"A aporofobia é muito mais que xenofobia. Não se despreza e odeia a todos os estrangeiros, mas aos estrangeiros pobres", escreve Castor M.M. Bartolomé Ruiz em artigo enviado ao Instituto Humanitas Unisinos — IHU.
Castor M.M. Bartolomé Ruiz é doutor em Filosofia, professor titular do Programa de Pós-Graduação de Filosofia da Unisinos, coordenador da Cátedra Unesco-Unisinos de Direitos Humanos e Violência, Governo e Governança e coordenador do Grupo de Pesquisa CNPq Ética, Biopolítica e Alteridade.
Um dos desafios mais graves que enfrentamos nesta primeira metade do século XXI diz respeito ao crescimento social dos populismos autoritários e filofascistas que cresceram em quase todos os países com diferentes maquiagens. A ascensão e o apoio social aos grupos políticos autoritários cria perplexidade em quase todas as latitudes do mundo. Europa aparece assombrada pela inédita popularidade de líderes e políticos populistas da extrema direita, com grupos políticos de ampla aceitação em quase todos os países, como o confirma o caso mais recente das últimas eleições na França. Assim como a Itália, Hungria já são governadas por líderes de populismo filo fascista, etc. Países como a Índia e Israel elegeram governos claramente racistas e xenófobos, com políticas de perseguição violenta dos não nacionais. Situação semelhante se apresenta nos Estados Unidos com a ampla popularidade e conseguinte ameaça muito plausível do retorno de Donald Trump à presidência da República. No contexto Latino Americano vivemos também as turbulências dessa onda populista do autoritarismo filofascista, com a experiência do governo Bolsonaro no Brasil, o atual governo de Javier Milei na Argentina, entre outros exemplos.
Não deixa de ser ilustrativo que um século depois da ascensão dos fascismos no mundo e das terríveis consequências que eles trouxeram para toda a humanidade, estejamos repetindo uma boa parte do roteiro político que esses movimentos autoritários traçaram para se impor nas democracias no início do século XX. Uma das estratégias mais incisiva utilizada pelos fascismos e replicada pelos atuais movimentos autoritários é a fabricação de um inimigo como justificativa para legitimar socialmente seu modelo político autoritário. Nesta estratégia, os fascismos e os atuais movimentos autoritários seguem as teses da filosofia política de Carl Schmitt, destacado filósofo do direito do regime nazista. Para Schmitt a política é uma guerra contra o inimigo. E o inimigo é inerente à politica.
A fabricação do inimigo é um pressuposto essencial para a legitimação social dos movimentos autoritários e também para conseguir ampla adesão social a suas consignas. Ao fabricar o inimigo, os movimentos autoritários pretendem, num primeiro movimento, inocular o medo na população em relação a essa suposta ameaça da ordem social que se identifica com o inimigo fabricado. O medo é uma arma politica muito poderosa. Hobbes, na sua obra o Leviatã, ponderou que o soberano deverá saber utilizar politicamente o medo como instinto básico da sobrevivência humana que torna dóceis aos súditos e submissas as vontades amedrontadas. Uma população amedrontada pela suposta ameaça de algum inimigo, real ou fabricado, se torna facilmente manipulável, pois o sentimento de vulnerabilidade que o medo inocula gera a produção de vontades submissas a soberanos e caudilhos salvadores de seus medos.
A estratégia dos fascismos e dos novos movimentos autoritários promove que uma vez fabricado o inimigo, se projetem sobre ele a causa de todos os problemas sociais possíveis ou imagináveis. Desse modo, o inimigo se torna a causa principal dos problemas sociais vivenciados pela população. Os medos socialmente produzidos são politicamente projetados contra a figura de esse inimigo fabricado contra o qual a política deverá agir para salvar a população dos medos e dos perigos que esses medos inocularam neles. A projeção estratégica do medo contra o inimigo tem por objetivo produzir o ódio contra ele. O ódio é o subproduto político da estratégia da fabricação social do inimigo. O ódio contra o inimigo é o desdobramento perseguido na inoculação do medo. Quando o medo se transforma em ódio é possível domesticar facilmente as populações para transformar esse ódio em um seguimento político. A inoculação do medo ao inimigo tem por objetivo construir uma cultura do ódio que propiciará a consolidação social do autoritarismo como alternativa política.
Num terceiro movimento, os movimentos autoritários propõem a estratégia biopolítica e tanatopolítica de eliminar o mal social do mesmo modo como se extirpa um tumor em um corpo biológico, ou seja, eliminando literalmente o inimigo de diferentes maneiras. É nesta estratégia de eliminação do inimigo que os movimentos autoritários procuram legitimar as diferentes medidas de força e violência como a arma política necessária, eficiente e correta para eliminar a raiz dos problemas sociais. Através da violência política, promovida de muitos modos, os movimentos autoritários oferecem a solução e a salvação dos medos inoculados na população e projetados contra o inimigo fabricado.
Num quarto e último passo, os movimentos autoritários propõem um líder (führer) como a figura que representa o verdadeiro poder soberano capaz de salvar a pátria e solucionar os problemas sociais, eliminando de raiz o inimigo. Esse líder é apresentado como um caudilho ou salvador de pátrias, capaz de solucionar os problemas sociais com atos de força e se necessário de violência contra os inimigos da pátria. O líder autoritário oferece soluções simplistas para problemas complexos através de consignas elementares que canalizam os sentimentos primários da população. Sendo que os sentimentos já foram modelados pelo medo do inimigo. Esses sentimentos primários, explorados pelos líderes autoritários, costumam utilizar-se de símbolos identitários de todo tipo para fabricar as identidades fechadas: o nós contra eles. A identidade do nós é fabricada em geral por um sentimento nacionalista artificial e fictício que envolve a captura e manipulação alienante de símbolos nacionais; também é fabricada através de um patriotismo simplista e vazio que explora sentimentos religiosos e culturais como se fossem senhas de identidade contra os diferentes; e também o nós contra eles é fabricado através de um forte componente racista no qual a raça (pre)dominante se mostra como superior a raças ou etnias que eles chamam de inferiores.
A história já nos mostrou como os fascismos de início do século XX fabricaram seus inimigos sinalizando a raça judia, os ciganos, os negros, etc., como culpados de todos os males sociais. Também estigmatizaram como inimigos a todos os pensadores críticos, a todos os opositores como sendo militantes marxistas, comunistas, socialistas, anarquistas e até democrata cristãos e liberais, estes seriam os inimigos da pátria que haveria que exterminar para salvar a pátria.
E hoje, como se fabrica o inimigo? Quais são os inimigos fabricados pelos novos autoritarismos? Em cada país há uma certa singularidade na fabricação do inimigo ou no tipo de inimigo que se fabrica para legitimar a aceitação social dos neoautoritarismos. Contudo, numa escala mais global, se destaca a estigmatização da figura do emigrante, como sendo a ameaça social mais grave que muitas sociedades enfrentam. Como consequência, se projeta nos migrantes todos os estigmas da figura de um inimigo que irá destruir a ordem social dos países nos quais eles estão migrando. Na perspectiva do inimigo, o migrante foi projetado como uma ameaça para a sobrevivência da ordem social e como consequência se tornou a causa principal dos maiores problemas sociais como desemprego, inflação, superávit público, gastos sociais, etc. Uma grande parte dos novos movimentos autoritários se consolidaram fabricando a xenobofia como uma arma política e o migrante como o principal inimigo da ordem social e da pátria. Em muitos casos se fabrica o migrante como um inimigo da identidade nacional, que com seus costumes diferentes vai modificar a essência nacional da pátria e, por tanto, vai desintegrar os valores nacionais substituindo-os pelos valores diferentes.
Desse modo, a xenofobia se tornou a estratégia através da qual os novos movimentos autoritários inoculam o medo em grandes parcelas da população, projetando na figura do migrante a causa principal dos problemas sociais. Como consequência a xenofobia se tornou um dos principais desafios éticos e políticos que enfrentamos no século XXI. O termo grego xenos (estrangeiro) e seu sufixo fobia (medo, rejeição, ódio) refletem em parte o fenômeno político contemporâneo do crescimento e amplo apoio social aos movimentos autoritários, dado que a utilizam como arma para produzir o medo e o ódio contra o diferente. Contudo, talvez seja conveniente aprofundar um pouco mais no tipo de xenofobia fabricada, para melhor compreendermos a complexidade desse fenômeno e a raiz política que o está impulsionando.
Um primeiro pressuposto importante para uma leitura crítica da xenofobia fabricada é reconhecer que uma grande parte de migração que se movimenta em grande escala por todo nosso planeta é imposta pela necessidade de sobreviver às condições de pobreza, às guerras ou às mudanças climáticas do planeta. São os migrantes de sobrevivência. Estes migrantes de sobrevivência são obrigados a sair de sua terra, não por uma escolha livre, mas pela simples necessidade de sobreviver. É o impulso humano e vital mais primário de sobreviver que está provocando uma grande parte do fenômeno migratório em escala global.
Refugiados climáticos na Venezuela (Foto: Agência da ONU para refugiados)
Concomitantemente aos migrantes de sobrevivência, identifica-se um outro tipo de migração importante que não está motivada diretamente pela sobrevivência, mas como consequência natural da alta mobilidade humana que nossos tempos propiciam em virtude das possibilidades tecnológicas, econômicas e culturais que facilitam o deslocamento em grande escala. Muitos milhões de pessoas decidem migrar para outros lugares por diferentes motivos que os estritamente de sobrevivência, por negócios ou turismo, por exemplo. A título de exemplo podemos mencionar amplos deslocamentos migratórios propiciados pelo fenômeno contemporâneo do turismo, que é talvez o maior fenômeno de mobilização de populações em escala planetária em toda a história da humanidade. Com tudo, o turismo e o turista nunca são percebidos como ameaça social ou como inimigos da pátria. Muito pelo contrário, eles são bem recebidos e se promovem políticas públicas para atraí-los. Acontece que em muitas regiões do mundo, amplas populações de turistas temporários decidiram se assentam como moradores fixos, porque se sentiram atraídos pelas condições de vida, clima, custo de vida, etc. Isso ocorre, por exemplo na Espanha que nas ilhas Baleares ou nas Ilhas Canarias, assim como no sul da Espanha estão assentados amplos contingentes populacionais de países nórdicos ou até grandes bairros colonizados por xeques árabes, que inicialmente vieram como turistas e com o tempo decidiram transladar seu domicilio habitual para estes novos lugares.
Em geral, estas amplas migrações turísticas não são percebidas como um perigo social, pelo contrário são muito bem acolhidas porque movimentam a economia com dinheiro gasto. Também não se considera que rompem a identidade nacional com seus costumes diferentes, com sua língua diferente, etc., mesmo que na prática já estejam modificando substancialmente os modos de vida dos lugares onde se assentam. As populações de migrantes com dinheiro são sempre bem vindas. Ou seja, o problema da xenofobia aos migrantes que se alastra pelo mundo como um estigma ético não corresponde com uma rejeição, desprezo ou ódio a todos ao migrantes, senão aos migrantes de sobrevivência. Isso significa que a xenofobia fabricada pelos novos movimentos autoritários tem por objetivo projetar o medo e o ódio contra os migrantes pobres. Estes sim são projetados com uma ameaça à segurança nacional sob todos os aspectos. Analisado de modo crítico, o medo e ódio fabricado pelos novos movimentos autoritários não é uma mera xenofobia, mas uma aporofobia. Ou seja, se fabrica o pobre, o migrante pobre, como o novo inimigo social da pátria e dos valores nacionais. A xenofobia que se esconde e disfarça por trás dos novos racismos e ultranacionalismos nada mais é que uma aporofobia, um desprezo aos pobres, um ódio contra os pobres, que neste caso são os migrantes.
A utilização política da aporofobia não é algo inédito dos novos movimentos autoritários. O desprezo aos migrantes pobres foi amplamente difundido na segunda metade do século XX, quando teve lugar uma ampla migração do campo para as cidades, das regiões pobres para as regiões ricas de cada país. No Brasil, por exemplo, a migração massiva dos nordestinos para o Sul, o dos camponeses para os bairros urbanos, chegou a ser um paradigma da favelização e medo desses pobres que se converteram no perfil dos ignorantes e até dos marginais perigosos. O mundo inteiro viveu movimentos migratórios semelhantes, com um amplo sentimento de aporofobia, desprezo e rejeição desses migrantes rurais pobres.
Embora o Brasil seja um país ainda de migrantes e não vivamos agora a experiência de uma migração intensa de estrangeiros, em escala global o movimento dos migrantes de sobrevivência se intensificou nas últimas décadas e a perspectiva é que dada a desigualdade estrutural da riqueza no mundo, nas próximas décadas a migração continue e a ser uma forma de sobrevivência para milhões de pessoas. Nesse contexto, nos diferentes países em que os novos movimentos autoritários se consolidaram, o fizeram explorando o sentimento de aporofobia contra os migrantes. O paradoxal é que uma grande parte da população que adere a esta aporofobia são filhos e netos de migrantes rurais que em décadas passadas tiveram que suportar esta mesma realidade. Agora a primeira e segunda geração daqueles migrantes rurais vêm chegar a outros migrantes pobres e estrangeiros em situações muito semelhantes às que viveram seus pais e avós quando migraram do campo para as cidades. Estes novos migrantes são estigmatizados com a marca da xenofobia, como se fosse um mero ódio aos estrangeiros, ou um ódio porque são estrangeiros, quando na verdade é uma aporofobia, um desprezo aos pobres e a sua condição de pobreza. Se esses mesmos migrantes de sobrevivência viessem com dinheiro para se instalarem num país, não experimentariam nenhuma xenofobia. O desprezo e o ódio é por serem pobres, por serem migrantes de sobrevivência.
A xenofobia propalada pelos novos movimentos autoritários é uma aporofobia que se estende como uma sombra de ódio contra os migrantes por uma grande parte do planeta. A aporofobia se camufla sob as bandeiras do patriotismo, dos ultranacionalismos e das identidades fechadas. Por trás destes patriotismos e ultranacionalismos aporofóbicos está produção da cultura do ódio ao inimigo, neste caso ao migrante de sobrevivência. A construção do ódio aporofóbico contra os migrantes de sobrevivência tende a se constituir um sentimento irracional, visceral, que desemboca no fanatismo político. Este fanatismo político é um produto histórico resultado de um processo de inoculação do medo ao inimigo e da fabricação da cultura do ódio, neste caso aos migrantes.
A aporofobia é muito mais que xenofobia. Não se despreza e odeia a todos os estrangeiros, mas aos estrangeiros pobres. Assim como o antissemitismo foi um sentimento fabricado pelo nazismo e fascismos que produziu um sentimento irracional de medo e ódio a pessoas de outra étnica, a xenofobia aporofóbica é produzida como um sentimento de medo e ódio aos migrantes pobres cuja presença é considerada por estes movimentos autoritários um perigo para as vidas das pessoas e para a segurança nacional. A aporofobia se converteu no combustível político dos novos movimentos autoritários filofascistas que assolam o planeta. O discurso patriótico e ultranacionalista esconde a estratégia aporofóbica de desprezo aos estrangeiros que são pobres, aos migrantes de sobrevivência, e não aos migrantes que se instalam em mansões ou ocupam bairros e até cidades turísticas colonizando-as com culturas diferentes.
Não se tem medo do diferente, do estrangeiro, quando este é rico. Semeia se o medo dos migrantes pobres. Eis o dilema ético que deve desmascarar e desconstruir a estratégia aporofóbica dos novos movimentos autoritários. Talvez um dos referentes éticos mais potentes de nossa cultura para confrontar a estratégia aporofóbica dos novos autoritarismos seja a parábola do Samaritano. Nela, Jesus retrata com plasticidade ética os diferentes personagens de nosso tempo. Perante um estrangeiro mal ferido, todos passam olhando para outro lado, desprezando-o por ser estrangeiro, indiferentes a seu sofrimento por ser desconhecido. Até que outro estrangeiro, um samaritano, enxerga nele um ser humano necessitado de compaixão e solidariedade. A compaixão e a solidariedade que enxerga no outro um semelhante e não um estrangeiro é que salva a vida. Enquanto a estratégia política de fabricar o inimigo insiste em ver nos migrantes pobres um inimigo, a parábola do samaritano provoca a interpelação ética de modificar o olhar para enxergar no diferente um semelhante, no estrangeiro um próximo. Afinal, de alguma forma todos somos migrantes e estrangeiros sobre este mundo.