Vozes de Emaús: Processos de libertação e alguns pressupostos para o diálogo inter-religioso. Artigo de Edward Guimarães

Arte: Lauren Palma | IHU

09 Julho 2025

"Passamos a perceber que a beleza da experiência religiosa do outro, da religião do outro, não ofusca e nem diminui a beleza de nossa experiência religiosa, de nossa convicção, de nossa religião"

O artigo é de Edward Guimarães, doutor em Ciências da Religião e mestre em Teologia da Práxis Cristã, é professor do Mestrado Profissional em Teologia Prática da PUC Minas, membro da atual diretoria da Sociedade de Teologia e Ciências da Religião – SOTER, assessor das Comunidades Eclesiais de Base - CEBs e membro do grupo Emaús.

Edward Guimarães (Foto: Arquivo pessoal)

O presente texto integra a coluna Vozes de Emaús, que conta com contribuições semanais dos membros do Grupo Emaús. Para saber mais sobre o projeto, acesse aqui

Eis o artigo.

Todos precisamos de processos contínuos de libertação, tanto no nível pessoal quanto coletivo. No nível pessoal porque precisamos arrancar todos os dias as sementes de egoísmo que brotam em nós. Somente assim é possível manter a consciência da humildade aprendiz e o horizonte aberto para a constante busca histórica inesgotável da verdade. No nível coletivo porque precisamos romper cotidianamente com nossa tendência ao corporativismo, a enraizar identidades tribais, a fecha-se ao outro, ao que pensa diferente, ao de fora, ao que nos é estranho. Somente assim este deixa de ser percebido como ameaça à segurança do nosso grupo de pertença.

Sem acolhermos e assumirmos, como necessário a todos nós, tais processos infindos de libertação, o cultivo da cultura do encontro, do respeito mútuo, do diálogo aprendiz, do processo de ensino-aprendizagem sempre inacabado, impede que brote, cresça e frutifique o convívio fratersororal – convívio entre irmãos e irmãs que se alegram e se enriquecem uns com os outros – e a paz fecunda entre nós. Nem as culturas urbanas, tecnológicas e internéticas em que estamos envolvidos, nem os processos educativos que até então valorizamos, conseguiram paralisar o crescente espiral de violência, desconstruir os muros ilusórios historicamente erigidos de desigualdades sociais, de nacionalismos, de etnocentrismos, de religiocentrismos e de outros sectarismos. A história da humanidade deve ser acolhida como a nossa grande mestra: para pararmos de cometer os mesmos erros e nos encorajarmos criativamente a caminhar em direção ao novo.

Neste texto compartilhamos, na primeira parte, algumas posturas presentes em nosso meio e que visivelmente impedem o diálogo e, na segunda parte, algumas posturas decisivas que criam condições para darmos passos concretos na “construção artesanal”, na expressão do papa Francisco, do diálogo inter-religioso.

I. Três posturas que fecham as portas e impedem o diálogo inter-religioso

Temos dificuldade de reconhecer a diferença e de perceber a fronteira entre a consolidação de uma convicção profunda de fé, desde a nossa experiência religiosa, e o desenvolvimento de consequente postura arrogante, cuja pretensão é fundamentar a convicção de termos atingido a verdade em sua expressão cabal, inquestionável e inegociável. Toda postura arrogante fecha as portas e impede o diálogo inter-religioso.

Temos muita dificuldade de superar a postura hermenêutica ensimesmada, ou seja, pretendermos interpretar e compreender a convicção religiosa e a religião do outro desde o nosso lugar de pertencimento, com os pressupostos da nossa religião, com os critérios e valores enraizados em nossa convicção, animados, conscientes ou inconscientemente, por uma lógica de assimilação, que reduz o outro, o diferente, aos limites do nosso universo cultural ou religioso. Toda postura de permanência no si mesmo, no próprio universal religioso particular, sem saída de si, sem deslocamento hermenêutico, sem aproximação e abertura ao outro, fecha-se as portas e impedimos qualquer avanço no diálogo inter-religioso.

Temos dificuldade de acolher que a nossa religião, que toda religião é e não pode deixar de ser, intrinsecamente, histórica e parcial, no sentido da explicitação da verdade que experimenta e que pretende consignar e transmitir através de sua doutrina; toda religião é inacabada, ou seja, está sempre em construção, em processo de aprofundamento e de aperfeiçoamento; e é incuravelmente ambivalente. Toda pretensão de plenitude da verdade, de perfeição histórica de uma religião, fecha as portas e impede o diálogo inter-religioso.

II. Três posturas que criam condições e possibilitam passos no diálogo inter-religioso

Discernimos três posturas capazes de neutralizar as anteriores e que, de certa forma, criam as condições e possibilitam passos concretos no diálogo inter-religioso.

O diálogo inter-religioso se torna possível quando existe um reconhecimento dialético prévio. De um lado, o reconhecer o direito do outro, do religiosamente distinto de nós, ter a sua convicção religiosa profunda, sincera e verdadeira. De outro, o reconhecer de nosso próprio direito de ter uma convicção religiosa profunda, sincera e verdadeira na nossa religião. Este reconhecimento dialético somente é possível com a afirmação de que cada religião possui o direito de afirmar a possibilidade da experiência da universalidade da verdade, mas de uma universalidade particular. Somente uma universalidade particular da verdade poderia permitir, sem contradição lógica e sem relativismo, outras universalidades particulares. A particularidade não diminui a universalidade, mas a torna uma experiência humana possível. A universalidade é atributo divino, a particularidade é condição humana.

O diálogo inter-religioso se torna possível quando nos aproximamos de uma pessoa religiosamente distinta, de outra religião, portanto, sem julgamentos prévios, com postura de abertura e desejo sincero de contemplar a beleza do outro, de reconhecer, com empatia, a profunda, sincera e verdadeira convicção do outro no experimentar a verdade do mistério divino e de si mesmo, enquanto verdade universal particular. O outro, de quem nos aproximamos ou que se aproxima de nós, precisa cultivar também as mesmas exigências para a verdadeira aproximação. Sem tais exigências não há encontro verdadeiro, não há reconhecimento mútuo da universalidade da verdade particular como experiência simultânea nossa e do outro.

O diálogo inter-religioso se torna possível quando nos colocamos juntos em busca da universalidade da verdade, cientes de que esta experiência histórica só pode ser vivida no particular e, portanto, pode se enriquecer sempre. Esta experiência é sempre humanamente parcial, processual e plural, por isso ela é crescente e sujeita a novas percepções que ampliam a experiência já feita. Nesse sentido, aproximar, ouvir e conhecer de perto a experiência da verdade religiosa do outro, além de contribuir para a superação de nossa ignorância religiosa e melhor compreende o outro em suas convicções religiosas e a própria religião do outro, esta experiência amplia, enriquece e aprofunda a nossa própria experiência da verdade religiosa. Passamos a perceber que a beleza da experiência religiosa do outro, da religião do outro, não ofusca e nem diminui a beleza de nossa experiência religiosa, de nossa convicção, de nossa religião.

Ao contrário, quando contemplamos a nossa experiência religiosa, a nossa religião, desde a outra, da qual nos aproximamos, descobrimos aspectos novos que enriquecem a nossa experiência do mistério divino sempre maior do que nossos conceitos delimitam e nossas experiências dão conta de captar.

A guisa de balanço final

Não tivemos outra pretensão aqui que iniciar uma conversa sobre os pressupostos necessários para compreender os entraves ou para darmos passos concretos no complexo diálogo inter-religioso, exigência ineludível no contexto em que vivemos, no qual assistimos, com tristeza, ao crescimento dos casos de intolerância e violência religiosa entre nós.

No entanto, ultrapassaria os limites deste texto, aqui demonstrar com exemplos concretos que os pressupostos elencados na primeira parte ajudam a compreender e tomar consciência das causas de muitos entraves e conflitos inter-religiosos no seio das famílias e de grupos diversos de nossa sociedade cada vez mais ciente da multiculturalidade humana. O mesmo pode ser dito de querer demonstrar que passos concretos no diálogo inter-religioso somente foram possíveis, historicamente, porque os pressupostos apresentados na segunda parte foram levados em conta em alguma medida.

Que tal criarmos rodas de conversa sobre nossos processos infindos de libertação e sobre os pressupostos necessários para darmos passos concretos no diálogo inter-religioso entre nós? E você, o que pensa sobre isso? Compartilhe nos comentários ou envie para mim, no Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo..

Leia mais