“O nosso cotidiano político está carregado com um palavreado democrático quando o que vigora é a escalada do autoritarismo: palavras do léxico democrático são mobilizadas e apropriadas para significar outras coisas, às vezes o seu oposto”, afirma o pesquisador
O primeiro ano de governo do atual mandato de Lula está chegando ao fim e se, por um lado, “a virada das eleições presidenciais de 2022 trouxe novas esperanças”, por outro, “certamente (…) o cenário ainda é conturbado por radicalismos cegos e racistas, pela contínua ascensão de interesses de grupos econômicos também no setor educacional e pelas contradições inerentes ao novo governo”, sublinha Daniel Arruda Nascimento.
Na entrevista a seguir, concedida por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU, Nascimento reflete sobre a situação da educação e das universidades brasileiras no país à luz da sua experiência à frente de uma das unidades acadêmicas da UFF, em Macaé. Segundo ele, as instituições universitárias “ainda lutam para se afirmar”. Essa situação, menciona, é visível no debate público. “É bastante comum escutar de mães, pais e cidadãos quaisquer, assim como da boca de políticos profissionais ou seus aspirantes, que o investimento em educação deva ser uma prioridade para o país. Todavia, essa é uma ideia fraca e relativizada sempre em razão de outras demandas e desejos que ocupam o cotidiano de todos”.
O entrevistado também comenta as transformações em curso nas universidades e sua busca por adequar-se ao mercado. “Se a universidade for reduzida a mero núcleo de profissionalização, as alunas e os alunos deixarão de se perguntar qual sociedade querem, seguirão o ritmo dos acontecimentos e buscarão quando muito ascender socialmente para um patamar econômico de maior poder aquisitivo”, diz.
Daniel Arruda Nascimento (Foto: Arquivo pessoal)
Daniel Arruda Nascimento é bacharel em Direito pela Universidade Federal Fluminense (UFF), mestre em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) e doutor em Filosofia pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). É professor da UFF e do Programa de Pós-graduação em Filosofia da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES).
IHU – Nos próximos meses encerra-se sua gestão de oito anos à frente de uma das unidades acadêmicas da Universidade Federal Fluminense, em Macaé. Como analisa esse período à luz das transformações políticas no país?
Daniel Arruda Nascimento – Oito anos não é pouco tempo, mas quando se está mais atento à permanência e ao fluxo da passagem do tempo não é difícil pensar em retrospectiva o que vivemos. Bem no começo da gestão que motiva esta entrevista, uma das maiores preocupações que eu tinha era não me deixar desanimar com os impasses da educação, era não deixar a sua insuficiência abalar o seu sentido. Custava-me ver como a boa inquietude e a capacidade de se indignar podiam tanto mover quanto levar à inércia ou ao abandono. Procurei, então, treinar o olhar para enxergar além das armadilhas do cotidiano universitário. Busquei aplicar nas experiências vividas a intuição de Simone Weil: quanto mais o pensamento for atento, mais o objeto será pleno de ser.
De fato, no período em que ocupei a direção do Instituto de Ciências da Sociedade de Macaé, uma unidade acadêmica fora de sede no litoral norte fluminense, um campus da universidade interiorizada que oferece três cursos presenciais de graduação, enfrentamos sucessivos cortes orçamentários, greves de ônibus e de caminhoneiros com desabastecimento local, falta de água e alagamentos no polo universitário, duas complexas eleições presidenciais, duas acirradas eleições para a reitoria, ameaças de atentados por grupos fascistas. Logo no primeiro ano da minha gestão, em 2016, quando procurava ainda me habituar a uma nova rotina de responsabilidades, aprender as burocracias da Administração Pública, conquistar os colegas de trabalho que não haviam me apoiado no processo eleitoral e enfrentar os demais desafios do cargo, fomos tomados por aquele ambiente tensionado do golpe midiático-parlamentar que derrubou a presidenta Dilma Rousseff.
Antes, como estudante universitário durante a última década do século vinte, eu havia testemunhado em que estado lastimável se encontrava a universidade brasileira. Dez anos depois, eu ingressava na carreira do magistério federal superior acompanhando de perto e com vivo interesse os benefícios e os prejuízos da expansão das universidades públicas pelo Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais (Reuni). Agora, na função de diretor do instituto, com o acúmulo de anos espantosos que sucederam ao golpe de agosto de 2016, via com pesar como corríamos o risco de sofrer um efeito gangorra, apequenar a universidade, perdendo o que já havíamos alcançado sem a consolidação de uma expansão qualitativa. Mais recentemente, o cenário político de hostilidades abertas que se instalou no país transformou as universidades em inimigas para um enorme eleitorado. A virada das eleições presidenciais de 2022 trouxe novas esperanças, certamente, mas isso não significa que tenhamos virado a página definitivamente, o cenário ainda é conturbado por radicalismos cegos e racistas, pela contínua ascensão de interesses de grupos econômicos também no setor educacional e pelas contradições inerentes ao novo governo.
IHU – Qual é a situação atual das universidades públicas brasileiras? Quais os aspectos comuns, mas também as particularidades observadas nas universidades localizadas em diversas e diferentes regiões do país?
Daniel Arruda Nascimento – Por incrível que pareça, as universidades ainda lutam para se afirmar na sociedade brasileira. Uma considerável parte da nossa população ainda despreza a relevância das nossas universidades, assim com qualquer pesquisa científica que não tenha um resultado espetacular, seja pelo esnobismo de uma elite agrária, seja por absoluta ausência de perspectivas econômicas daqueles que não a enxergam como algo acessível. Por espetacular, com Guy Debord, compreendo a contemporânea acumulação de imagens que tudo converte em mercadoria, que reduz o ôntico e o ontológico ao que tem valor calculável e expresso em moeda. Não é incomum escutar, mesmo que veladamente, que o investimento nas universidades é um desperdício de recursos públicos ou que os professores universitários sejam privilegiados e desocupados. No calor da hora, a utilidade de uma grande corporação empresarial que expele diariamente produtos para dar conforto ou encantar o consumidor brasileiro não se compara à atuação diacrônica e muitas vezes pouco significativa das universidades.
Felizmente, mesmo com problemas estruturais e de sentido, a universidade mudou para melhor ao longo dos anos. As universidades públicas do país são excelentes fontes de conhecimento e sabedoria, têm também produzido muito nas mais diversas áreas. A associação entre a expansão e a interiorização da universidade brasileira e a aplicação dos sistemas de cotas raciais e sociais para o acesso ao assento universitário contribuíram para a pluralidade e para a diversidade dos espaços acadêmicos. Embora esteja na direção da unidade acadêmica, nunca abandonei completamente a sala de aula. Atuo como um professor de filosofia política para o Curso de Direito. Sempre que discuto o assunto com os estudantes em sala (ele surge ao abordarmos, por exemplo, a perspectiva de justiça distributiva de Aristóteles ou o princípio da igualdade na diferença de John Rawls), recordo que na minha turma de graduação em direito, ou seja, em um grupo de no mínimo quarenta estudantes dos anos noventa, existiam apenas quatro estudantes negros, sendo que dois deles estavam ali em intercâmbio, um era angolano e a outra cabo-verdiana.
Antes de trabalhar na universidade fluminense, trabalhei por três anos e meio em um campus do sertão da Universidade Federal do Piauí (UFPI) e pude observar como a presença da universidade pública naquele território semiárido mudou não apenas a configuração do lugar, mas a vida de muitos estudantes que protagonizavam o papel de primeiro universitário da família. Recordo-me com um misto de saudade e entusiasmo como estudantes muito simples expressavam a sua gratidão por ocuparem a universidade e verem a sua vida mudar radicalmente, não apenas porque as perspectivas da vida profissional mudavam, mas porque experimentavam no ambiente universitário um crescimento intelectual e pessoal que de outro modo não poderia se dar.
Em relação às desigualdades sociais e regionais, o risco para as universidades consiste, evidentemente, em se oferecer de maneira periférica nos interiores, com estruturas precárias e com professores e profissionais da educação que, por não possuírem as mesmas condições dos seus colegas que trabalham nas capitais, são tratados como se fossem de segunda categoria e são tolhidos de suas potencialidades educativas (tendo, por exemplo, que assumir uma carga horária muito superior em sala de aula, o que reduz o tempo que poderiam dedicar a projetos de pesquisa e extensão).
IHU – Que modelo de ensino e pesquisa tem sido predominante nas universidades públicas brasileiras?
Daniel Arruda Nascimento – Quando os filósofos e teólogos dos séculos XI e XII, como Alberto Magno e Tomás de Aquino, começaram a se reunir para apresentar e discutir teorias e teses, no início do que hoje denominamos de universidade, não sabiam que a coisa ia sair do controle. E foi exatamente isso que aconteceu. Portando em seu nome a ideia de integralidade e unidade do conhecimento, a universidade saiu do controle e tornou-se um ambiente de criatividade e efervescência, o espaço em que as possibilidades são gestadas.
A universidade cresceu ao longo dos séculos e se tornou o lugar em que as gerações mais antigas transmitem às gerações mais novas o conhecimento acumulado ao longo dos tempos e o lugar em que o conhecimento novo é produzido. A universidade é a região onde o ensino e a pesquisa se encontram. Um ensino que deve ser sempre dialógico, crítico, assumido em mão dupla. Uma pesquisa que seja séria, honesta e de qualidade, que estimule sempre mais, que, no fim, leve os seus estudantes e professores a se tornarem sujeitos do processo ensino-aprendizagem. A formação de bons profissionais em todas as áreas é importante, assim como o que pode nascer na universidade: práticas médicas humanas, eficazes e menos invasivas, construções harmônicas e sustentáveis, tecnologias que apontem para boas soluções, economias inovadoras e inclusivas, psicologias que auxiliem no autoconhecimento e no entrosamento humano, geografias que conservem a terra habitável, práticas pedagógicas que permitam o pleno desenvolvimento das nossas crianças e jovens. Para fazer referência à minha área de pesquisa, reflexões filosóficas que despertem para a compreensão das condições políticas e éticas do homem contemporâneo, que estabeleçam diagnósticos críticos e, por que não, encorajem a busca de alternativas a eles. Se a filosofia é uma intensidade do pensamento, como escutei pessoalmente uma vez falar Giorgio Agamben, essa intensidade deve gerar aquela tensão magnífica que nos leva à ação.
Não apenas ensino e pesquisa, a universidade é igualmente o lugar da extensão, da atuação extramuros, de interação com a sociedade que a cerca. É preciso que a universidade reconheça que não é a única que produz saberes, que reconheça outros saberes e culturas, que cumpra com o seu compromisso de devolver para a sociedade o investimento que dela recebe, que se reconheça como parte dessa mesma sociedade que pretende modificar. Uma universidade transcendente e encastelada não tem nada a dizer aos desafios do nosso tempo.
Ainda no fim do século passado, Jean-François Lyotard chamou a nossa atenção para os riscos que o novo avanço do capitalismo liberal, consubstanciado na valorização da fruição individual de bens e serviços e na aplicação universal do princípio do desempenho, pode trazer às ciências e às universidades, avaliadas agora pela quantidade de informação que conseguem organizar, armazenar e transmitir. Em acréscimo, cabe a nós reafirmar que não podem ser as universidades fábricas de diplomas e certificados: formalizando e subvertendo a relação entre mestre e discípulo; elas devem anelar pela liberdade de pensamento e funcionar para que o pensamento especulativo tenha livre fluxo. Se a universidade for reduzida a mero núcleo de profissionalização, as alunas e os alunos deixarão de se perguntar qual sociedade querem, seguirão o ritmo dos acontecimentos e buscarão quando muito ascender socialmente para um patamar econômico de maior poder aquisitivo. E, em última instância, se a universidade revelar ter se tornado uma instituição disciplinar qualquer, que vigia, classifica, segrega, reprime e pune, não poderá faltar aquela dimensão que George Orwell, na obra premonitória de 1984, denominou de pensamento-crime.
IHU – Como tem sido feita a gestão das universidades públicas? Quais são os três pontos negativos e positivos que destacaria em relação a esse processo?
Daniel Arruda Nascimento – Essa é uma questão labiríntica porque, se há estruturas que se repetem na gestão das universidades, o seu cotidiano é também fortemente afetado por sistemas e procedimentos administrativos específicos de cada universidade e pelo modo como se comportam os professores e servidores que assumem as funções de gestão. Por um lado, nem sempre os sistemas e expedientes administrativos são os mais inteligentes e eficazes. Por outro lado, nem sempre aqueles que ocupam espaços de decisão nas instâncias universitárias estão afinados com os princípios administrativos e o espírito democrático, observam a supremacia do interesse público sobre o privado, a razoabilidade, a impessoalidade, a transparência. Seria preciso avançar na realização da democracia nas universidades.
Ter respeito à democracia é assumir a possibilidade de escutar críticas e ter um resultado adverso em momentos de decisão colegiada. Nesse aspecto, o caminho mais seguro parece ser mesmo o de sempre colocar as decisões colegiadas acima das decisões monocráticas, em reuniões que incluam a todos os interessados e permitam uma discussão amadurecida dos assuntos e sem receios. Em paralelo, estimular a criação de comissões independentes para o tratamento de demandas específicas permitindo a participação voluntária. Encontramos hoje ainda, invariavelmente, estruturas pesadas e inflexíveis que impedem o acesso à informação e ao atendimento, há dispositivos antidemocráticos em um ambiente supostamente democrático. Devemos considerar também que a universidade atrai e incentiva musculaturas egoicas e, se vemos se instalar um definitivo e insano clima de competição, tudo se torna mais difícil. O cargo de diretor, por exemplo, não traduz apenas a gestão de processos administrativos; ele exige também um engajamento político. E, como escreve Platão lá no seu diálogo destinado ao tema, o melhor paradigma para a arte da política pode ser encontrado na tecelagem. O bom político pode ser comparado ao tecelão, aquele que é capaz de unir e entrelaçar fios contrários, costurar os diversos interesses, sem evidentemente, podemos acrescentar, se tornar refém desses interesses ou se impor demais sobre eles. Em relação aos estudantes, temos que ter o cuidado de não tratá-los nem como ignorantes que necessitam de luzes, nem como indisciplinados que demandam uma educação castradora, muito menos como se fossem consumidores em uma relação que se reduz na troca de produtos.
Antes de assumir a função, eu costumava exprimir que, se Friedrich Nietzsche não poderia acreditar em um Deus que não soubesse dançar, eu não poderia conceber uma comunidade acadêmica que não soubesse dialogar. Não há fórmula mágica; o cotidiano universitário exige muita conversa e uma disposição de reiniciar sempre. Todavia, pessoalmente, olhando em conjunto, a maior dificuldade que enfrentei durante a gestão foi compreender e respeitar o tempo da Administração Pública: as coisas não se resolvem na velocidade das necessidades concretas e dos nossos desejos. Outro grande aprendizado é conter o ímpeto de querer ter tudo sob controle, como se tudo dependesse apenas da sua iniciativa. Esperar que o cotidiano universitário não trouxesse o inesperado seria uma profunda fonte de ansiedade, paralisante muitas vezes, diversa daquela angústia que consiste na vertigem da liberdade para Søren Kierkegaard. Fazemos o nosso melhor, com coragem e compromisso, cuidando para ser eficientes, mas nem sempre o resultado vem (e veja que assim me expresso mesmo tendo conduzido o processo de construção e ocupação de uma sede própria para o instituto, com tudo aquilo que um movimento como esse implica). Serenidade e paciência são também, para o gestor público, palavras que devem habitá-lo.
IHU – Quando foi lançado o Programa Institutos e Universidades Empreendedoras e Inovadoras – Future-se, alguns acadêmicos brasileiros afirmaram que a iniciativa provavelmente não daria certo porque as empresas nacionais não têm interesse na pesquisa acadêmica. Outros, ao contrário, defendem as parcerias público-privadas. Qual sua avaliação? Quais são as consequências do programa hoje?
Daniel Arruda Nascimento – Na época do lançamento do programa tive a oportunidade de discuti-lo tanto em ambientes universitários quanto em eventos acadêmicos que foram realizados em praça pública. Fui convidado a apresentar criticamente o assunto em eventos dos cursos de Biologia e Enfermagem da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) sediada em Macaé. Durante seguidos meses de 2019, organizamos juntamente com a militância estudantil diversos encontros nas praças públicas da cidade, não apenas para expor a nossa indignação com as ações do Ministério da Educação, mas também para debater o papel das universidades e mostrar à população em geral o que sustentamos e produzimos diariamente. A universidade estava na ocasião sob flagrante ataque desencadeado, inclusive, por gestores públicos. O programa foi lançado para promover a captação de recursos privados e como uma solução para a crise orçamentária infindável das universidades brasileiras, que tomadas no seu conjunto são um edifício enorme, mas ainda carente de expansão suficiente para acolher a imensa juventude do país.
Penso que um dos principais problemas do programa era a redução da autonomia das universidades e dos pesquisadores em geral. O que, diga-se de passagem, afrontava diretamente o espírito do artigo 207 da Carta Constitucional de 1988. Abertamente, o programa buscava transferir grande parte da gestão das universidades a organismos externos que não funcionam na dinâmica democrática, autônoma e especulativa das universidades. Além disso, procurava relativizar o método de exclusivo ingresso na docência universitária via concurso público, menosprezando os princípios da qualidade e da impessoalidade. Nos seus subterrâneos, havia também a intenção de classificar as diferentes áreas de conhecimento e de pesquisa tendo como medida o interesse de empresas e grandes organizações mercadológicas. Outra consequência desastrosa previsível seria o acirramento das desigualdades regionais, com a criação de centros de investimento por um lado e, por outro, o abandono de regiões periféricas, em um contexto no qual a universidade ainda não chegou até os cantos em que deveria chegar.
IHU – No governo Bolsonaro, diversos pesquisadores e professores universitários chamaram a atenção para o desmonte das universidades públicas. Em contrapartida, qual é o programa do governo atual para a universidade pública brasileira? Em que a proposta do presidente Lula é distinta das anteriores?
Daniel Arruda Nascimento – Essa é uma excelente pergunta porque os que se opunham ao governo anterior, que felizmente chegou ao ocaso, precisam dar as razões da sua oposição, precisam estar aptos a explicar a qualquer transeunte o que significa estar sob a égide daquilo que foi chamado de desgoverno, explicar por que estávamos em um período de destruição. Para além das figuras vexatórias que ocupam a nossa política interna, refiro-me a uma clara destruição do projeto de país menos desigual (considero que o desmonte das universidades também passe por aí). O que tínhamos ali era uma política desavergonhada que acirrava explorações historicamente constituídas, para benefício próprio, dos seus pares e de uma elite que se reconhece enquanto tal somente quando convém. Tudo isso com o verniz da religiosidade, da moralidade militar e da democracia.
O nosso cotidiano político está carregado com um palavreado democrático quando o que vigora é a escalada do autoritarismo: palavras do léxico democrático são mobilizadas e apropriadas para significar outras coisas, às vezes o seu oposto. Quantas vezes vimos a invocação da liberdade de expressão ter voz para justificar a pretensiosa liberdade de opressão? O lema Deus, pátria, família, que não é novo e foi tomado por empréstimo do fascismo italiano infiltrado no país com o nome de integralismo no início do século passado, sendo desafortunadamente repaginado com grande apelo nos noticiários, nas redes sociais e nas camisetas do nosso povo, é evidentemente carregado de falsidades com o objetivo de convencer os menos preparados. O uso do nome de Deus sempre serviu às mais estranhas aspirações e remete a um quadro conflituoso no qual há uma forte divisão entre grupos, no qual Deus é verdadeiro e está sempre apenas com aquele que diz o seu nome, estando assim contra os demais. Usado desta maneira, torna-se uma licença para se realizar qualquer atrocidade sem embotar a consciência e sem amargar prejuízos à própria reputação. Família é uma palavra vaga que é empregada muitas vezes para designar com exclusividade o que uma determinada visão de mundo assim o considera. Incrível anacronismo teremos se alguém considerar que família consiste unicamente no modelo que tem em mente, se até o nosso Direito, bastante conservador, já se abriu para reconhecer que são os laços de afeição que constituem uma família e não quaisquer estruturas preestabelecidas (basta dar uma olhada nos livros da jurista Maria Berenice Dias). Mas a maior contradição está, a meu ver, nos arroubos que a alusão à pátria infere. Quantas são as insanidades causadas pela defesa de pátrias artificiais e nacionalismos ao longo da história da humanidade e na contemporaneidade? Aliás, nada me parece mais contrário aos textos evangélicos e ao espírito das primeiras comunidades cristãs que essa ideia de pátria.
Imagino no que teria se tornado o nosso país se não fosse a robusta resistência das universidades nos meses das eleições presidenciais de 2022. Diante desse contexto, não foi sem razões que, mediante consulta pública à comunidade acadêmica do nosso instituto, decidimos atribuir ao nosso novo auditório o nome de Marielle Franco. Atentos à pluralidade da sociedade brasileira, o nome escolhido expressa o desejo por uma maior mudança na universidade, por maior diversidade, assim como na política. Homenageamos a vereadora violentamente retirada do nosso convívio porque o seu nome representa, nos inspira e motiva, traz consigo a alusão a qualidades pelas quais temos grande apreço, como a inteligência, a capacidade comunicativa, a coerência e a coragem. Além de ser uma pesquisadora egressa de curso da UFF, Marielle Franco educou com a sua luta, atuou contra a brutalidade estatal e a repressão policial vivenciada contra as minorias da nossa sociedade, na promoção da justiça, bem como por um mundo político mais significante, pela mudança do cenário hegemônico em nossas instituições e pela ampliação da representatividade feminina e negra. Acreditamos na energia da juventude que se engaja na transformação da realidade desigual que assola o nosso país, ampliando os espaços de inclusão, reduzindo as desigualdades criadas pela exploração histórica e pelo racismo, investindo em forças criativas silenciadas que podem carregar o devir cheio de esperanças contra a paralisia e a ausência de soluções aos desafios que o mundo atual apresenta.
IHU – Quais os principais desafios da universidade brasileira?
Daniel Arruda Nascimento – Um deles seria certamente o desafio de demonstrar o seu valor para a sociedade brasileira, convencer de que pode ser o caminho para a promoção de transformações profundas na nossa realidade política, econômica e social. É bastante comum escutar de mães, pais e cidadãos quaisquer, assim como da boca de políticos profissionais ou seus aspirantes, que o investimento em educação deva ser uma prioridade para o país. Todavia, essa é uma ideia fraca e relativizada sempre em razão de outras demandas e desejos que ocupam o cotidiano de todos. Em uma cidade de médio porte como a que eu vivo, por exemplo, os gastos com a educação pública municipal são vistos como desperdício na medida em que não agradam ao imaginário popular de sucesso como obras de todo tipo ou eventos faraônicos. Ali, os custos com jardinagens sempre renovadas e pinturas de meio-fio são estratosféricos enquanto as escolas sofrem com estrutura insuficiente, pouco cuidado pedagógico e pouco estímulo aos professores e demais profissionais da educação.
Além disso, por estranho que pareça, esse espaço maravilhoso de conhecimento e liberdade que é a universidade é incompreendido e condenado por uma parcela expressiva da população do país, aquela que na falta de um nome melhor podemos chamar de conservadora. A universidade com a qual eu sonho é a universidade pública, autônoma, gratuita, democrática, socialmente referenciada (para usar uma expressão emplacada pelo sindicato dos docentes) e popular. Explico o que entendo por cada um desses termos.
Pública é a universidade que é mantida pela sociedade que a funda, geralmente via poder estatal, e está sempre em uma posição de abertura e recepção de todos sem distinção. Autônoma é a universidade que decide os seus próprios caminhos, que não se submete a qualquer poder restritivo exterior que a limite em sua independência. Gratuita é a universidade que oferece os seus cursos e serviços sem quaisquer custos à população. Democrática é a universidade na qual todas as decisões fundamentais são tomadas mediante um processo decisório coletivo, envolvendo docentes, servidores técnicos e discentes, em todas as suas instâncias e níveis, respeitados os momentos de informação, discussão e deliberação, com a garantia dos direitos individuais, coletivos e difusos. Socialmente referenciada e popular é uma universidade que não abrigue somente privilegiados, que garanta o ingresso de todas e todos, mesmo aqueles que concorrem a uma vaga em desigualdade de oportunidades, que seja universal e plural. A universidade deve ser diversa como a sociedade que a envolve é diversa, deve assim ser o espaço das mulheres, dos negros e pardos, dos povos originários, dos imigrantes e dos refugiados, dos pobres, dos favelados, dos camponeses, da livre orientação sexual, dos que possuem necessidades especiais. Deve, então, garantir o acesso e a permanência dos que estiverem em posição socioeconômica mais vulnerável, assim como estar atenta às necessidades que se apresentarem e à prevenção de assédios e perseguições de todo tipo.
Tem mais: a universidade não é apenas o espaço extraordinário do aprendizado, do ensino, da pesquisa, da extensão e da inovação. É igualmente o lugar da luta e do amor. A universidade é um lugar utópico e propositivo da luta contra as injustiças, da luta por uma sociedade mais justa. A universidade é um lugar de encontro, onde as pessoas se encontram e se apaixonam, umas pelas outras, pelo conhecimento, por uma profissão, por um modo de vida; é um lugar onde surgem amizades que duram por toda uma vida. Embora bem avesso a pompas, cerimônias e falatórios intermináveis, se aceitei o desafio de assumir a direção do Instituto de Ciências da Sociedade de Macaé, foi porque, desde o início, aceitei-o como uma oportunidade para assumir responsabilidades na transformação do nosso mundo.
IHU – Que reformas são fundamentais para pensar e projetar o futuro das universidades públicas brasileiras hoje?
Daniel Arruda Nascimento – O que disse a pensadora política Hannah Arendt a respeito da educação no seu livro Entre o passado e o futuro pode ser aplicado integralmente à universidade: a educação é o ponto em que decidimos se amamos o mundo o bastante para assumirmos a responsabilidade por ele e salvá-lo da ruína que seria inevitável não fossem a renovação e a vinda dos jovens. Se ansiamos por uma educação formativa que não desative a inteligência, as potencialidades e as espontaneidades criativas das gerações que vêm, devemos nos empenhar sem receio de construir o futuro. Mas penso que importa à universidade saber se colocar no tempo, saber unir modernidade e ancestralidade. Com Walter Benjamin, vejo o passado como uma fonte de energia, a latência de forças revolucionárias, o passado que vem sobre nós e tem o condão de influir sobre o nosso futuro.
Ademais, para além da adoção de sistemas mais inteligentes e menos burocráticos, bem como da aposta no aprofundamento da democracia interna e da expansão qualificada para todo o país, a universidade precisa se alargar. A universidade precisa estar cheia de todas as gentes para que elas possam concebê-la como um caminho para a transformação de si e do futuro das sociedades. Contam as Fioretti franciscanas que no século doze a cidade de Bolonha presenciava com alguma frequência o encontro entre os estudantes de Direito de sua jovem universidade e os primeiros confrades que andavam maltrapilhos por suas praças com o objetivo de cativar os passantes. Havia ali o encontro de dois modos distintos de saber e, mesmo com um pátio cheio de doutores, a universidade se deixava penetrar a ponto de vários dos seus reconhecerem a beleza do saber popular e se converterem à simplicidade da vida dos peregrinos. Penso que as universidades devem, sobretudo, estar enraizadas na sua realidade.
As universidades brasileiras nasceram da experiência universitária europeia, portando desde o início suas culturas e suas referências. Passou da hora de acolhermos nas nossas cadeiras saberes que ficaram à margem desse processo. Temos muito a aprender com os povos da floresta, indígenas e quilombolas, ribeirinhos, lideranças femininas, jongueiros e capoeiras, cantadores e repentistas, trabalhadores do campo, mestres sobreviventes das periferias das cidades. Ainda que poderes instituídos exógenos tenham feito de tudo para aniquilar os povos ameríndios do nosso chão, eles resistiram e estão entre nós para ensinar, cabe a nós escutar. A universidade à qual estou vinculado mantém uma unidade amazônica na cidade de Oriximiná, à beira do rio Trombetas, no oeste do Pará. Durante meu percurso docente, aproximei-me de um programa de extensão em Etnoeducação que atuava com educadores e educandos locais e tive a oportunidade de aprender com os povos com os quais convivi, tendo inclusive ficado hospedado em comunidades quilombolas e aldeias indígenas. De volta, na rede com o meu filho ainda bebê, li uma ótima dissertação de mestrado da professora indígena Sandra Benites Guarani Nhandewa, mostrando como paredes e fronteiras podem ser opressoras nas escolas e nos demais ambientes de aprendizado (com uma aspiração semelhante, levei turmas de graduação para aulas em um quiosque na praia, no museu da cidade de Macaé e em uma escola pública ocupada pelos estudantes secundaristas). Contudo, para responder diretamente à sua pergunta, não há novamente fórmulas prontas; as respostas devem ser encontradas no caminho.
IHU – Deseja acrescentar algo?
Daniel Arruda Nascimento – Termino uma gestão de oito anos com um imenso sentimento de gratidão. Tive, do início ao fim do período, estudantes e colegas de trabalho que auxiliaram sobremaneira no percurso. Fico especialmente feliz com a relação que estabeleci com os servidores administrativos e os trabalhadores terceirizados ao longo do tempo. Ser gestor nunca foi minha primeira opção: ao candidatar-me nos concursos públicos para o magistério superior, havia escolhido ser professor universitário, para exercer uma profissão cheia de sentido e realizar-me pessoalmente.
Ao longo da gestão, pude perceber com proximidade como o espírito republicano é pouco prestigiado, embora muito alardeado, como há uma forte tendência à privatização dos espaços públicos, inclusive por gestores que têm uma grande dificuldade de seguir adiante. Espero que comigo não seja assim. Sempre evitei o emprego de pronomes possessivos para as salas, mesas e demais objetos que utilizei no período, indicando que a condição que ocupava era transitória. Espero ter contribuído, humildemente, com os meus erros e acertos, para a consolidação da presença da universidade pública e qualificada no interior, mesmo em período histórico tão adverso. Agora, retorno para os meus livros e escritos, podendo despender maior tempo e energia na relação educativa com os estudantes e em projetos novos que arejam o ecossistema universitário.
Durante os últimos anos, unindo extensão universitária, prática esportiva, cuidados com a saúde, fruição das belezas naturais e respeito às culturas ancestrais, ofereci aos estudantes, servidores administrativos e docentes um projeto de extensão como o nome Ahonui: cultivando a saúde física e mental com a canoa polinésia, no qual aproveitavam dos benefícios da prática da canoagem duas vezes por semana na Lagoa de Imboassica em Macaé. Metaforicamente falando, tenho agora a impressão de chegar de uma longa viagem, tenho a ancoragem de uma canoa que soube se mover tanto em águas tortuosas quanto em águas calmas. Contudo, há continuação. O nome que confere distinção à universidade em que trabalho, fluminense, vem do latim flumen, de rio, fluvial. Anima-nos essa ideia de uma universidade que flui como um rio.
Você já teve a curiosidade de observar como envelhecem as pessoas que ocupam cargos de chefia ou políticos? Sinto que envelheci adquirindo alguns cabelos brancos e mais algumas rugas de expressão, mas nem tanto assim. No Livro dos abraços, o escritor uruguaio Eduardo Galeano conta que, sofrendo com a calvície, vendo cada fio de cabelo cair como se fosse um companheiro que tomba, encontrou “consolo comprovando que em todos esses anos caíram muitos dos seus cabelos, mas nenhuma de suas ideias”. Ele se referia ali, evidentemente, às grandes ideias que dão sentido à vida e ao trabalho, outras menores podem cair na odisseia da existência.