11 Junho 2024
"A tanatopolítica da enchente consistiu na exposição da população ao perigo pelo poder soberano – nossos governantes. Mais uma vez formas de vida tiveram usurpado o seu direito à vida, e o 'deixar morrer' se sobrepôs ao 'fazer viver' ", escreve José Luís Ferraro, Doutor em Educação, Bolsista Produtividade do CNPq e Professor Universitário, em artigo publicado por Extra Classe, 10-06-2024.
Pensar a política significa considerar a relação que os indivíduos não apenas estabelecem entre si, mas com as instituições como possibilidade para o exercício de sua cidadania. Isso implica a aceitação de uma vida não apenas segmentada, mas intermediada por diferentes categorias jurídicas que inserem o sujeito de diferentes maneiras no contexto social.
No fim da década de 1970, o filósofo francês Michel Foucault cunhou o termo biopolítica, que serve de referência para a compreensão do governo das populações. Assim, para Foucault, a virada ocorrida na Modernidade diz respeito ao deslocamento ocorrido entre a forma de exercício de um poder soberano para o que denominou de biopoder: um poder sobre os vivos, e que diferentemente do primeiro, deixa de usurpar dos indivíduos, tanto o seu direito à vida quanto à morte. Se antes o soberano poderia “fazer morrer ou deixar viver”, o imperativo dos governantes da Modernindade passa a ser o de potencializar a vida da população, agora alvo das estratégias de um poder que deve “fazer viver”.
Se por um lado, a partir disso, a população emerge como o corpo-espécie a ser governado, por outro foi o italiano Giorgio Agamben que insistiu em analisar a biopolítica ainda sob a lógica do poder soberano. O filósofo observou no interior da biopolítica que surge como paradigma de governo dos Estados modernos, a presença do que se referiu como tanatopolítica (do grego thanatos, que significa morte).
Foi a partir da leitura de Hannah Arendt sobre o totalitarismo, que Agamben estende a análise foucaultiana ao tomar como referência o Estado nazista. No caso do nazismo, a tanatopolítica emerge como uma espécie de racionalidade estatal levada ao limite com a instituição dos campos de concentração onde foram exterminados judeus, ciganos, homossexuais, comunistas, pessoas com deficiência compreendidos como formas de vida dissidentes.
Para ele, não apenas nos chamados Estados totalitários – caracterizado, entre outras coisas, pela presença da figura do soberano – mas também nas atuais formas de democracias liberais, existe a institucionalização da morte, também por meio do assassinato indireto, promovido ou impulsionado pela lógica de outro conceito foucaultiano: o racismo de Estado, que enfoca o preceito do “deixar morrer”. Nesse contexto há a naturalização da paz do terror, o que faz tanto os Estados totalitários quanto certas democracias (neo)liberais serem caracterizadas como Estados suicidários.
O fato é que a biopolítica opera uma cisão que separa a bios da zoé: a vida política da mera vida ou vida nua – uma vida matável. Implica-se aí uma normatividade que separa “vidas que importam” das “vidas que não têm valor”; como uma espécie de extensão (ou efeito) relacionada à ideia de que no interior do próprio corpo social existem inimigos que devem ser abandonados a sua própria sorte. Assim, surgem estereótipos que constroem a ideia de um inimigo social ou de sujeitos que se não forem civilizados devem ser expostos à violência estatal, geralmente uma massa de indivíduos, marginalizados – em sua maioria pobres e não brancos.
O que acaba por operar essa dicotomia, por sustentar essa normatividade, é o que Agamben denominou de máquina antropológica. Nessa zona de indistinção entre bios e zoé – respectivamente vida política e mera vida – é uma classe dirigente que decide quem é o Povo e quem é o povo. O primeiro protegido por direitos individuais e políticos, o segundo despido de tal proteção – nesse sentido a referência à vida nua.
No caso da enchente que acometeu o Rio Grande do Sul, a água não escolheu. Pessoas de distintas classes sociais foram atingidas. O fato é que a escolha biopolítica dos governos estadual e municipal (no caso de Porto Alegre) escancararam uma aposta elevada em uma tanatopolítica que não lhes permitiu antecipar a execução de um plano de evacuação (que nem sequer existia) em caso de enchente e que, ao ser orientada por uma racionalidade neoliberal, produziu o desinvestimento na estrutura estatal observada pelo desmantelamento e, como consequência, o não funcionamento das casas de bomba na capital.
A tanatopolítica da enchente consistiu na exposição da população ao perigo pelo poder soberano – nossos governantes. Mais uma vez formas de vida tiveram usurpado o seu direito à vida, e o “deixar morrer” se sobrepôs ao “fazer viver”.
Passado o momento mais grave da enchente, é hora de reconstruir. Mas sempre é bom lembrar que em tempos de crise climática e política a reconstrução também começa pelas urnas.
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A tanatopolítica da enchente. Artigo de José Luís Ferraro - Instituto Humanitas Unisinos - IHU