Vozes de Emaús: identidades abertas, de múltiplas pertenças, aprendentes e servidoras e o nosso compromisso com a educação e construção da cultura da paz. Artigo de Edward Guimarães

Arte: Laurem Palma | IHU

16 Abril 2025

"Um dos desafios primais da educação para a paz se encontra na compreensão do processo de formação de nossa identidade".

O artigo é de Edward Guimarães, doutor em Ciências da Religião pela PUC Minas e mestre em Teologia pela FAJE, é licenciado em Filosofia pela PUC Minas (2020) e bacharel em Teologia (1996) e Filosofia (1992) pela FAJE. Atua como professor do Departamento de Ciências da Religião da PUC Minas, onde é como secretário executivo do Observatório da evangelização. É membro da atual diretoria da Sociedade de Teologia e Ciências da Religião (SOTER).

Edward Guimarães (Foto: Arquivo pessoal)

O presente texto integra a coluna Vozes de Emaús, que conta com contribuições semanais dos membros do Grupo Emaús. Para saber mais sobre o projeto, acesse aqui

Eis o artigo. 

Este ano de 2025, tive a oportunidade de ler a reedição da obra As identidades assassinas. A violência e a necessidade de pertença, originalmente, lançada em 1998, reeditada em 2023. Nela o escritor libanês-francês Amin Maalouf, a partir da experiência de seres humanos em situação de fronteira, em termos de religião, etnia, nacionalidade... se propõe “compreender porque tantas pessoas cometem hoje crimes em nome da sua identidade religiosa, étnica, nacional ou outra”. Ele nos convida a tomarmos consciência do grave risco de continuarmos a produzir identidades fechadas, de única pertença, defensivas e raivosas ou conquistadoras e violentas, alterofóbicas.

No contexto contemporâneo, tais identidades se tornam sistematicamente assassinas das diferenças, e são avaliadas contundentemente por Maalouf como uma ameaça à paz. Como saída para crise civilizacional, cuja gravidade descreve a partir dos vulneráveis, sugere uma proposição decisiva: assumirmos juntos uma ética do cuidado, da escuta, do reconhecimento mútuo e da reciprocidade, capaz de fundar e fazer emergir processos identitários novos: abertos às múltiplas pertenças, acolhedores, aprendentes e servidores da vida em situação de ameaça social: minorias, pobres, excluídos, oprimidos, migrantes, deslocados, refugiados...

Esta experiência me fez mergulhar reflexivamente nos hercúleos desafios do contexto que vivemos de complexas tecituras, com os diversos fios oferecidos pelos pluralismos de nossas sociedades urbanas. Nossas sociedades são tão conectadas tecnologicamente quanto socialmente injustas, opressoras e excludentes. No entanto, parece que muitos de nós ainda não enxerga a aguda crise civilizacional que vivemos.

Há uma incapacidade de superarmos a cultura do individualismo. Esta é aceita e acolhida como mera cultura da subjetividade. Não conseguimos sanar a ânsia por dominação e conquista do poder. Esta para muitos é aceita e compreendida como pura dimensão política de nosso ser. Não conseguimos controlar a busca insana e avarenta por acumulação de bens. Esta é reconhecida não como apropriação indébita que exclui, oprime e mata a muitos, mas como economia das liberdades. Não dá para continuarmos indiferentes ao compromisso ineludível com a educação e construção cotidiana da cultura da paz.

Em nosso contexto contemporâneo, o tema do pluralismo cultural e religioso, é tratado de muitas formas. Alguns o abordam de forma abstrata e distante das relações sociais concretas, com seus conflitos fecundos ou violentos. Outros o consideram de forma ilusoriamente nostálgica a partir de um passado que nunca existiu, quando não havia conflitos por causa da diversidade humana. Há também quem aborde o pluralismo com receios e medos, sublinhando ameaças e virulentos conflitos. Outros abordam o pluralismo a partir do seu reconhecimento como realidade humana e o acolhe como um desafio repleto de urgências ineludíveis diante do contexto urbano, internético e injustamente desigual e excludente. Se encontramos posturas caracterizadas por certa indiferença ao tema do pluralismo cultural e religioso, como se o pudéssemos ignorar, a maioria o experimenta bem próximo de seu cotidiano familiar, escolar, laboral, social. Hoje o pluralismo está presente e se manifesta nas suas caleidoscópicas facetas no interior de cada grupo ou família.

Um dos desafios primais da educação para a paz se encontra na compreensão do processo de formação de nossa identidade. Aqui se situa, a nosso ver, a origem de nosso encantamento e maravilhamento diante da beleza da diversidade cultural e religiosa ou de nossa postura de fechamento, quase sempre violenta, com preconceitos, discriminações, exclusões, agressões e perseguições.

O papa Francisco vem testemunhando uma postura fecunda diante do outro, do diferente, que pode inspirar a nossa criatividade para concretizar a ética do cuidado: aproximar, acolher e escutar, com desejo de compreender e aprender, e não de julgar e condenar. Para apostarmos na convivência pacífica, na tolerância, no respeito mútuo, na construção da cultura da paz, neste tempo de experiência cotidiana do pluralismo cultural e religioso, que sejamos fecundados pela convicção antropológica que o líder sul-africano Nelson Mandela nos legou em sua autobiografia Longa caminhada até a liberdade: “Ninguém nasce odiando uma pessoa pela cor de sua pele, por sua origem ou sua religião. Para odiar as pessoas precisam aprender, e se elas aprendem a odiar, podem ser ensinadas a amar, pois, o amor chega mais naturalmente ao coração humano do que o seu oposto. A bondade humana é uma chama que pode ser oculta, jamais extinta”.

Leia mais