A Teologia da Libertação revolucionou a forma como a Igreja Católica latino-americana entende sua missão. Surgida em um contexto de grandes mudanças políticas, essa corrente propõe uma fé comprometida com a defesa dos pobres e a transformação da realidade. Desde seus primórdios até sua influência nos documentos do papa Francisco, essa doutrina desafiou estruturas tradicionais e gerou debates apaixonados.
O artigo é de José Zanca, publicado por Nueva Sociedad, março/abril de 2025.
José Zanca é doutor em História pela Universidade de San Andrés, pesquisador independente da Pesquisa Sócio-Histórica Regional/Conselho Nacional de Pesquisas Científicas e Técnicas (ISHIR-Conicet) na Argentina. Publicou, entre outros livros, "Intelectuais Católicos e o Fim do Cristianismo" (FCE, Buenos Aires, 2006) e "Catolicismo e Cultura de Esquerda na Argentina do Século XX" (Siglo XXI Editores, Buenos Aires, 2024).
No complexo e dinâmico cenário do pensamento religioso latino-americano do século XX, a Teologia da Libertação surgiu como uma corrente teológica singular e profundamente influente. Nascida no calor das transformações sociais, políticas e econômicas do continente, e catalisada pelos ventos renovadores do Concílio Vaticano II, propôs uma releitura radical da mensagem cristã a partir da perspectiva dos oprimidos e marginalizados. Seu surgimento não apenas abalou os alicerces da teologia tradicional, como também gerou intensos debates e confrontos dentro da Igreja Católica e além dela. As origens, o auge e as posteriores vicissitudes dessa corrente teológica estão marcados por seu compromisso com a justiça social, seu diálogo com as ciências sociais e sua relação conflituosa com as hierarquias eclesiásticas. No entanto, ao longo de sua trajetória, a Teologia da Libertação também enfrentou desafios internos e críticas que levaram à sua diversificação e reconfiguração nas últimas décadas.
A cultura católica é um produto paradoxal da modernidade e da secularização. Durante o século XIX, os Estados nacionais fundaram uma esfera laica, autônoma da fé religiosa, e indiretamente criaram uma esfera religiosa diferenciada. Nas últimas décadas do século XIX, os Estados na Europa e na América começaram a controlar aspectos civis como a educação, os cemitérios e o registro de casamentos e nascimentos, promovendo uma cidadania moderna. Em alguns países, isso levou à separação entre Igreja e Estado. Essa transformação do lugar da religião em sociedades com forte observância religiosa conduziu a diferentes resultados, como a Guerra Cristera no México, a laicização radical no Uruguai ou separações mais amigáveis entre Igreja e Estado no Chile.
Em muitos casos, a Igreja Católica aceitou um modus vivendi com o Estado moderno, mantendo até a década de 1960 a aspiração de uma sociedade integrada entre o público e o religioso, na qual o poder político zelasse tanto pelos corpos dos cidadãos quanto por suas almas. Isso implicava oposição à educação laica, ao casamento civil, à diversidade de cultos e a uma esfera pública sem censura. O particular da “era secular”, segundo a definição de Charles Taylor, não reside no desaparecimento da religião, mas no fato de que a crença religiosa deixou de ser obrigatória. Isso exigia que a Igreja Católica, para continuar exercendo sua influência, buscasse outros meios, enfrentando seus adversários (setores liberais e de esquerda que promoviam o aprofundamento da secularização) na arena pública com as próprias ferramentas da modernidade: a imprensa, a publicação de livros de acesso massivo, o rádio e até o cinema. Nas primeiras décadas do século XX, esses meios se tornaram instrumentos de defesa da Igreja em um contexto claramente hostil.
Os intelectuais — uma entidade surgida no fim do século XIX, que falava em nome da sociedade e questionava a razão de Estado — também tiveram sua versão cristã. Os intelectuais confessionais precisavam conciliar a obediência a dois sistemas de valores nem sempre compatíveis: as autoridades religiosas, legítimas condutoras da Igreja que serviam, e suas próprias ideias como autores, sua independência como intelectuais e sua singularidade como sujeitos. Essa tensão que envolvia os intelectuais católicos persistiu ao longo do século XX. Escritores, publicistas, teólogos e romancistas foram fundamentais para definir os contornos da cultura católica; mas, ao mesmo tempo, eram vistos com desconfiança pelas autoridades dos episcopados locais e de Roma, guardiãs da “sã doutrina”.
Nas décadas de 1930 e 1940, o catolicismo experimentou um reavivamento em sua organização e presença pública. Surgiram organizações como a Ação Católica na Europa e na América Latina, que reuniam jovens, trabalhadores, camponeses e crianças. Revistas e jornais de grande circulação foram publicados, programas de rádio foram lançados e projetos editoriais foram desenvolvidos, consolidando uma cultura católica em que circulavam e eram discutidos os documentos papais e a “doutrina social da Igreja”. Embora o objetivo fosse recuperar terreno em uma sociedade secularizada, isso acabou por gerar uma opinião pública interna que logo começou a questionar a autoridade eclesiástica, influenciada por debates políticos e eventos como a Guerra Civil Espanhola e a Segunda Guerra Mundial, que também dividiram o campo católico.
Com a chegada de João XXIII ao papado em 1958, as mudanças começaram a partir de Roma. O “papa bom” convocou um Concílio Ecumênico que reuniu representantes do mundo inteiro. Na década de 1960 ainda não existia um “catolicismo terceiro-mundista” com uma agenda própria, mas isso mudou durante e depois do Concílio. Formou-se o grupo “Jesus, a Igreja e os pobres” para sensibilizar sobre a pobreza e promover um secretariado que abordasse os problemas mundiais, especialmente a pobreza e o Terceiro Mundo. Esse grupo atraiu muitos bispos latino-americanos, liderados por Hélder Câmara e Manuel Larraín. O grupo influenciou debates e documentos finais com materiais, intervenções nas sessões do Concílio e cartas aos papas João XXIII e Paulo VI, propondo ações concretas contra a pobreza.
As mudanças que estavam ocorrendo na Igreja Católica eram uma nova forma de responder às rápidas transformações no Ocidente. Tanto na Europa quanto na América Latina, os processos de industrialização acelerada haviam criado grandes cidades nas quais o vínculo religioso tradicional parecia se dissolver. A revolução tecnológica do pós-guerra deu origem a uma época de otimismo sem limites. Desde o lançamento do satélite soviético Sputnik até a chegada dos astronautas norte-americanos à Lua, a ciência e a tecnologia pareciam oferecer soluções neutras e eficientes para os grandes problemas da humanidade, como as doenças, a fome e a superpopulação. As vacinas, a produção em massa de alimentos e a pílula anticoncepcional faziam parte de uma promessa em que a influência divina parecia irrelevante. Isso não significa que a população tenha deixado de acreditar em Deus, mas sim que sua fé passou a se desenvolver fora do âmbito das instituições tradicionais.
Essa transformação na cultura religiosa, geralmente englobada sob o termo “secularização”, foi interpretada por muitos intelectuais cristãos como um chamado a revisar a mensagem da Igreja para poder alcançar o homem e a mulher modernos. Desde a década de 1930, uma nova corrente de humanismo cristão começou a ganhar eco na América Latina. As obras de Jacques Maritain, Louis-Joseph Lebret e Emmanuel Mounier projetaram uma nova utopia social: uma sociedade politicamente laica, mas fundada nos valores da solidariedade cristã.
Nos anos 1960, surgiram diversas “teologias radicais”, ou seja, reflexões sobre o papel de Deus na vida humana que abordavam questões profundas, criticando correntes hegemônicas até então, como o tomismo, e buscando diálogo com importantes correntes filosóficas do campo secular: o existencialismo e o marxismo. Surgiram então uma nova teologia política, a teologia da morte de Deus, a teologia da secularização, a teologia das realidades terrenas — teologias europeias que compartilhavam uma “virada antropocêntrica”, centradas na pergunta sobre o ser humano moderno e sua possível relação com a divindade.
Essa mudança vinha sendo gestada no catolicismo há algum tempo. A Juventude Operária Católica, fundada na Bélgica em 1924 por Joseph Cardijn, se caracterizou por um método inovador para a ação social: “ver, julgar, agir”. Esse enfoque implicava, diante da complexa realidade social da Europa do pós-guerra, examinar as condições de vida antes de aplicar dogmas e analisar os passos a seguir. Essa pequena mudança teve um impacto profundo na cultura católica, pois, nos anos 60, esse “ver” não significava apenas observar com a razão ou a fé, mas utilizar um instrumento novo de análise: as ciências sociais.
As universidades católicas incorporaram rapidamente a sociologia e as ciências políticas em seus programas acadêmicos. Na América Latina, os planejamentos da política pastoral passaram a recorrer a pesquisas de opinião como novo instrumento de evangelização. Os fiéis deixaram de ser sujeitos passivos, meros receptores da liturgia, e suas opiniões passaram a ser consideradas — pelo menos pelos setores progressistas das igrejas católicas e evangélicas, cada vez mais focadas na problemática do ser humano moderno.
Sobrepondo-se ao Concílio Vaticano II, a Revolução Cubana de 1959 marcou uma nova perspectiva para pensar tanto a questão política quanto a questão social latino-americana. A “hora cubana” havia chegado e os católicos também viveram o impacto da revolução em sua forma de entender a teologia. Não havia, no subcontinente, uma tradição teológica com nome próprio. O Concílio havia aberto um período de forte conflito interno na Igreja Católica. Bispos conservadores enfrentaram padres e leigos que tentavam levar adiante as reformas conciliares e aprofundá-las, adaptando-as à realidade latino-americana. Mas também no corpo episcopal, a crítica à ordem social apareceu de forma cada vez mais crua nos documentos elaborados por grupos mais ou menos informais e nas declarações de diferentes bispos, cujos nomes começaram a circular na imprensa, surpreendendo as elites políticas e econômicas que os rotularam como “bispos vermelhos”. Helder Câmara, Leónidas Proaño, Manuel Larraín, Alberto Devoto, Enrique Angelelli, Eduardo Pironio... a Igreja latino-americana estava se movimentando.
Em março de 1967, o papa Paulo VI publicou a encíclica Populorum progressio. Seu impacto na América Latina foi transcendental, uma vez que foi lida como um decálogo de denúncias sobre a situação de pobreza e injustiça a que estavam submetidos os países do Terceiro Mundo. Embora a solução proposta pelo documento fosse a paz e o desenvolvimento, o tom de denúncia das injustiças sociais e uma passagem que falava da legitimidade do uso da força em “caso de tirania evidente e prolongada” serviriam para legitimar a ação dos cristãos revolucionários. Um ano antes, em 1966, o colombiano Camilo Torres havia morrido em combate. O padre havia estudado sociologia em Lovaina e, em 1965, juntou-se ao Exército de Libertação Nacional (ELN). Camilo tornou-se um ícone para a esquerda cristã do continente, mesmo para aqueles que não estavam dispostos a pegar em armas, mas se identificavam com seu compromisso martirial.
Em 1967, um grupo de 18 bispos da América, Ásia e África, por iniciativa de Helder Câmara, divulgou um documento com o objetivo de aplicar a Populorum progressio em suas regiões. Nele, denunciavam-se os desequilíbrios econômicos mundiais gerados pelo capitalismo e advertia-se que “Deus não quer que haja ricos que aproveitem os bens deste mundo explorando os pobres”. Em 1968, a segunda conferência do Conselho Episcopal Latino-Americano (Celam) em Medellín procurou adaptar as conclusões do Concílio à realidade latino-americana. Este evento marcou um marco na história da Igreja no continente devido ao seu enfoque transformador. O documento final expunha a profunda renovação do discurso eclesiástico, caracterizado por uma nova consciência social, política e econômica diante da pobreza e da injustiça, destacando a opção preferencial pelos pobres. A teologia da libertação emergia em um quadro de compromisso social e busca pela libertação integral.
Um conjunto de obras publicadas entre o final da década de 1960 e o início da década de 1970 seria considerado como fundador dessa linha que se tornaria a grande inovação teológica em escala universal da época. Em 1969, o presbiteriano Rubem Alves publicou nos Estados Unidos sua tese de doutorado com o título A Theology of Human Hope [Uma teologia da esperança humana], um importante preâmbulo à teologia da libertação. Entre os intelectuais católicos, foi o peruano Gustavo Gutiérrez quem redigiu uma obra fundamental. Desde 1964, vinham sendo realizadas reuniões de teólogos católicos latino-americanos, nas quais se formou uma sociabilidade que, pouco a pouco, consolidaria uma rede de intelectuais liberacionistas. Em 1968, Gutiérrez utilizou pela primeira vez a expressão “teologia da libertação” em uma exposição aos membros do Escritório Nacional de Informação Social (ONIS) reunidos em sessão em Chimbote (Peru). Em 1971, ele publicaria em Lima Teologia da libertação. Perspectivas [1], onde desenvolveria de forma completa não apenas uma nova teologia, mas o que ele entendia ser uma nova forma de fazer teologia. É claro que o livro ecoava os sofrimentos dos despossuídos do subcontinente e era um apelo aos cristãos para que se envolvessem no processo de mudança, julgando que o projeto desenvolvimentista já estava esgotado. No entanto, o que sem dúvida transcende nesta obra é a ideia de que a teologia não deveria servir nem como um debate sobre abstrações celestiais nem como álibi para os poderosos. A teologia poderia se somar de pleno direito a outras ciências que pudessem ser instrumentos para a crítica e a transformação social.
A partir daí, os encontros de teólogos liberacionistas – aos quais devemos acrescentar também os filósofos da libertação, uma corrente paralela, mas diferenciada dos teólogos – e suas publicações adquirem um ritmo frenético. Um levantamento da revista francesa Foi et Développement de 1973 calculava que já existiam mais de 1.000 publicações sobre o tema. Em 1969, Juan Luis Segundo publicou o primeiro volume de sua Teologia aberta para o leigo adulto; em 1970, Arturo Paoli publicou Diálogo da libertação; nesse mesmo ano, Eduardo Pironio escreveu dois artigos na revista Critério sobre a teologia da libertação; em 1972, o franciscano Leonardo Boff publicou em português Jesus Cristo libertador, rapidamente traduzido para o espanhol; e em 1973, Ignacio Ellacuría editou sua Teologia política em El Salvador [2]. Em 1976, já havia sido criada a Associação Ecumênica de Teólogos do Terceiro Mundo (eatwot, pela sigla em inglês), que realizou seu primeiro congresso na África naquele mesmo ano; Gutiérrez, o filósofo Enrique Dussel e o teólogo Hugo Assmann participaram da nova instituição. Os ventos da mudança tiveram um impacto semelhante no campo evangélico.
Nos anos 60, muitas igrejas do protestantismo histórico passaram por um processo de nacionalização e cortaram definitivamente os laços que as uniam às suas igrejas-mãe na Europa e nos Estados Unidos. E sua teologia foi abalada pelo espírito da época que percorria a América Latina. O teólogo presbiteriano Richard Shaull, que havia viajado pela Colômbia, Brasil e Argentina, sustentava em 1962 que o protestantismo estava sendo chamado a penetrar intimamente “na psicologia, cultura e vida de cada povo latino-americano” [3]. Em 1966, ele se perguntou diretamente o que a teologia poderia fazer pela revolução. Junto com José Míguez Bonino, Julio de Santa Ana e Rubem Alves seriam os representantes mais importantes da teologia da libertação em sua versão protestante. No entanto, e esta é outra característica dos anos 60, as fronteiras entre as teologias cristãs estavam se dissolvendo.
Em que áreas a teologia da libertação foi inovadora? Em princípio, ela implicava uma reviravolta na tradicional “doutrina social da Igreja” que, pelo menos desde o século XIX, buscava frear a voracidade do mercado. Em diálogo com as ciências sociais, os liberacionistas agora falavam com as categorias do estruturalismo e, às vezes, do marxismo. Em particular, no centro da reflexão surgiu a ideia do oprimido, do explorado, uma teologia das vítimas que, sem ser totalmente nova se pensarmos na tradição judaico-cristã, se politizava em uma região que ardia diante da possibilidade de mudanças rápidas e, em muitos casos, violentas. A exploração dos teólogos da libertação se dirigia para uma nova cristologia, ou seja, para uma reflexão central no cristianismo sobre a figura de seu fundador, e propunha uma eclesiologia que questionava o estreito vínculo entre Igreja e Estado que remontava à época constantiniana e percorria a história europeia e americana.
Finalmente, o libertacionismo também propôs uma nova espiritualidade e uma nova estética, com figuras brilhantes da literatura da década de 1970, como o padre e poeta nicaraguense Ernesto Cardenal. A teologia da libertação começou como um movimento homogêneo, mas se diversificou com o tempo. Na década de 1960, o “oprimido” era visto como um sujeito economicamente subjugado, semelhante ao proletário marxista. Nos anos 70, o debate centrou-se na subjugação cultural da América Latina face aos EUA e à Europa. Esta abordagem nativista defendia uma certa pureza cultural e associava o imperialismo económico e cultural. A teologia do povo, originária da Argentina, enfatizou a cultura e as crenças populares, diferenciando-se dos liberacionistas próximos ao marxismo. Estes últimos viam as práticas religiosas populares como conservadoras, como uma deformação da mensagem revolucionária de Cristo, como formas mais próximas da magia do que da fé; enquanto os teólogos do povo rejeitavam o “vanguardismo” revolucionário dos padres libertacionistas e propunham um catolicismo que “aprendesse” com o saber ancestral dos setores populares.
A chegada de Karol Wojtyła ao trono de Pedro marcou o início de um período de perseguição contra os teólogos da libertação, apoiado pelos setores conservadores. João Paulo II procurou reconstruir uma forma de autoridade eclesiástica que, na sua perspectiva e na de quem o acompanhava, se tinha diluído nos anos do Concílio Vaticano II e do pós-concílio. A “reconstrução da unidade” era um eufemismo para limitar o pluralismo ideológico que se instalara no seio da Igreja: uma opinião pública vigorosa que, se para os cânones do conservadorismo romano havia cometido excessos, o que tentara era uma relação mais adulta entre intelectuais confessionais e autoridade eclesiástica. O certo é que, desde a III Reunião do Celam em Puebla de los Ángeles, em 1978, o papa tentou “colocar na caixa” os liberacionistas, especialmente aqueles que ousaram cruzar o Rubicão ideológico que a Igreja havia estabelecido no século XIX e se animaram a estabelecer um diálogo com o marxismo. Mais do que o interlocutor – que, em muitos casos, prestava pouca atenção aos cristãos e vivia sua própria crise de identidade –, o que afetava a estrutura de autoridade romana era a autonomia que os intelectuais haviam conquistado na Igreja e o prestígio próprio que figuras como Gustavo Gutiérrez, Leonardo Boff, Juan Luis Segundo, Ignacio Ellacuría, Enrique Dussel, Jon Sobrino, Paulo Freire... haviam adquirido. Seus livros tinham uma difusão respeitável, eram publicados na Europa, eles ocupavam cargos em instituições eclesiásticas, eram convocados como peritos, tinham feito crescer as cátedras nas universidades confessionais e multiplicado as revistas que dirigiam.
O questionamento da teologia da libertação não foi apenas um conflito entre Roma e a América Latina. Foram os próprios teólogos e bispos conservadores latino-americanos que levaram a Roma – e antes difundiram no continente – os questionamentos ideológicos aos liberacionistas. Desde 1972, à frente do Celam, o bispo de Bogotá Alfonso López Trujillo levou adiante uma perseguição sistemática à teologia da libertação. Em 1974, López Trujillo organizou um encontro oposicionista na cidade espanhola de Toledo e, nesse mesmo ano, publicou Liberação marxista e libertação cristã [4]. Em 1985, junto com outros antiliberacionistas (como o franciscano Boaventura Kloppenburg), ele assinaria o Manifesto dos Andes, em uma reunião convocada pela revista Communio, editada, entre outros, pelo então cardeal Joseph Ratzinger.
Em 1983, João Paulo II, recém-chegado a Manágua, repreendeu com o dedo indicador Ernesto Cardenal, poeta, padre da teologia da libertação e ministro da Cultura sandinista. O padre ajoelhado esperando a bênção tornou-se uma dura mensagem de como o novo sucessor de Pedro pretendia que fossem ordenadas as relações entre a hierarquia e os intelectuais. Durante a década de 1980, a Congregação para a Doutrina da Fé, dirigida por Ratzinger, emitiu dois documentos críticos à teologia da libertação: Libertatis nuntius (conhecida como “a instrução”) em 1984 e Libertatis conscientia em 1986. Os textos, embora questionassem o que consideravam “perigos” dessa teologia, advertia que não deveriam ser usados por aqueles que “se entrincheiram em uma atitude de neutralidade e indiferença diante dos trágicos e urgentes problemas da miséria e da injustiça”. No entanto, os grupos conservadores sustentaram que se tratava de uma clara condenação do libertacionismo. Os teólogos da libertação questionaram como falsas muitas das afirmações, mas – e isso é o mais importante – defenderam-se publicamente das acusações, mantendo um diálogo – nem sempre cordial – com a autoridade romana.
Uma condenação global da teologia da libertação teria gerado uma reação também global de muitos intelectuais cristãos latino-americanos que, embora não necessariamente se identificassem com ela, a viam como um desenvolvimento autóctone positivo. Mas, paralelamente aos documentos, ocorreram censuras pessoais. Ou seja, contrariamente à doutrina tradicional, condenou-se mais os pecadores do que o pecado. O brasileiro Leonardo Boff sofreu primeiro um julgamento canônico e depois uma condenação a dois anos de silêncio. A mesma pena foi recebida em 1995 pela teóloga brasileira Ivone Gebara por sua postura em relação ao aborto. Em 1989, a Confederação Latino-Americana e Caribenha de Religiosos (CLAR) passou por uma crise interna devido à censura que o Celam e o Vaticano queriam aplicar ao projeto “Palavra e Vida”, por ocasião do V Centenário da Evangelização na América Latina. Outros teólogos liberacionistas foram perseguidos por meio de longos processos, foram publicadas advertências episcopais sobre certas obras, formas mais ou menos sutis de censura menos aceitáveis em tempos pós-conciliares.
Se a reação tradicional dos intelectuais cristãos diante da censura romana tinha sido, antes do Concílio, o silêncio ou o disfarce das ideias, o que surgiu após a advertência de Ratzinger foi uma solidariedade inesperada que mostrava o vigor da teologia da libertação dentro e fora da América Latina e as redes que os liberacionistas haviam construído. Em 1984, os professores católicos da República Federal da Alemanha assinaram uma carta em apoio a Gustavo Gutiérrez; nesse mesmo ano, a revista progressista Concilium solidarizou-se com a teologia da libertação e, em setembro de 1989, um grupo de teólogos brasileiros saiu publicamente em sua defesa. Boff argumentava que, se Roma conhecesse a realidade do subcontinente latino-americano, “teria tido a oportunidade de captar a diferença entre uma abordagem teórica do tema e uma abordagem prática sobre a ação libertadora”. Jon Sobrino foi categórico, afirmando que a instrução desfigurava seriamente a teologia da libertação: “parece não conhecê-la bem no que supostamente cita dela e não conhecê-la bem naquilo a que nem mesmo alude” [5].
A queda do Muro de Berlim, em 1989, e a derrota eleitoral dos sandinistas na Nicarágua, em 1990, produziram um refluxo geral da esquerda, e a teologia da libertação não foi exceção. Paradoxalmente, o fim da Guerra Fria — com o término das ações da esquerda revolucionária na América Central — permitiu que se abrisse uma instância de reconciliação entre Roma e os liberacionistas. A teologia da libertação voltou a um canal acadêmico, em um clima em que cada vez mais as utopias que projetava nas décadas de 1970 e 1980 foram substituídas pela ideia de “resistência” ao neoliberalismo. Essa nova agenda implicava uma autocrítica por parte dos liberacionistas. A teologia da libertação foi questionada por propor um falso universalismo e pela diluição do especificamente teológico no político, crítica que também recaiu sobre as ciências sociais e sua falta de autonomia nos anos 70.
Em 2005, o sociólogo e filósofo da religião Otto Maduro reconheceu, em uma reunião na Universidade Católica de Porto Alegre, entre outros erros, que os liberacionistas não haviam apreciado a diversidade do mundo dos pobres. Por outro lado, por ter sido uma teologia criada por “homens celibatários”, ela havia dado pouca atenção à subjetividade e à sexualidade e, sem dúvida, havia marginalizado as mulheres. Finalmente, a teologia da libertação primitiva havia desconsiderado o problema do meio ambiente e apoiado acriticamente os regimes socialistas.
Das transformações ocorridas na teologia da libertação nessas décadas, a mais impactante é, sem dúvida, a crítica que abriu em seu seio o surgimento de uma teologia da mulher, uma teologia feminista, uma teologia mulherista e uma teologia das dissidências sexuais. Na Europa pós-conciliar, especialmente nas igrejas reformadas, surgiram algumas linhas teológicas que incluíam as mulheres em uma corrente emancipatória global. No entanto, na América Latina, para a teologia (e filosofia) da libertação, as lutas feministas ficavam subsumidas na libertação integral do ser humano. Inicialmente, os liberacionistas não manifestaram um interesse particular pelas questões de gênero. No entanto, com o tempo, houve um diálogo crescente entre as duas correntes, impulsionado em grande parte pelas teólogas feministas que se identificavam explicitamente como teólogas feministas da libertação, tanto no Primeiro Mundo quanto na América Latina. Essas teólogas procuraram analisar a opressão das mulheres no contexto mais amplo de classe, raça e pertencimento ao Terceiro Mundo. Para elas, a inter-relacionalidade da opressão era um fato fundamental.
A teologia da libertação latino-americana havia questionado o universalismo da teologia europeia, reivindicando a singularidade de um conhecimento situado. No entanto, sua concepção dos “pobres” (como explorados economicamente) havia voltado a homogeneizar um ator bastante diverso. As teólogas feministas da libertação latino-americanas, como María Pilar Aquino e Ivone Gebara, situaram-se num ponto crucial desse diálogo, criticando a teologia da libertação por seu androcentrismo e pela falta de uma análise crítica de como conceitos como “mulheres” e “feminilidade” eram usados para manter estruturas patriarcais. Elas argumentaram que, embora a teologia da libertação se preocupasse com a opressão dos pobres, muitas vezes ignorava as experiências específicas das mulheres pobres, incluindo questões de ética sexual e direitos reprodutivos.
Na década de 1980, as mulheres começaram a ganhar espaço na teologia da libertação. Em 1985, foi realizada em Buenos Aires uma reunião latino-americana sobre teologia a partir da perspectiva feminina, com figuras como a já mencionada Ivone Gebara, Tereza Cavalcanti, Nelly Ritchie e María Clara Bingemer. O encontro destacou que a experiência vivida era fundamental para essa teologia feminista, rejeitando uma linguagem abstrata desconectada da realidade. As teólogas buscavam reinterpretar conceitos tradicionais a partir da história e das experiências das mulheres, afirmando que a opressão e o machismo moldavam a reflexão teológica. A perspectiva feminina trazia visões inéditas, questionava categorias tradicionais e propunha novas formas de entender a fé cristã. Elas criticavam a teologia tradicional por ser androcêntrica e perpetuar a opressão, enquanto a teologia feminina se conectava com a vida cotidiana das mulheres, especialmente das pobres.
Nos últimos 25 anos, a crítica feminista às noções binárias e opostas masculino/feminino e a ênfase na construção social do gênero abriram um espaço teórico para questionar as categorias rígidas de sexo e gênero também dentro da teologia da libertação. A preocupação com a “liberação sexual” e a crítica à ética sexual tradicional, baseada em pressupostos androcêntricos, sugerem uma inquietação com as experiências e a autonomia dos corpos além das normas heteropatriarcais. Uma das pioneiras da crítica foi a original teóloga argentina Marcella Althaus-Reid. Desde a década de 1990 (depois de se estabelecer na Escócia), ela se tornou uma referência na teologia lgbti+. Em La teología indecente (2000), Althaus-Reid convidava a fazer teologia “sem roupa íntima”, depois de viver a experiência de percorrer Buenos Aires e seus cheiros em busca da “fragrância da teologia da libertação nas mulheres: aroma de sexo e limões” [6]. Ela afirmava que as mulheres eram invisibilizadas no libertacionismo, o que colocava em dúvida a suposição de que essa nova teologia partia da práxis, na qual a reflexão teológica era o “segundo ato”. Não havia uma práxis ou observação “objetiva”. A crítica feminista mostrava as limitações significativas em sua capacidade de abordar as experiências e os interesses específicos das mulheres, especialmente das mulheres pobres, no âmbito da ética sexual. A finlandesa Elina Vuola argumenta que a ambiguidade e a falta de explicitação do conceito de práxis na teologia da libertação, juntamente com uma compreensão muitas vezes abstrata e homogênea dos “pobres”, não levam em conta as dimensões de gênero e reprodução, o que dificulta a integração plena de uma perspectiva feminista crítica.
A chegada de Jorge Bergoglio ao papado em 2013 levantou inúmeras questões sobre qual seria sua postura em relação à teologia latino-americana. Nas décadas de 1970 e 1980, Francisco havia sido crítico, mais do que da teologia, dos teólogos liberacionistas. Seu lema repetido “o todo é mais do que as partes e a mera soma das partes” se aplicava aos debates internos do catolicismo como uma repreensão aos teólogos que, com suas “veleidades autonomistas”, estavam lacerando uma Igreja católica que cada vez mais perdia prestígio na América Latina.
Existe um certo consenso sobre a estreita relação entre o universo de ideias de Francisco – expresso em suas diversas encíclicas e em comunicações mais informais – e a teologia do povo, desenvolvida, entre outros, pelos padres Rafael Tello, Lucio Gera, o jesuíta Fernando Boasso e Juan Carlos Scannone. Desde 2013 até hoje, multiplicaram-se os trabalhos que tentam caracterizar essa corrente idiossincrática [7]. Como mencionamos, uma das diferenças é sua rejeição ao uso de categorias marxistas (como classe) devido ao seu caráter europeísta. Mas é uma teologia que se opõe ao liberacionismo? É uma teologia peronista? É uma forma de integrismo disfarçado de falso progressismo? É uma forma de perpetuar a pobreza da América Latina através da glorificação do pobre (o pobrismo)? Scannone, que exerceu a liderança intelectual dentro da Companhia de Jesus da Argentina – e foi um dos pioneiros, junto com Enrique Dussel, da filosofia da libertação –, sempre defendeu a hipótese de que a teologia do povo era um ramo da teologia da libertação, que partia da mesma metodologia, embora não utilizasse os mesmos conceitos, nem se aproximasse do diálogo com o marxismo. Para Scannone, a centralidade ocupada pelas noções de povo e cultura era uma questão de ênfase: os oprimidos da América Latina também eram culturalmente despojados, ameaçados de perder o pouco que os diferenciava em nome do avanço do mercado.
Bergoglio, que via com desconfiança os teólogos da libertação nos anos 70 e 80, à medida que se afirmava em seu trono, mostrou-se disposto a reconciliar Roma com a teologia latino-americana. É claro que a mudança do contexto geopolítico após o fim da Guerra Fria desempenhou um papel crucial na diminuição da tensão entre o Vaticano e a teologia da libertação. O surgimento de desafios globais como o capitalismo neoliberal criou um novo cenário no qual as demandas da teologia da libertação, como a opção preferencial pelos pobres, podiam ser abordadas com menor carga ideológica. Uma série de gestos de Francisco confirmaram isso: seu vínculo afetivo com Gustavo Gutiérrez, a canonização do bispo salvadorenho Oscar Romero e o levantamento das sanções a padres ligados à teologia da libertação, como Miguel d'Escoto Brockmann e Ernesto Cardenal.
Além dos gestos, Francisco incorporou seletivamente, durante seu papado (2013-2025), algumas de suas principais preocupações, como a centralidade dos pobres e a crítica às desigualdades econômicas e à “idolatria do dinheiro”. Sua encíclica Laudato si' reflete a influência do pensamento ecológico que surgiu dentro da teologia da libertação na década de 1990. No entanto, sua abordagem é mais pastoral e menos um compromisso intelectual profundo com as elaborações teóricas específicas do movimento. Como observou o teólogo norueguês Ole Jakob Løland, a “solução” para o conflito entre Roma e a teologia da libertação ocorreu por meio de uma integração seletiva de símbolos e preocupações, facilitada pelo novo contexto histórico, o que permitiu uma reconciliação entre grupos anteriormente antagônicos dentro do catolicismo latino-americano, sem que Francisco se tornasse um teólogo da libertação propriamente dito.
É evidente que a história da teologia da libertação é muito mais do que um capítulo isolado nos anais do pensamento cristão. Em termos de agenda política, seu conteúdo evoluiu paralelamente ao dos demais grupos progressistas e de esquerda latino-americanos. Apesar das críticas, perseguições e mudanças de contexto, a teologia da libertação sobreviveu em grande parte porque se tornou uma forma de fazer teologia que colocava as vítimas no locus theologicus. Estimulou debates que ainda ressoam e criou uma rede de intelectuais que puderam mostrar-se solidamente unidos diante da autoridade religiosa.
A Teologia da Libertação tornou-se, na prática, sinônimo de teologia latino-americana. A reconciliação seletiva com Roma sob o Papa Francisco não implicou o desaparecimento de tensões históricas, mas talvez uma nova forma de coexistência na qual algumas de suas preocupações centrais, como a opção pelos pobres e a crítica à desigualdade, encontraram ressonância renovada. Em última análise, a questão que permanece é se o legado da Teologia da Libertação continuará a inspirar formas de pensamento e ação que enfrentem injustiças sistêmicas e promovam a libertação integral.
[1] CEP, Lima, 1971.
[2] J.L. Segundo: Teología abierta para el laico adulto I, s./e., Buenos Aires, 1968; A. Paoli: Diálogo de la liberación, Carlos Lohlé, Buenos Aires, 1970; L. Boff: Jesus Cristo libertador, Vozes, Petrópolis, 1972; I. Ellacuría: Teología política, Secretariado Social Interdiocesano, San Salvador, 1973.
[3] "Vida y estructura de la iglesia en relación con su testimonio en la sociedad latinoamericana" en El Predicador Evangélico, 6/1962.
[4] Editorial Católica, Madrid, 1974.
[5] L. Boff, Pablo Richard Guzmán, Ronaldo Patricio Muñoz Gibbs, J. Sobrino y J. de Santa Ana: "Reacciones de los teólogos latinoamericanos a propósito de la Instrucción" en Revista Latinoamericana de Teología vol. 1 No 2, 31/8/1984.
[6] M. Althaus-Reid: La teología indecente. Perversiones teológicas en sexo, género y políticas, Bellaterra, Barcelona, 2005.
[7] Ver Emilce Cuda: "Teología y política en el discurso del papa Francisco. ¿Dónde está el pueblo?" en Nueva Sociedad No 248, 11-12/2013