"Trata-se daquele impacto fundamental, impresso na beleza das coisas, e que antecede a qualquer distinção entre sujeito e objeto. É quando somos tomados pelo ser das coisas e nos esquecemos de tudo. É quando nos colocamos diante do mero ato de ver puro e simples"
O artigo é de Faustino Teixeira, teólogo e colaborador do IHU e do Canal Paz e Bem.
Faustino Teixeira (Foto: Ricardo Assis/UFJF/divulgação)
O presente texto integra a coluna Vozes de Emaús, que conta com contribuições semanais dos membros do Grupo Emaús. Para saber mais sobre o projeto, acesse aqui.
Numa passagem evangélica lida em 21 de junho, Jesus dirige-se aos discípulos e os adverte para a atenção às coisas simples da vida. O mestre convoca a seus seguidores para a gratuidade do que existe ao redor. E sublinha: “Não vos preocupeis com a vossa vida, com que havereis de comer ou beber” (Mt 6,25). Fala também da beleza dos lírios do campo e dos pássaros do céu. Ao abordar o tema, o evangelista não se retém na beleza do ver, mas passa a discorrer sobre o significado das palavras de Jesus. Quando fala dos lírios do campo, descreve que nem Salomão em sua glória vestiu-se com um deles. Ao falar dos pássaros do céu, acrescenta que eles não semeiam nem colhem aquilo do qual se alimentam.
Um grande mestre e pensador do budismo zen, que aprecio profundamente – Shizuteru Ueda -, reflete sobre o tema em seu livro “Zen e filosofia” (1994). Ao comentar o evangelho de Mateus, Ueda sublinha que na tradição zen, o mestre procederia diferente do que aparece no evangelho. O mestre diria simplesmente: Olhais os pássaros no céu e os lírios do campo... sem maiores considerações ulteriores. Ao zen não interessa as divagações teóricas, mas o simples gesto de ver.
Thomas Merton, em seu livro sobre “Zen e as aves de rapina” (1968), tece lindas considerações sobre a meditação Zen. Não há ali, diz Merton, qualquer busca de compreensão, mas apenas o imperativo do olhar: “O Zen, nada explica. Apenas vê”. É justamente ali onde não se compreende que nasce a porta de entrada para a verdadeira compreensão. O mundo fenomênico que se apresenta ao olhar não se reduz apenas ao que aparece na ordem das coisas sensíveis, mas aciona uma “espécie de poder dinâmico” que emociona e maravilha. No final de seu livro, Merton cita uma clássica passagem Zen:
“Antes que eu penetrasse o Zen, as montanhas nada mais eram senão montanhas e os rios nada a não ser rios. Quando aderi ao Zen, as montanhas não eram mais montanhas nem os rios eram rios. Mas, quando compreendi o Zen, as montanhas eram só montanhas e os rios, só rios”.
Quando Merton esteve na Ásia, em sua última peregrinação pelo tempo, ele se encantou com tudo o que viu nas esferas da tradição budista. Quando visitou as ruínas de Polonnaruwa e viu os Budas descalços foi tomado de grande admiração. Para ele foi esplendoroso esta ali, despojado, diante “do silêncio dos extraordinários rostos”, bem como dos “largos sorrisos”, vastos e sutis. Foi quando então se viu arrancado da forma tradicional de ver as coisas e pôde ver com precisão e serenidade a beleza de uma tradição. Diante do que viu, Merton sublinhou que tinha agora penetrado “através da superfície” e ultrapassado “a sombra e a aparência”.
Assim como diante dos grandes Budas, Merton também foi tocado pela beleza da montanha de Kanchenjunga, e ali se deu conta que estava “à beira da grande perceção do real”. Conseguiu ver algo diverso, e perceber um significado profundo escondido “no outro lado da montanha”, naquele ponto que escapa à qualquer percepção do fotógrafo, aquele lado que é “o único que vale a pena ver”. Como sublinhou Merton na ocasião, “uma câmera não pode reconciliar uma pessoa com coisa alguma. Nem pode ver uma verdadeira montanha”. Para que isso se dê, é necessário um particular estado de espírito. A beleza mesma da montanha só se nos descortina quando somos capazes de penetrar no grande paradoxo, e entendemos que a montanha é e não é. Segundo Merton, a total beleza da montanha só emerge quando “a fumaça das ideias se desvanece e a montanha é vista”.
O que vale mesmo é a experiência imediata, a experiência de ser tomado pelas coisas. Os grandes mestres da tradição zen preferem o indicativo, e não o imperativo. Assim, com a clássica passagem de Angelus Silesius: “As rosas florescem porque florescem”. A tradição zen diria, simplesmente: “As rosas florescem como florescem”. O passo fundamental é estar diante da “experiência pura”. No zen budismo o que impera é o “sem por que”. O “como” é diferente do “por que”. O “por que” já insere um desdobramento do pensamento, um corte do pensamento. O “como” é mais indicativo e belo.
O grande desafio é o de captar a magnitude do instante e a visão imediata, como tão bem mostrou o mestre Dogen (1200-1253). Trata-se daquele impacto fundamental, impresso na beleza das coisas, e que antecede a qualquer distinção entre sujeito e objeto. É quando somos tomados pelo ser das coisas e nos esquecemos de tudo. É quando nos colocamos diante do mero ato de ver puro e simples. O que impera nesse momento é a “não-mente” (wu-shin), como podemos perceber de forma clara na experiência artística, quando o músico identifica-se de tal modo com o seu instrumento que ele mesmo transforma-se na música que está operando.