades alinhados ao capitalismo avançado ou ao neoliberalismo. Dia após dia, a dimensão estratégica desaparece, restando apenas a dimensão tática do cotidiano, isto é, trabalhar de dia para comer à noite. E, como no neoliberalismo o futuro é vendido como mercadoria a ser conquistada pelo esforço próprio, sobreviver lida com as ideias de rivalidade e autopreservação. Mesmo a arquitetura das cidades contemporâneas mostra-se com arquitetura da concorrência, fazendo confluir objetos materiais e imateriais para incitar os corpos à luta. O resultado é que, com sua inoperosidade administrada, os corpos ficam presos a essas estruturas, sejam objetivas, sejam subjetivas, como num labirinto... Talvez isso explique a frase de Elias Canetti: “sobreviver é o momento do poder”.
Por fim, perceba que a questão é que a coisa se dá tanto para extrair “do” corpo quanto para se extrair “o” corpo. O pano de fundo disso é a criação e sustentação de um corpo considerado “sadio”, “uno”, que se beneficia da extração dos corpos indesejáveis porque possui, em suas mãos, a cartografia da Terra. Isso se realiza incluindo os corpos indesejáveis na engenharia logística de extração, para que, no fim da equação, um corpo “sadio” se afirme.
Quando digo que o capitalismo não encontra limites, isso não é força de linguagem, é literal. O capitalismo avançado irá até as últimas consequências para manter tudo em funcionamento, tudo “nos trilhos” em nome de um corpo unificado capaz de expurgar os desviantes. É somente nessa chave que poderemos entender movimentos concomitantes como a manipulação deliberada de grandes contingentes populacionais, os controles de acesso, a eliminação da Cracolândia, a gentrificação, a especulação imobiliária, mas também as grandes operações urbanas, os programas de desenvolvimento acelerado, a centralização das periferias nas estratégias de marketing e as reformas neoliberais que expõem alguns grupos a condições precárias em nome da suposta saúde fiscal do Estado.
Agora, diante de uma situação tão desanimadora, também é importante dizer que nos traços minúsculos desse diagnóstico crítico do presente existe um duplo que não podemos ignorar. Sim, há um duplo nessa chave do sobrevivencialismo, visto que, ao mesmo tempo que é rebaixada à dimensão tática do cotidiano, a vida é empurrada a criar novas formas de atuação, a reinventar mundos e caminhos, a fazer trilhas para além dos trilhos. É certo que os poderes vigentes vampirizam essa capacidade plástica de reinvenção. No entanto, sempre há algo que escapa, algo que resta e que, quem sabe, possa revirar o quadro assimétrico.
IHU – Em que medida campo e periferia se aproximam e têm no capitalismo seu fio articulador?
Paulo Ricardo Barbosa de Lima – Fiel ao seu método, Agamben afirma que o paradigma da modernidade é o campo de concentração, e não a cidade. Por trás dessa polêmica afirmação, há a convicção de que a figura do campo não é apenas um fato histórico ou uma anomalia do passado, mas uma matriz oculta. Isso significa que no interior de sua obra esse é o espaço, que pode ser geográfico ou não, onde a estrutura jurídico-política contemporânea fica patente. E, claro, em Agamben essa estrutura é a exceção.
O estado de exceção, em poucas palavras, é acionado pelos poderes soberanos visando à manutenção das relações de poder. É um vácuo gerado pela suspensão da lei onde tudo é possível às estratégias biopolíticas e que, hoje, se generalizou, por isso se diz que o estado de exceção é permanente. A própria etimologia da palavra exceção aponta seu objetivo: capturar o fora. O campo, então, é a estrutura em que o estado de exceção é realizado normalmente e a vida conduzida à sujeição integral, à decisão excepcional de um soberano qualquer. Há muitos exemplos de campos na atualidade: Gaza, a fronteira dos EUA com o México, as prisões de El Salvador, Guantánamo, os campos de refugiados de todo tipo, Sonapur, Skid Row, os refugiados afegãos abandonados no Aeroporto de Guarulhos, a cracolândia, as favelas do Rio de Janeiro, o cerco dos garimpeiros contra os povos originários, enfim, as inúmeras periferias de todos os cantos. As periferias do Sul Global, em especial, são verdadeiros campos laboratoriais onde se produzem e se administram corpos presos às próprias necessidades. Além disso, a investigação agambeniana em torno dos campos de concentração evidencia aspectos perturbadores que merecem nossa atenção.
Primeiro, o fundamento jurídico para a instituição dos campos e do internamento na Alemanha nazista invocava a ordem constitucional democrática. Aliás, os primeiros campos foram construídos antes do nazismo, ainda sob um regime social-democrata, de modo que o regime totalitário radicalizou uma racionalidade jurídico-política preexistente. Isso nos leva a crer que existem vínculos obscuros entre totalitarismo e democracia que ainda são pouco percebidos e criticados.
Segundo, que o lastro jurídico da época, chamado Schutzhaft (custódia protetiva), era um estatuto jurídico policial e preventivo cujo fundo era a captura dos corpos considerados ameaças à segurança do Estado. A custódia rastreava e retirava das ruas o corpo ameaçador, mas, note bem, seu objetivo não era apenas conter a ameaça, mas preservar um corpo social supostamente puro, a raça ariana. Ora, veja só! Havia racismo, só que a questão não era o encarceramento em si, mas a constituição de um novo corpo social, puro e unificado: o corpo fascista contra a multiplicação das diferenças.
Essa estrutura reaparece em todo e qualquer lugar onde a exceção se atualiza: nos morros, nas reservas indígenas, nas estações de trem, nas fronteiras etc. E se a exceção se atualiza para capturar o fora, não é demais dizer que, de certa forma, o faz para gerir uma diferença qualquer, isto é, tudo o que difere desse corpo uno, que ameaça seu modo de vida. Para ficar no vocabulário agambeniano, a exceção é um mecanismo de captura das formas-de-vida. No contexto capitalista avançado, a constituição de espaços concentracionários se mostra essencial para a distribuição da população no quadro de crescimento caótico. O que é importante frisar é que se a dinâmica do capital já não se resume à segregação, mas ao governo dos corpos, mais do que reativar técnicas de gestão como as dos primeiros guetos nazistas, o que está em causa é o controle dos acessos. Que os corpos circulem é até desejável para o capitalismo, o que é indesejável é que circulem imprevisivelmente.
Hoje, sob o anonimato de muitos dispositivos, esconde-se a paranoia da antecipação de condutas, às vezes levada a cabo por algoritmos e IA’s. O campo hoje nem sempre possui grades e arames farpados; na maioria das vezes, caracteriza-se pela simples desertificação de um território. Em todo caso, o que retorna? A experimentação da vida nua, a exposição última sem qualquer mediação. Em outras palavras, são novas versões de uma mesma técnica e que agora, como nunca antes, encontram tecnologias de ponta, capazes de rastrear, prever, reorganizar, tudo muito velozmente.
Cada dia mais, as periferias se espalham. Há periferia nas bordas da maior cidade do Brasil, mas há periferia também debaixo dos viadutos do centro, porque a periferia é todo lugar onde existe um sistemático rebaixamento das formas-de-vida. É sintomático que a periferia e o centro se movam num tempo em que tudo parece perder as referências, e isso a meu ver só revela que o capitalismo avançado é quem assumiu a ponta da lança. Hoje, é o capital que faz as revoluções, que faz tudo se desmontar e remontar um milhão de vezes. Mas então, pensemos, se tudo se move o tempo todo, e a geografia nem sempre assegura a fixação dos corpos num determinado espaço, como é que os poderes vigentes procuram se antecipar? A resposta é pela reestruturação permanente de tudo, que é um outro nome para crise. A necessidade de desestabilizar para prevenir por meio da crise, na verdade, procura evitar uma crise efetiva. Por isso, como dizia Hannah Arendt (24), o inferno é produzido. E isso aumenta a necessidade capitalista de controlar os fluxos e circulações e não mais apenas as fronteiras.
É com certeza uma aposta de risco das oligarquias, e não raras vezes a morte é o resultado. Mas o fato é que a periferia, como os campos de concentração, se distingue do puro extermínio. Não é que o extermínio não ocorra. Como eu disse, ocorre. Porém, a questão central é fazer experimentos com o corpo: trata-se do controle. Aqui reside a versão capitalista de uma velha pergunta filosófica: afinal, “quanto pode um corpo?”, isto é, quanto pode suportar.
A vida periférica é calculadamente exposta ao perigo e essa exposição agudizada por estratagemas de poder visa posicioná-la em extremos vitais, onde seus sobressaltos permitem extração de sua vitalidade. O que surge daí é um novo tipo corporal preocupado apenas com a própria sobrevivência; isso porque o jogo dos dispositivos é primariamente um jogo de desorientação, que se viabiliza pela constante aceleração do cotidiano através de um vertiginoso vai e vem de imagens e sons.
IHU – Quais são esses corpos que sobrevivem sobre os trilhos, como propõe em sua pesquisa de mestrado?
Paulo Ricardo Barbosa de Lima – É o que chamei de corpo sobrevivencial, que emerge da articulação da vida nua no contexto das periferias das grandes metrópoles. Vizinho da morte, próximo do desaparecimento, transitando pela hiperexcitação digital, esse corpo está agarrado ao imenso esforço para se manter de pé, porque foi estrategicamente posicionado em condição precária.
Precisamos lembrar que esse é o corpo do sobrevivente que é, sobretudo, um corpo útil. E o é porque, no capitalismo avançado, o desejo é disputado para que se torne um desejo de servidão. Se não lidarmos com isso seriamente, não haverá futuro para as lutas sociais. Quando Primo Levi encara a difícil questão dos kapos no contexto da Segunda Guerra Mundial, e diz que nos campos de concentração a rede de relações humanas não era nada simples, sendo impossível reduzi-las a dois blocos, o das vítimas e o dos opressores, o que ele desperta, na minha perspectiva, é que havia uma complexa economia de papéis no interior dos Lager, envolvendo a luta intestina pela sobrevivência. Na dissertação de mestrado, procurei demonstrar que a luta desesperada, oculta e contínua entre sobreviventes requer e produz uma determinada retórica corporal, que chamei de corpo sobrevivencial. Penso que esse é um conceito para definir os corpos precarizados nas grandes cidades contemporâneas.
Nesse ínterim, notei que os campos eram governados por uma espécie de concorrência generalizada onde se instalava uma zona cinzenta entre colaboração e resistência. Esse contexto assimétrico baseia-se num cálculo utilitário de acordo com a seguinte equação: pelo lado do biopoder, o maior governo ao menor esforço, e pelo lado do sobrevivente, a menor possibilidade de morte ao maior esforço. O desequilíbrio dessa equação forma o Muselmann, o corpo que caiu em esgotamento. Por isso, o desejo do poder é fazer funcionar, é dispor corpos “em função de”, ou seja, em dependência relacional, em função disto ou daquilo. Enquanto esse corpo é funcional, ele é útil, quando deixa de funcionar ou se torna disfuncional, passa a ser considerado inimigo e, assim, descartável. É nesse sentido que falamos de uma sobrevida modulável, porque se trata sempre de um esforço calculado em “fazer sobreviver a qualquer custo”. Para o mercado, não há nada melhor do que um corpo disposto a tudo para ganhar um pouquinho mais de sobrevida, seja qual for a promessa ou a ilusão.
Além do desespero e do medo diário, o corpo exposto a condições precárias no espaço concentracionário sofre três importantes efeitos: 1) a reprodução da cadeia hierárquica e funcional desse espaço em que se encontra; 2) a imposição de um estado de prontidão que se manifesta como predisposição a matar para sobreviver; 3) a anestesia da memória, isto é, a banalização do cotidiano numa espécie de dormência corporal. É nesse quadro que um novo corpo é fabricado, o corpo sobrevivencial, justamente porque está em constante prontidão de dupla face, ou seja, lutando pela própria sobrevida enquanto paradoxalmente mantém em funcionamento o sistema que o introduz nessa condição precária.
Eu iria até além... talvez diria que esse corpo não é mais o soldado esquadrinhado pelas disciplinas como viu Foucault, talhado nos espaços fechados e incluído num exército que opera em bloco. Esse corpo é o guerrilheiro, atravessado pelas técnicas de controle, talhado em espaço aberto e lançado à própria sorte, num interminável estado de emergência. Enquanto o soldado era um sujeito da linha de produção fabril, o corpo sobrevivencial do guerrilheiro contemporâneo é o sujeito do mercado informal, selvagem, precarizado, dissolvido entre milhares. Seu sofrimento é físico e psíquico, e isso na verdade revela muito sobre os caminhos do biopoder atual, pois o sucesso que se espera não é do guerrilheiro ou da produção de modo geral, mas da própria operação em si. Como no meio militar, não importa se a operação fracassou, pois, mesmo quando fracassa, há uma incorporação de conhecimento contrainssurrecional.
Na periferia, dizemos assim: “fulano é guerreiro” para destacar seu esforço pessoal. Mas essa história de esforço pessoal é mais um instrumento da exceção que governa para a obtenção de recursos, atuando sobre potenciais de forma compulsória e acelerada. A mobilização desses corpos sobre trilhos ocorre primeiramente para extrair energia vital, plugando-o aos circuitos de mercado e ao planejamento estatal. De um lado, um celular nas mãos com a falsa oferta da experiência-mundo, de outro, os trilhos do consumo conectando Big Data e Machine Learning.
De um lado a velocidade do trem, de outro, as imagens borradas das paisagens diariamente iguais. Esse é um corpo bombardeado pelos dispositivos, enredado num confinamento inercial, ou seja, onde o campo de experiências possíveis se fecha. Ao “tudo é possível” do mundo globalizado, falsamente oferecido ao corpo em prontidão, equivale o “nada é possível”, porque esse mesmo corpo é conduzido às portas do esgotamento, o que o faz girar sempre em falso, em torno da mera possibilidade. Esse corpo resvala o esgotamento, ele se equilibra entre cansaço e esgotamento para que ofereça os recursos necessários à economia, seja ela de que ordem for.
Mas a coisa não para por aí. Modulado nesse equilíbrio entre sobrevida e morte, entre cansaço e esgotamento, o corpo sobrevivencial é sempre empurrado a cumprir uma função no campo de concentração. Sobreviver na periferia significa “se virar nos trinta”, “dar uns pulos”, “fazer um corre”, ou seja, exige-se do corpo que percorra suas próprias potências em resposta a um perigo iminente. O corpo sobrevivencial é com isso conduzido a duas respostas. Primeiro, ele se posta como corpo armado, e eu gosto de usar a figura bem brasileira da aranha-armadeira, ou seja, num estado de alerta, disposto a golpear quem quer que seja. Em segundo lugar, ele também pode se postar numa espécie de indiferença, de frieza, que todavia não é total, sendo na verdade comparável à tanatose, justamente porque busca se manter sobre o fiapo de vida. É nesse limiar que qualquer possibilidade de resistência é previamente minada. Por isso, eu insisto que um dos grandes projetos do biopoder contemporâneo, antes de simplesmente produzir a morte, é administrar o esgotamento dos corpos expostos à própria sobrevivência.
IHU – Quais os pontos de aproximação entre o “noia” dos grandes centros e o muselmann, este descrito por Primo Levi e retomado por Agamben?
Paulo Ricardo Barbosa de Lima – Na pesquisa de mestrado, realizei algumas aproximações entre as figuras do Muselmann e do noia. O Muselmann, sabemos, é a figura encurvada, sem qualquer reação, que perambulava pelos campos de concentração nazistas. Diferentemente dos prisioneiros comuns, o Muselmann já não esboçava força corporal, sendo muitas vezes comparado a um morto-vivo.
Penso que na periferia, enquanto o trabalhador inserido nos trajetos degradantes equivale ao sobrevivente, o noia é a figura que mais se aproxima do Muselmann. Isso porque o noia possui relação distinta com o tempo e o espaço. Ele se arrasta pelas ruas, maltrapilho, geralmente drogado, cumprimentando pessoas e pedindo moedas para alimentar o vício, revirando o lixo para comer. Ele é o vagabundo, o andarilho. Não respeita o relógio, nem as convenções sociais. Está ali, mas desvinculado do mundo. Recusa o trabalho e os estudos. Ele é popularmente chamado de “sem futuro”. É o corpo sobre o qual ninguém chora, não funciona, apenas se arrasta pelas vielas da periferia sem rumo. Em São Paulo especificamente, a cracolândia se tornou uma nuvem de noias, que se move em muitas direções pelas ruas do centro da cidade. Isso provocou uma série de reações do Estado: do desespero às tentativas de espalhar o fluxo, até a internação compulsória, passando pela velha repressão policial.
Em alguma medida, o noia também procura sobreviver, mas para isso cria um outro ritmo. Sua presença é perturbadora por muitas razões, também porque é uma vida totalmente entregue, seu simples desaparecimento nem sequer levanta questionamentos. É um corpo que transita sem que ninguém saiba o que fazer com ele e que, no fim, das contas nos faz pensar se no capitalismo atual, de alguma maneira, todos os trabalhadores e trabalhadoras não estão se tornando noias. Tão viciados, sem futuro, revirando restos, juntando cacos para se manter de pé...
Certa vez, Hannah Arendt disse que o verdadeiro escândalo do Holocausto era que, pela primeira vez, os horrores impostos aos povos colonizados haviam sido impostos aos brancos em pleno solo europeu. Da mesma forma, o verdadeiro escândalo dos noias é que sua presença é uma cusparada na face dos centros financeiros, impondo ao coração da metrópole a trapificação da vida que antes era relegada aos lugares mais distantes, mais isolados.
IHU – Por que a stásis (guerra civil) é um paradigma que nos ajuda a compreender a sobreposição de técnicas colonialistas, racistas e neoliberais sobre a população, transformando-a em campo de batalha?
Paulo Ricardo Barbosa de Lima – Porque a guerra contemporânea mudou de perfil. Não é mais uma guerra entre Estados, mas uma operação biopolítica que mantém e aprofunda clivagens que atravessam as sociedades. É guerra total, marcada pela confluência de técnicas e um dos seus objetivos é tornar as populações corpos amorfos, ao mesmo tempo alvos e campos de batalha. E por que a guerra ainda é uma grade aproveitável para se entender as dinâmicas sociais? Bem, Agamben fala explicitamente que essa nossa casa-mundo queima desde pelo menos a Primeira Guerra Mundial, mas eu apontaria dois fatores: primeiro, porque hoje há uma crescente militarização da vida. Segundo, porque acredito que o liberalismo e o neoliberalismo carregam, dentro deles, a guerra como modus operandi.
Nós tendemos a esquecer que a internet, por exemplo, nasceu de um experimento militar. Com isso é possível notar que o capitalismo opera em modo de contrainsurgência. Por outras vias, o conceito de stásis, a discórdia civil que perturbava a pólis grega também aponta a centralidade da guerra nos regimes de poder do Ocidente. Como não poderia ser diferente, o filósofo problematiza o conceito apontando sua ambiguidade, pois na Grécia Antiga ele oscila entre causa destrutiva da cidade e paradigma de sua reconstrução, ou seja, como umbral de indeterminação entre o político e o impolítico. Para os fins da minha pesquisa, realizei uma apropriação do termo muito mais na esteira do que Agamben desenvolve em torno do conceito de multidão dissoluta, a massa dos atormentados, alvo de governo do biopoder, segundo a releitura que o filósofo realiza d’O Leviatã. Acho que essa é uma brecha para abordar a atual dinâmica contrainsurrecional.
Segundo Agamben, no Leviatã há uma tentativa de banir a guerra civil e estabelecer a soberania do Estado, mas, ao fazê-lo, Hobbes (25) acaba por introduzir no próprio conceito de povo a cisão que torna a stásis possível. A guerra civil, mesmo diante da tentativa de sua neutralização, de certa forma se mantém por dentro e para além dos Estados modernos. O resultado prático disso é que culminamos numa indistinção entre as figuras do cidadão e do inimigo. Mais do que um conflito armado interno, essa guerra é uma condição de suspensão da ordem política e jurídica que esfumaça também os limites entre alvo e campo de batalha. No entanto, o ponto alto aqui, a meu ver, é o que ele chama de “fratura biopolítica moderna”, já que na sua visão a ideia de um corpo político indiviso nunca passou de ficção da democracia moderna, servindo apenas a justificar a cruzada do poder para formar esse corpo social completamente submetido. É bom que se diga que hoje essa cruzada já não é exclusiva do Estado moderno, ela é um trabalho sujo em coparticipação envolvendo o mercado, as oligarquias e, mais recentemente, os bilionários.
Ocorre que no interior desse povo que os soberanos desejam criar há sempre um explícito ou implícito expurgo do corpo popular abjeto realizado pela guerra civil instalada. Com isso, constata-se que, para o poder vigente, o inimigo é todo corpo vivo que emerge pronto a acessar, ocupar, destoar, atravessar, escapar, imigrar, movimentar, em sumo, profanar as coordenadas concentracionárias de reprodução do estado de exceção permanente. Todo corpo que se volte contra a constituição do fictício corpo político integral e fascista, contra sua funcionalidade no interior reprodutivo do campo em que está inserido ou que desafie a dialética da produção desse “Povo uno governável”, é tratado como inimigo.
Creio que essa forma de leitura nos ajuda a explicitar a tanto a violência quanto a dissimulação das oligarquias, entre outros motivos porque essa cisão interna nunca desapareceu e continua atuando nas democracias do nosso tempo. Fica fácil perceber também que geralmente o tabuleiro chacoalha por meio de uma crise qualquer. E quando uma crise qualquer é produzida, o que se coloca em marcha é sempre uma operação... Operação no sentido militar do termo. O germe da guerra, interno à economia capitalista desde seus primórdios, reaparece com todo vigor, substituindo a economia política por uma economia bélica.
Eu só acrescentaria o que Paul Virilio, em seu livro “Guerra Pura”, pontuou, isto é, que as armas nucleares mudaram todo o estatuto das guerras. A questão agora é o tempo de reação que cria uma espécie de automação bélica, que aos poucos independe da interferência humana. Com isso, a velocidade absoluta corresponde à destruição absoluta, sendo que o que chamamos de guerra é uma cortina de fumaça, um fenômeno difuso que nem é guerra formal, nem paz de fato, mas na realidade anula toda distinção entre guerra e paz, favorecendo o surgimento não de conflitos, mas de atos de guerra sem guerra formal. Ou seja, este fenômeno transfere as máquinas de guerra, das guerrilhas urbanas para a máquina de Estado, o que faz com que Virilio diga, com toda razão, que o Estado não pode mais reagir ao terrorismo senão tornando-se, ele próprio, terrorista.
Ora, aí está a famigerada sobreposição das técnicas colonialistas, racistas e neoliberais, ou seja, não mais impostas por um ente externo, metafísico, mas introduzidas nas malhas mais ínfimas da vida, disseminadas por dentro e através da população, onde qualquer um pode se tornar um infeliz soberano, determinando o destino de uma vida nua.
IHU – Entretanto, a partir desse cenário, insurgências e resistências brotam pelas frestas do instante. Que formas-de-vida podemos interpor a essa máquina que teima em gerar vida nua?
Paulo Ricardo Barbosa de Lima – Acredito que essa é uma grande questão, tanto em importância quanto em tarefa. Um bom começo, talvez, seja realizar uma crítica consequente. E o que eu chamo de crítica consequente? É aquela que fita o escuro nas luzes do nosso tempo, mesmo que isso nos cause desconforto. Uma crítica consequente não tem medo de enfrentar as aporias mesmo quando isso equivale a uma certa crueldade. Não deixa de ser uma parresia, com todos os riscos que isso implica. De igual forma, acredito que precisamos mirar os movimentos aberrantes, para usar uma terminologia de Lapoujade. Perceber quais são os movimentos que provocam reações nos poderes soberanos sem descuidar dos dispositivos que os capturam. Mirar o que é pequeno, marginal, efêmero... perceber desordens e heterogeneidades nos circuitos e reconhecer que a resistência se espraia no cotidiano, não mais na megalomaníaca e decadente política institucional.
Aliás, muito tem sido dito sobre resistências, desde os novos comuns até os bloqueios, passando pela secessão e o êxodo. Em todo caso, o que falta é verificar de perto onde estão essas formas-de-vida mesmo que elas contradigam nossos esquemas intelectuais preestabelecidos. Mais do que verificar de perto, é preciso abrir passagens... Quando escrevi a dissertação, pensei muito na figura dos trilhos, com sua rigidez, e claro, também no significado coloquial do termo “vida nos trilhos”, que popularmente significa vida correta, vida obediente; mas ao mesmo tempo pensei nas trilhas que se criam nos percursos, desde a trilha daqueles que pulam as catracas e evitam o pagamento até aqueles que criam trilhas entre um vagão e outro para fugir do guarda. Também há as trilhas do noia... E não são poucas as ocasiões em que as formas-de-vida, buscando experimentar outras vias menos governadas, caem na autodestruição.
Se nos aconchegarmos um pouco mais a Agamben, a questão passa a ser: onde estão essas inoperosidades ou ainda, onde habitam as potências-do-não capazes de causar contracircuitos nos fluxos do poder? Eu não tenho essas respostas, mas sei que um corpo pode muito, inclusive sabotar um mecanismo, provocar um desvio qualquer. Quem sabe ainda seja possível conectar os pequenos vaga-lumes cujas pequenas e frágeis luzes continuam a existir e a brilhar, mesmo em tempos de escuridão, como afirma Didi-Huberman.
IHU – Quais são os limites teóricos que percebe no modelo agambeniano de diagnóstico do presente?
Paulo Ricardo Barbosa de Lima – Agamben é um ótimo ponto de partida, mas não precisa ser o ponto de chegada. O modelo agambeniano é uma caixa de ferramentas, mas tem, sim, seus limites. Embora sua contribuição seja decisiva, creio que a teoria do autor se limita demais ao realizar o recorte epistêmico quase que exclusivamente sobre solo europeu. Não penso que Agamben seja obrigado a pensar a nossa realidade, porque, afinal, essa é uma tarefa muito mais próxima de nós mesmos, mas seu projeto filosófico seria enriquecido se tivesse incluído, na perspectiva observada, eventos como a escravidão e o colonialismo, até porque, como já disse, são eventos que dialogam abertamente com as tecnologias biopolíticas que o autor procura entrever.
Há também o limite apontado por Judith Butler de que seu conceito de vida nua destaca o crescente e generalizado processo de vulnerabilização de parcelas cada vez maiores da população, mas deixa escapar os modos pelos quais essa vulnerabilidade é ainda mais reservada para alguns grupos. Concordo com Butler, pois, se a vida precária é comum a todos, então é imprescindível percebermos que a distribuição dessa precariedade se dá de forma desigual. Há vidas muito mais precarizadas do que outras, e isso obviamente é intencional. O conceito de vida nua é um importante começo, mas não nos permite enxergar as formas micropolíticas da reposição da nudez, justamente porque não avança nessa economia de distribuição da precariedade, como alerta Butler.
Outro limite é o próprio conceito de dispositivo do autor, que parte de uma apropriação sui generis do conceito de Foucault. Essa apropriação, pelo que me parece, marginaliza o importante fato de que, para Foucault, a resistência antecede ao poder, isto é, as relações de poder se ancoram nas resistências micropolíticas, e não o contrário. Isso de alguma forma fecha em Agamben a perspectiva do escape, o que tem sido chamado pelos seus críticos de “eclipse da política” como resultado de uma abordagem unidimensional e irreversível do vetor de captura, orientação ou governo.
A meu ver, a principal limitação é que o filósofo cai nesse fosso unidimensional ao estudar a vida nua nos campos de concentração nazistas, mais especificamente em suas obras Estado de exceção, O que resta de Auschwitz e Homo Sacer I, quando opta por centrar suas análises quase que exclusivamente sobre a figura do Muselmann. Ao operacionalizar o conceito marginalizando as demais figuras dos campos, Agamben perde de vista as redes de sobrevivência que se formaram em meio ao espaço concentracionário, as formas coletivas de resistência, os pequenos gestos de desobediência, as revoltas de toda ordem, perde de vista a economia interna dos campos, ou seja, a forma de organização interna. Isso tem um efeito em seu projeto filosófico, porque, no fim das contas, acaba transferindo para a sociedade contemporânea o corpo atravessado do Muselmann, sem considerar que nem todos aceitaram passivamente o rebaixamento de suas formas-de-vida.
Seguramente, a sociedade como corpo amorfo é um projeto dos poderes vigentes, mas isso não significa que eles tenham atingido plenamente seus objetivos. Há luta, mesmo que minoritária, mesmo que no chão do dia a dia, mesmo em assimetria. Infelizmente, essa dificuldade acompanha todo o projeto filosófico Homo Sacer, emergindo especialmente em sua parte final. Esses são aspectos que procuro tratar em minha pesquisa de doutorado.
IHU – Em que consiste a continuidade de suas pesquisas acadêmicas no doutorado em Filosofia?
Paulo Ricardo Barbosa de Lima – A pesquisa tem sido desenvolvida junto ao Departamento de Filosofia da Universidade Federal do Espírito Santo – UFES, sob orientação do professor Daniel Arruda Nascimento (26). O encontro com o professor Daniel e todo o departamento foi muito proveitoso e, embora estejamos apenas no começo, já me sinto em casa. Procuro “cutucar” as limitações de Agamben e transá-las com as nossas angústias periféricas. Penso que a pesquisa de doutorado aprofunda essas reflexões realizadas no mestrado, mas num outro sentido, isto é, de tentar trazer à superfície essas formas-de-vida que teimam em resistir. O foco agora está ainda mais nas contracondutas... Se a vida nua, no contexto das periferias contemporâneas é administrada num mínimo sobrevivencialista, quais são suas formas de resistência nesses espaços?
Para isso, avanço nas trilhas do conceito de potência-do-não articulado pelo próprio Agamben. Minha hipótese inicial é que, a partir das pesquisas de Agamben, é possível compreender criticamente o processo pelo qual, enquanto as vidas capturadas são reinseridas nos circuitos de poder, ao mesmo tempo elas constituem formas-de-vida que expressam uma potência. Assim, desejo compreender se essa potência escapa aos estratagemas de poder e se aponta para uma política-que-vem. Em outras palavras, estou revirando as coisas, procurando diligentemente encontrar o outro lado da vida nua, tentando elaborar um conjunto de reflexões no caldo efervescente da periferia brasileira que dê um pequeno passo em direção às alternativas para uma possível transformação da biopolítica em uma nova política.
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(1) Michel Foucault (1926-1984): filósofo, historiador das ideias, teórico social, filólogo, crítico literário e professor da cátedra História dos Sistemas do Pensamento, no Collège de France, de 1970 até 1984 (ano da sua morte). Suas teorias abordam a relação entre poder e conhecimento e como eles são usados como uma forma de controle social por meio de instituições sociais. Embora muitas vezes seja citado como um pós-estruturalista e pós-modernista, Foucault acabou rejeitando esses rótulos, preferindo classificar seu pensamento como uma história crítica da modernidade. Seu pensamento foi muito influente tanto para grupos acadêmicos quanto para ativistas. Sobre seu pensamento, confira as seguintes edições da Revista IHU On-Line: Edição 466, de 01-06-2015: Michel Foucault, o cuidado de si e o governo de si (enkrateia); Edição 335, de 28-06-2010, Corpo e sexualidade. A contribuição de Michel Foucault; Edição 203, de 06-11-2006, Michel Foucault, 80 anos, e Edição 119, de 18-10-2004, Michael Foucault e as urgências da atualidade. 20 anos depois.
(2) Fabiano Ramos Torres: graduado em Filosofia pela Universidade de São Paulo – USP, mestre e doutor em Educação pela USP, com a tese Travessias do beco: a educação pelas quebradas. Autor de Manual do Professor. Ciências humanas e sociais aplicadas (São Paulo: FTD, 2018). É autor do capítulo de livro “Atualidade e Convulsão: tensões da arte e da educação na contemporaneidade”. In: MARTINS C. S; TERRASÊCA M.; MARTINS V. (Org.). À procura de renovações de estratégias e de narrativas sobre educação artística. Porto: Gesto Cooperativa Cultural, CRL, 2012, v. 1, p. 19-24.
(3) Epicuro de Samos (341 a.C.-270 a.C.): filósofo grego do período helenístico. Seu pensamento foi muito difundido em numerosos centros epicuristas que se desenvolveram na Jônia, Egito e, a partir do século I, em Roma, onde Lucrécio foi seu maior divulgador. O propósito da filosofia para Epicuro era atingir a felicidade, estado caracterizado pela aponia, a ausência de dor (física), e ataraxia ou imperturbabilidade da alma. Ele buscou na natureza as balizas para o seu pensamento: o homem, a exemplo dos animais, busca afastar-se da dor e aproximar-se do prazer. Utilizou-se da teoria atômica de Demócrito para justificar a constituição de tudo o que há. Das estrelas à alma, tudo é formado de átomos, sendo, porém de diferentes naturezas. Dizia que os átomos são de qualidades finitas, de quantidades infinitas e sujeitos a infinitas combinações.
(4) Diógenes de Sinope (404 a.C.-323 a.C.): também conhecido como Diógenes, o Cínico, foi um filósofo da Grécia Antiga que acabou exilado de sua cidade natal e se mudou para Atenas, onde teria se tornado um discípulo de Antístenes, antigo pupilo de Sócrates. Tornou-se mendigo nas ruas de Atenas, fazendo da pobreza extrema uma virtude; diz-se que teria vivido num grande barril, no lugar de uma casa, e perambulava pelas ruas carregando uma lamparina, durante o dia, alegando estar procurando por um homem honesto. Posteriormente estabeleceu-se em Corinto, onde continuou a buscar o ideal cínico da autossuficiência: uma vida que fosse natural e não dependesse das luxúrias da civilização. Por acreditar que a virtude era mais bem revelada na ação e não na teoria, sua vida consistiu numa campanha incansável para desbancar as instituições e os valores sociais do que ele via como uma sociedade corrupta.
(5) Platão (428 a. C.-348 a.C.): filósofo e matemático do período clássico da Grécia Antiga, autor de diversos diálogos filosóficos e fundador da Academia em Atenas, a primeira instituição de educação superior do mundo ocidental. É amplamente considerado a figura central na história do grego antigo e da filosofia ocidental, juntamente com seu mentor, Sócrates, e seu pupilo, Aristóteles. Ajudou a construir os alicerces da filosofia natural, da ciência e da filosofia ocidental, e também tem sido frequentemente citado como um dos fundadores da religião ocidental, da ciência e da espiritualidade. O chamado neoplatonismo de filósofos como Plotino e Porfírio influenciou Santo Agostinho e, portanto, o cristianismo, bem como a filosofia árabe e judaica. Platão era um racionalista, realista, idealista e dualista e a ele têm sido associadas muitas das ideias que inspiraram essas filosofias mais tarde. Foi o inovador do diálogo escrito e das formas dialéticas da filosofia. Platão também parece ter sido o fundador da filosofia política ocidental. Sua mais famosa contribuição leva seu nome, platonismo (também ambiguamente chamado de realismo platônico ou idealismo platônico), a doutrina das Formas conhecidas pela razão pura para fornecer uma solução realista para o problema dos universais. Ele também é o epônimo do amor platônico e dos sólidos platônicos. Sobre Platão, confira a Revista IHU On-Line ed. 294, de 25-05-2009, intitulada Platão, a totalidade em movimento.
(6) Maximilian Karl Emil Weber (1864-1920): jurista e economista alemão considerado um dos fundadores da sociologia. É considerado um dos fundadores do estudo moderno da sociologia, mas sua influência também pode ser sentida na economia, na filosofia, no direito, na ciência política e na administração. Começou sua carreira acadêmica na Universidade Humboldt de Berlim e, posteriormente, trabalhou nas universidades de Freiburg, Heidelberg, Viena e Munique. Personagem influente na política alemã da época, foi consultor dos negociadores alemães no Tratado de Versalhes (1919) e da comissão encarregada de redigir a Constituição de Weimar.
(7) Karl Marx (1818-1883): filósofo, economista, historiador, sociólogo, teórico político, jornalista, e revolucionário socialista alemão. Devido às suas publicações políticas, Marx tornou-se apátrida e viveu no exílio com a sua mulher e filhos em Londres durante décadas, onde continuou a desenvolver o seu pensamento em colaboração com o pensador alemão Friedrich Engels e a publicar os seus escritos, pesquisando na Sala de Leitura do Museu Britânico. Os seus títulos mais conhecidos são o panfleto Manifesto Comunista de 1848 e o triplo volume O Capital (1867-1883). O pensamento político e filosófico de Marx teve uma enorme influência na história intelectual, econômica e política subsequente. Sobre Marx, confira as seguintes edições da Revista IHU On-Line: 525, intitulada Karl Marx, 200 anos – Entre o ambiente fabril e o mundo neural de redes e conexões; 381, intitulada Os Grundrisse de Marx em debate; 278, intitulada A financeirização do mundo e sua crise. Uma leitura a partir de Marx.
(8) Clarice Lispector (1920-1977): escritora e jornalista ucraniana de origem judaica russa (asquenaz), naturalizada brasileira e radicada no Brasil. Autora de romances, contos e ensaios, é considerada uma das escritoras brasileiras mais importantes do século XX. Sua obra está repleta de cenas cotidianas simples e tramas psicológicas, reputando-se como uma de suas principais características a epifania de personagens comuns em momentos do cotidiano. Quanto às suas identidades nacional e regional, declarava-se brasileira e pernambucana. Estudou Direito na Universidade Federal do Rio de Janeiro, conhecida como Universidade do Brasil, apesar de, na época, ter demonstrado mais interesse pelo meio literário, no qual ingressou precocemente como tradutora, logo se consagrando como escritora, jornalista, filósofa, contista e ensaísta, tornando-se uma das figuras mais influentes da literatura brasileira e do modernismo, sendo considerada uma das principais influências da nova geração de escritores nacionais. É incluída pela crítica especializada entre os principais autores brasileiros do século XX.
(9) João Guimarães Rosa (1908-1967): poeta, diplomata, novelista, romancista, contista e médico brasileiro, considerado por muitos o maior escritor brasileiro do século XX e um dos maiores de todos os tempos. Os contos e romances escritos por Guimarães Rosa ambientam-se quase todos no chamado sertão brasileiro. Sua obra destaca-se pelas inovações de linguagem, sendo marcada pela influência de falares populares e regionais que, somados à erudição do autor, permitiu a criação de inúmeros vocábulos a partir de arcaísmos e palavras populares, invenções e intervenções semânticas e sintáticas.
(10) Friedrich Wilhelm Nietzsche (1844-1900): filósofo, filólogo, crítico cultural, poeta e compositor prussiano do século XIX, nascido na atual Alemanha. Escreveu vários textos criticando a religião, a moral, a cultura contemporânea, a filosofia e a ciência, exibindo certa predileção por metáfora, ironia e aforismo. É famoso por sua crítica à religião, em especial o cristianismo. Sobre seu pensamento, confira a Edição 127 da Revista IHU On-Line, de 13-12-24, intitulada Nietzsche Filósofo do martelo e do crepúsculo, e a Edição 529, de 01-10-2018, intitulada Nietzsche. Da moral de rebanho à reconstrução genealógica do pensar.
(11) Paulo Freire (1921-1997): educador e filósofo brasileiro. É considerado um dos pensadores mais notáveis na história da pedagogia mundial, tendo influenciado o movimento chamado pedagogia crítica. É também o Patrono da Educação Brasileira. Seu trabalho teórico envolve uma forte crítica da educação bancária comum em seu tempo, na qual o professor faz “depósitos” de conhecimento no aluno, que os recebe passivamente. Em vez disso, Freire propõe uma educação dialógica, fundamentada no diálogo. Tal educação é também problematizadora, pois induz os educandos a terem uma postura crítica ante a realidade. Freire também é famoso por ter desenvolvido um método de alfabetização de adultos que busca desenvolver essa consciência crítica no momento da alfabetização. Freire, acreditando que todos os homens têm por vocação o ser mais, buscava que eles fossem sujeitos de suas ações, atingissem sua plena realização enquanto seres humanos e fossem capazes de transformar o mundo.
(12) Merlí: série de televisão produzida pela TV3 sobre um professor de filosofia que, usando alguns métodos pouco ortodoxos, incentiva seus alunos a pensarem livremente – dividindo as opiniões de alunos, professores e famílias. Com certa influência de filmes como Sociedade dos Poetas Mortos, Merlí tenta deixar a filosofia mais próxima de todos os públicos. Cada episódio se baseia nas ideias de algum pensador ou escola filosófica, como os peripatéticos, Sócrates, Aristóteles, Nietzsche ou Schopenhauer, que acabam servindo de fio condutor para os acontecimentos da série.
(13) Gilles Deleuze (1925-1995): filósofo francês, cuja obra é considerada uma das principais representantes da filosofia continental e do pós-estruturalismo, de modo que ocupa um lugar importante nos debates contemporâneos sobre sociedade, política e subjetividade, apesar de seu distanciamento das principais tendências filosóficas do século XX. De sua vasta produção intelectual, destacamos as obras escritas em parceria com Félix Guattari: L’anti-Œdipe (1972), Kafka. Por uma literatura menor (1975), Mil Platôs (1980) e O que é a filosofia? (1991).
(14) Antonio Negri (1933-2023): filósofo político marxista, acadêmico e militante político italiano, um dos expoentes do marxismo operaísta, entre os anos 1960 e 1970. A partir dos anos 1980, dedicou-se ao estudo do pensamento político de Baruch Spinoza, contribuindo para a redescoberta teórica do filósofo neerlandês. Em colaboração com Michael Hardt, escreveu algumas obras influentes na teoria política contemporânea. Ganhou notoriedade internacional nos primeiros anos do século XXI, após o lançamento do livro Império, que se tornou um manifesto do movimento antiglobalização, e de sua sequência, Multidão, ambos escritos em coautoria com seu ex-aluno Michael Hardt. Paralelamente ao seu trabalho teórico, desenvolveu intensa atividade de militância política, tendo sido um dos fundadores das organizações da esquerda extraparlamentar Potere Operaio e Autonomia Operaia. Em 1979, Toni Negri foi investigado, preso e julgado por “cumplicidade política e moral” com o grupo terrorista Brigadas Vermelhas, em um polêmico e controverso inquérito judicial chamado pela imprensa de “julgamento de 7 de abril”, condenado a 12 anos de prisão, aos quais foram acrescentados outros tantos nos anos 1990 pelos crimes de “associação subversiva” e “cumplicidade moral em roubo”. Cumpriu um total de dez anos, os últimos dos quais em regime de semiliberdade.
(15) Sueli Carneiro (1950): filósofa, escritora e ativista antirracismo do movimento social negro brasileiro. É fundadora e atual diretora do Geledés — Instituto da Mulher Negra e considerada uma das principais autoras do feminismo negro no Brasil. Possui doutorado em Educação pela Universidade de São Paulo – USP. Foi a primeira mulher negra a receber o título de Doutora Honoris Causa da Universidade de Brasília – UnB.
(16) Giorgio Agamben (1942): filósofo italiano, autor de obras que percorrem temas que vão da estética à política. Seus trabalhos mais conhecidos incluem sua investigação sobre os conceitos de estado de exceção e homo sacer. Formado em Direito em 1965, com uma tese sobre o pensamento político de Simone Weil, participou dos seminários promovidos por Martin Heidegger no fim dos anos 1960. De 2003 a 2009, lecionou Estética e Filosofia no Instituto Universitário de Arquitetura de Veneza. Em seguida, decidiu abandonar a atividade de ensino nas universidades italianas. Dirige a coleção “Quarta prosa” da editora Neri Pozza no Instituto Universitário de Arquitetura. Sua produção se concentra nas relações entre filosofia, literatura, poesia e política. Responsável pela edição italiana da obra de Walter Benjamin, foi professor da New York University antes de se decidir a não mais entrar nos Estados Unidos em protesto contra a política de segurança do governo Bush. Sobre o pensamento de Agamben, confira a Revista IHU On-Line Edição 505, de 22-05-2017, intitulada Giorgio Agamben e a impossibilidade de salvação da modernidade e da política moderna.
(17) Carlos Eduardo Ribeiro: graduado, mestre e doutor em Filosofia pela Universidade de São Paulo – USP, com a tese Foucault: uma arqueologia política dos saberes. Docente na Universidade Federal do ABC – UFABC, é autor do capítulo de livro Onde há morte massiva, há racismo: alguns elementos para a compreensão do racismo neoliberal. In: RESENDE, Haroldo de (Org.). Michel Foucault: a política neoliberal como guerra continuada. Campinas: Pontes Editores, 2024, p. 57-88. Leciona na UFABC.
(18) Márcia Junges: graduada em jornalismo pela Universidade do Rio dos Sinos – Unisinos e em filosofia pelo Centro Universitário Claretiano, é mestre em Filosofia pela Unisinos e doutora em Filosofia Unisinos e pela Università degli Studi di Padova – UNIPD, Itália, com a tese A potência em Nietzsche e Agamben: aberturas da política e críticas à democracia liberal. De sua autoria, destacamos o artigo “O Nietzsche de Agamben e sua crítica à política como fisiologia”, Veritas (Porto Alegre), v. 1, p. 1-15, 2024. É docente no Departamento de Filosofia da Unisinos e jornalista do Instituto Humanitas Unisinos – IHU.
(19) Achille Mbembe (1957): filósofo, cientista político, historiador, intelectual e professor universitário camaronês. Seus principais temas de investigação são história da África, pós-colonialismo, ciências sociais e política. Embora seja chamado de teórico pós-colonial, em boa parte devido ao nome em inglês do seu primeiro livro, ele recentemente rejeitou o termo, porque vê seu projeto como um trabalho tanto de aceitação quanto de transcendência da diferença, em vez de um retorno para uma terra natal original, marginal e não metropolitana. Segundo Mbembe, o conceito de biopoder, de Michel Foucault, como um agrupamento de poder disciplinar e biopolítica, não é mais suficiente para explicar as formas contemporâneas de subjugação. Aos insights de Foucault sobre as noções de poder soberano e biopoder, Mbembe acrescenta o conceito de necropolítica, que vai além de simplesmente “inscrever corpos dentro de aparatos disciplinares”. Discutindo os exemplos da Palestina, África e Kosovo, Mbembe mostra como o poder da soberania agora é encenado através da criação de zonas de morte, onde a morte se torna o último exercício de dominação e a principal forma de resistência.
(20) Lélia Gonzales (1935-1994): intelectual, autora, ativista, professora, filósofa e antropóloga brasileira. É uma referência nos estudos e debates de gênero, raça e classe no Brasil, América Latina e pelo mundo, sendo considerada uma das principais autoras do feminismo negro no país. Foi pioneira em pesquisas sobre cultura negra no Brasil e cofundadora do Instituto de Pesquisas das Culturas Negras do Rio de Janeiro (IPCN-RJ) e do Movimento Negro Unificado (MNU). Lélia teve uma importante presença tanto na academia quanto no mundo político, tendo circulado por diversos espaços. Seus trabalhos abordaram perspectivas interseccionais quando o conceito em si ainda não tinha sido criado, atuando contra o sexismo e o racismo na sociedade e cunhando conceitos como o de “amefricanidade” e “pretuguês”.
(21) Peter Pál Pelbart: graduado em Ciências Sociais pela Universidade de São Paulo – USP e em Filosofia pela Université Paris IV – Sorbonne, mestre em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP com a dissertação Da clausura do fora ao fora da clausura: loucura e desrazão (Iluminuras, 2009). Na USP, doutorou-se em Filosofia, defendendo a tese O tempo não reconciliado: imagens de tempo em Deleuze (Perspectiva, 2015). É autor de inúmeras outras obras, das quais destacamos: Ensaios do assombro (n-1 edições, 2019) e O avesso do niilismo: cartografias do esgotamento (n-1edições, 2016). Leciona na PUC-SP, é coaeditor da n-1 edições e desde 2001 integra a Companhia Teatral Ueinzz, laboratório esquizocênico e biopolítico. Confira a entrevista que Pelbart concedeu ao IHU em 26-06-2025, intitulada Israel como laboratório da escalada fascista e a segunda Nakba em Gaza. Entrevista especial com Peter Pál Pelbart.
(22) Judith Butler (1956): filósofa pós-estruturalista de origem estadunidense, tendo composto umas das principais teorias contemporâneas do feminismo e teoria queer. Butler também escreve sobre filosofia política e ética. Ocupa o cargo de professora do departamento de retórica e literatura comparada da Universidade da Califórnia em Berkeley. Desde 2006, também ocupa o posto intitulado “Hannah Arendt” na European Graduate School. Butler é uma pessoa não binária, que em inglês usa os pronomes “they/them”.
(23) Comitê Invisível: pseudônimo de autores anônimos que escreveram obras baseadas em políticas de extrema-esquerda e comunização, tais como Motim e destituição agora (São Paulo: n-1 Edições, 2017) e Tiqqun. Contribuição para a guerra em curso (São Paulo: n-1 Edições, 2019).
(24) Hannah Arendt (1906-1975): filósofa política alemã de origem judaica, uma das mais influentes do século XX. A privação de direitos e perseguição de pessoas de origem judaica ocorrida na Alemanha a partir de 1933, assim como o seu breve encarceramento nesse mesmo ano, forçaram Arendt a emigrar. O regime nazista retirou-lhe a nacionalidade em 1937, o que a tornou apátrida até conseguir a nacionalidade norte-americana em 1951. Trabalhou como jornalista e professora universitária e publicou obras sobre filosofia política. Contudo, recusava ser classificada como “filósofa” e também se distanciava do termo “filosofia política”; preferia que suas publicações fossem classificadas dentro da “teoria política”. Sobre essa pensadora, confira a Edição 206, de 27-11-2006 da Revista IHU On-Line, intitulada O mundo moderno é o mundo sem política. Hannah Arendt 1906-1975.
(25) Thomas Hobbes (1588-1679): filósofo inglês, mais conhecido por seu livro de 1651 intitulado Leviatã, no qual ele expõe uma formulação influente da teoria do contrato social. É considerado um dos fundadores da filosofia política moderna. Influenciado por ideias científicas contemporâneas, desejava que sua teoria política fosse um sistema quase geométrico, em que as conclusões decorressem inevitavelmente das premissas. A principal conclusão prática de sua teoria política é que um Estado ou sociedade não pode ser seguro a menos que esteja nas mãos de um soberano absoluto. Disso decorre a visão de que nenhum indivíduo pode ter direitos de propriedade contra o soberano, e que o soberano pode, portanto, tomar os bens de seus súditos sem seu consentimento.
(26) Daniel Arruda Nascimento: graduado em Direito pela Universidade Federal Fluminense – UFF, é mestre em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro – PUC-Rio e doutor em Filosofia pela Universidade Estadual de Campinas – Unicamp com a tese Do fim da experiência ao fim do jurídico: percurso de Giorgio Agamben (São Paulo: LiberArs, 2012). Outra de suas inúmeras obras é Em torno de Giorgio Agamben: sobre a política que não se vê (São Paulo: LiberArs, 2018). Leciona na UFF e na Universidade Federal do Espírito Santo – UFES.