17 Novembro 2015
Uma das principais referências mundiais da Teologia da Libertação, Leonardo Boff, concedeu uma entrevista exclusiva à Adital, durante o II Congresso Continental de Teologia, em outubro deste ano, em Belo Horizonte [Estado de Minas Gerais, Brasil]. O teólogo avalia o contexto político da América Latina e do Brasil, diante do que ele entende como democracias frágeis. Para Boff, os países latino-americanos têm enfrentado uma tentativa de recolonização por parte dos Estados Unidos, com o Brasil atravessando uma crise política e ideológica. O país estaria dividido entre dois modelos - um que segue um projeto nacional, com autonomia, e outro que é dependente, neocolonizado. Ele aponta também que a renovação da Teologia da Libertação precisa "vir de baixo”, dos novos sujeitos históricos, e defende que, para cada tipo de opressão, existe uma libertação adequada.
A entrevista é de Cristina Fontenele, publicada por Adital, 13-11-2015.
Atualmente, Boff é assessor de movimentos sociais de cunho popular libertador, como o Movimento dos Sem Terra (MST) e as Comunidades Eclesiais de Base (CEBs). Além de conferencista mundial em temas como Teologia, Ética, Espiritualidade e Ecologia. Como escritor, publicou mais de 70 livros, traduzidos para diversos idiomas. Seu novo livro intitula-se "Ecologia, ciência e espiritualidade”, pela editora Mar de Ideias.
Boff ingressou na Ordem dos Frades Menores, franciscanos, em 1959, doutorando-se em Teologia e Filosofia pela Universidade de Munique-Alemanha, em 1970. Em razão de suas teses ligadas à Teologia da Libertação, apresentadas no livro "Igreja: carisma e poder”, foi condenado, em 1985, a um ano de silêncio obsequioso, pela Sagrada Congregação para a Defesa da Fé, ex-Santo Ofício, no Vaticano. Dirigido à época por Joseph Ratzinger – que depois seria nomeado o Papa Bento XVI –, a conclusãodo grupo foi de que as análises de Leonardo Boff eram "de tal natureza que põem em perigo a sã doutrina da fé, que esta mesma Congregação tem o dever de promover e tutelar”.
A pena foi suspensa em 1986, podendo Boff retomar algumas de suas atividades. Porém, em 1992, ele renunciou às suas atividades como padre. A partir dos anos de 1980, o teólogo aprofundou seus estudos sobre Ecologia, dedicando-se ao Grito da Terra, alinhado com o que o Papa Francisco denomina de "cuidados com a Casa Comum”.
Eis a entrevista.
Como o senhor avalia a atualidade da proposta da Teologia da Libertação? Quais são as expectativas para o futuro?
A Teologia da Libertação nasceu escutando o grito do oprimido. Primeiro, era o oprimido econômico, o operário explorado; depois, o oprimido étnico, o negro, indígena, a mulher, as pessoas que têm alguma urgência na sua vida, e, finalmente, o mundo da opressão. Em face dessa opressão, vale a libertação.
E aqui vem a diferença de outras visões e movimentos sociais, que também querem a libertação, como a tradição marxista, a tradição do iluminismo. Aqui se trata de como o Cristianismo, a fé cristã, a mensagem de Jesus, pode ser uma fonte de inspiração para mobilizar as pessoas, para elas criarem consciência, organizarem-se e buscarem a libertação.
O eixo central dessa Teologia é a opção pelos pobres, contra a pobreza, em favor da libertação e da justiça social. Ela não é uma disciplina teológica, como é a Liturgia, como é a História da Igreja. É uma maneira diferente de fazer Teologia, que é sempre a partir do grito do oprimido, a partir da realidade concreta, nas suas contradições.
Em segundo lugar, é preciso analisar essa realidade sob dois aspectos: o aspecto crítico, então, as ciências, a Antropologia, a Sociologia e também no aspecto religioso, teológico. Em que medida essa realidade realiza aquilo que nós chamamos "desde o reino de Deus”, realiza justiça, respeita os direitos e inclui as pessoas, não exclui.
O terceiro passo é, face a tudo isso, o que podemos fazer para dar encaminhamento à libertação concreta. Quando isto é realizado, então, há a celebração, o rito, uma forma do ser humano celebrar suas conquistas. Então, esse é o núcleo central da Teologia da Libertação. Ela nasceu no fim dos anos 1960, no começo dos anos 1970, e, como a pobreza do mundo aumentou e ganhou outros rostos, ela também teve que se adaptar.
Ultimamente, eu fui um dos primeiros a ter percebido isso, que, dentro da opção pelos pobres, cabe o grande pobre, que é o planeta Terra. Devastado, explorado, contaminado. Então, a Teologia da Libertação tem que se transformar também numa Eco-Teologia da Libertação. Tem que ajudar a libertar a Terra porque, sem a Terra, nós não podemos sustentar nenhum projeto. Eu creio que a grande novidade da encíclica do Papa é o cuidado da "Casa Comum”. Se nós destruirmos a Casa Comum, nenhum projeto humano, nenhuma civilização, nada vai subsistir.
Hoje, essa Teologia tem a mesma urgência que tinha nos anos 1960 e 1970, porque os motivos que criaram essa Teologia, que é a pobreza e a opressão, têm dimensões planetárias, hoje. Envolve a própria Terra, os ecossistemas e as guerras que estão ocorrendo no mundo. Então, a Teologia da Libertação não é uma coisa estática. Ela vai se adaptando, na medida em que as formas de opressão também vão se modificando. Para cada opressão, uma libertação adequada. Por exemplo, a libertação do indígena é diferente da libertação do operário. A libertação do indígena é garantir, primeiro, as terras dele, porque a terra não é um meio de produção, para ele, é uma extensão do corpo e precisa de grandes espaços, porque ele se sente unido com a natureza.
E a libertação da mulher tem que ser distinta. Ela está, por 15 séculos, já submetida ao patriarcado, marginalizada, sempre secundarizada, quando não, considerada minorenne [menor]. É uma libertação própria das mulheres, mas levada especialmente pelas mulheres mesmas. Os homens podem ser aliados secundários, mas as mulheres mesmas que se conscientizam, se organizam, elaboram sua consciência, rejeitam a dominação patriarcal e criam sua identidade. Então, para cada opressão, a sua adequada libertação.
Sobre o Congresso da Ameríndia, que discutiu toda essa Teologia, como o senhor avalia a importância desse encontro?
Esse encontro foi uma espécie de avaliação sobre em que nível estão as opressões na América latina. Porque todos os países da América Latina vieram de regimes militares, com muita violência, muita opressão, onde há mártires, há pessoas desaparecidas. Logo em seguida, vieram as democracias, que trouxeram liberdade, mas todas essas democracias são frágeis. Elas têm uma base popular, porque vieram de baixo, mas, hoje, nós estamos assistindo, depois da crise de 2007 e 2008, a crise econômico-financeira do sistema global praticamente afundou os centros de decisão, que são os Estados Unidos e a Europa. Então, de repente, a realidade mudou e há um avanço extremamente acelerado do pensamento conservador, do pensamento, inclusive, reacionário, antidemocrático, em toda a América Latina e no mundo inteiro.
Hoje, as opressões são muito violentas porque os governos são pressionados pelos grandes poderes econômicos financeiros mundiais a assumirem as metas que estes estabelecem - a macroeconomia de mercado, a economia de especulação e não de produção. Isto está produzindo duas grandes injustiças - uma social e outra ecológica.
A injustiça social, que nunca houve tão grande na história, existe ao ponto de praticamente 1% da humanidade possuir 90% da riqueza do mundo. 85 pessoas têm a riqueza de 40 países, onde vivem 600 milhões de pessoas. Então, a grande injustiça social significa desigualdade social, mas esta é uma categoria analítica, descritiva. Sob a perspectiva ético-política, a desigualdade significa injustiça social, e, teologicamente, significa um pecado contra Deus e contra os filhos e filhas de Deus. Há uma injustiça social generalizada, com muito sofrimento, em países inteiros, como a Grécia, Espanha, Portugal e, agora, praticamente os países da América Latina estão sendo invadidos pela pressão dos grandes capitais. Isso é um lado da questão.
O outro lado é a injustiça ecológica, porque se refinaram as formas tecnológicas de explorar os bens e serviços da Terra, em todos os pontos - no mar, no ar, nos solos, nas florestas. A tal ponto que, para se refazer daquilo que nós tiramos durante um ano, a Terra precisa de um ano e meio. Nós encostamos nos limites da Terra. Se os países ricos, como os Estados Unidos e a Europa, quisessem democratizar o bem estar deles para toda a humanidade, nós precisaríamos de cinco Terras iguais a esta, o que mostra a irracionalidade do sistema, a impossibilidade de levar avante esse projeto de desenvolvimento, de produção, de distribuição e de consumo.
Não, com razão, o Papa, por 35 vezes, disse "temos que mudar” o modo de produção, o modo de distribuição e o modo de consumo. Se nós não mudarmos, podemos ir ao encontro do pior.
Então, esse Congresso tem essa vantagem, mostrando como em cada país e ao nível do mundo, mas mais ao nível da América Latina, estão se agravando as condições da pobreza, e como os movimentos sociais estão desarticulados e as políticas dos Estados absolutamente enfraquecidas.
Como avalia então o cenário político da América Latina e do Brasil?
O Brasil é um exemplo de uma realidade que está se descompondo, não há praticamente governança, estamos num voo cego, não sabemos para onde vamos, com uma crise econômica, política, ética, humanitária. Em quase todos os países, há situações semelhantes, mas os casos mais graves são o Brasil e o México.
O México praticamente virou um Estado dominado pela máfia das drogas, pela violência dos grupos organizados. Isso nos coloca, como cristãos, em tarefas novas para a Teologia da Libertação, e nós também não sabemos exatamente por onde começar. Estamos tateando, buscando, analisando. Uma coisa é termos a convicção de que a libertação e a mudança não virão de cima, porque os Estados, as grandes corporações, econômicas e políticas, sempre fazem mais do mesmo, mais exploração da Terra, mais acumulação, mais exploração da força de trabalho. Então, por esse caminho não há salvação, tem que vir de baixo.
O Papa, nos discursos que fez no Vaticano, quando reuniu os movimentos sociais e, fundamentalmente, em Santa Cruz de La Sierra, na Bolívia, quando se reuniram representantes de todos os movimentos sociais latinos americanos, ele estabeleceu um certo caminho. Disse que a grande luta vem da garantia de três "tês”, que significam direitos fundamentais, que são trabalho, terra e teto. Isto todo mundo tem que ter.
Como segundo ponto, o Papa diz: "não espere nada de cima, sejam vocês os profetas da mudança. Vocês são fracos, vocês são pobres, são explorados, mas vocês têm forças”. Na medida em que se organizam, pressionam, elaboram os projetos, começam a construir, lá embaixo, novas formas de produção, de cuidar de sementes, da cultura, da agricultura familiar, da cultura orgânica. Começam a fazer um ensaio de um mundo diferente e possível.
É é aí que se estabelece a força da Teologia da Libertação, porque, nos movimentos sociais de base, como o movimento dos sem terra, dos sem teto, dos negros, das mulheres e de outros, a referência teórica daqueles que têm fé cristã é a Teologia da Libertação, que dá inspiração, que dá força de resistência. Então, não é mais a Teologia da Libertação acadêmica, não é mais feita para os teólogos profissionais. É feita pelas lideranças que incorporaram seu discurso, conseguem pensar, elaborar a sua visão da realidade, e conseguem hegemonizar o processo. Isto é um fenômeno novo.
Então, se nós perguntarmos onde está a Teologia da Libertação, hoje, não está nas faculdades de Teologia. Ela está nas bases populares, especialmente nas comunidades de base, que são cerca de 100 mil, no Brasil, está nos círculos bíblicos que são quase 1 milhão, está nos movimentos sociais por terra, por teto, por casa, por direitos humanos. Esses grupos sociais articulados constituem a matéria, para a qual o dom da Teologia da Libertação se realiza, avança e se pensa. Isto é algo novo, que não havia nos anos de 1960.
Então, aí estaria a renovação da Teologia da Libertação, por meio dessas lideranças?
A renovação da Teologia da Libertação tem que vir de baixo, tem que vir desses novos sujeitos históricos, porque os movimentos sociais amadureceram, criaram suas lideranças. O próprio governo não pode fazer nenhum grande projeto sem consultar o movimento social, o movimento dos sem terra, dos sem teto, o movimento dos negros. Tem que discutir com a sociedade e os movimentos sociais, se não, não consegue fazer passar os projetos.
O próprio parlamento está continuamente sob pressão desses movimentos. Então, ali está a chance de uma alternativa, de uma saída política para um outro tipo de sociedade, eu diria um outro tipo de democracia, porque essa democracia que temos, que é só representativa, é uma grande farsa, porque se compararmos a justiça social com a democracia, ela é uma condenação de si mesma. A democracia pressupõe a igualdade dos cidadãos e, aqui, há uma profunda desigualdade. Então, a democracia é retórica, o que não seria a postulação dos movimentos de base, da própria Igreja. É exigir uma democracia participativa, isto é, aonde os movimentos sociais organizados participam na decisão dos projetos nacionais. Isto cria muito medo no parlamento, que impossibilita, de toda forma, todas as leis que favorecem isso, mas o parlamento não pode sustar a pressão que vem de baixo. Como todos dependem do voto do povo, eles [parlamentares] têm que fazer uma certa conciliação.
As bases querem uma mudança substancial na forma de organizar a sociedade, porque essa, como está aí, não deu certo, está piorando cada vez mais, cada vez mais corrupta, de costas para o povo, não representa os anseios populares. Por isso que ela é farsesca, uma grande representação fantasiosa. Não é uma organização política, que leva o projeto de nação e beneficia as grandes maiorias. É uma democracia, feita com leis para beneficiar as classes que foram sempre beneficiadas. Organizam o Estado e os projetos, em que eles são os principais ganhadores, e deixam migalhas para os projetos sociais.
Só para dar um exemplo, o governo tem que pagar aos grandes bancos, ao sistema financeiro interno, cerca de R$ 150 bilhões em juros. Dinheiro que ele toma emprestado para pagar suas contas, e investe para os problemas sociais, que é para a grande maioria dos brasileiros, 60 bilhões de reais. Esta diferença é absolutamente injusta, porque são 5 mil famílias que controlam 46% de toda a riqueza nacional. Essa desigualdade é injusta e o Estado não tem força para enfrentar o sistema financeiro especulativo, e tem que se submeter. Se não se submete, eles [bancos] se negam a emprestar. Aí o governo não consegue pagar suas contas.
Sobre o Brasil, o senhor citou, anteriormente, que essa crise também é um pouco forjada, principalmente especulada pela mídia. Como analisa esse cenário e os ajustes do Governo, que têm contribuído para essa crise?
Nós vivemos uma crise que tem uma base real. Nós temos que reconhecer que setores importantes, setores dirigentes do partido do PT [Partido dos Trabalhadores] se deixaram corromper de uma forma vergonhosa e escandalosa. Desmoralizaram o Partido e todas as pessoas que ajudaram a montar esse projeto, esse ideal. Nós lutamos há 30 anos para que chegasse um partido que tivesse como combater, com ética, transparência, colocasse o povo no centro e não as vantagens pessoais corporativas. Essa base real é um fracasso, de um partido que traiu o seu povo. Nós temos que dizer, setores do PT traíram o povo brasileiro e as esperanças dos mais pobres.
Esse fato está sendo explorado, para além do seu lado objetivo, pelos adversários políticos, que, não só não aceitam a derrota, mas querem fazer desaparecer o partido ou deslegitimar suas lideranças. De tal forma que elas não possam se apresentar mais como candidatos e nem tenham pretensão de ganharem eleições. Então, esse é o lado forjado.
A grande mídia pertence ao grupo do grande capital. É o braço estendido do capital financeiro, quer dizer, capital especulativo, articulado com o capital mundial. Eles movem uma verdadeira campanha sistemática de desmoralização, em que utilizam todos os meios, desde os objetivos, informando os níveis da corrupção, até a calúnia, a desinformação e a deformação. Com o objetivo de liquidar esse partido e permitir criar o espaço para que aqueles que há 500 anos dominaram o Brasil voltem a dominá-lo, com as vantagens que sempre tiveram.
Nós estamos, hoje, numa luta que, por um lado, é política, disputa de poder, e, por outro lado, é ideológica. Que Brasil nós queremos? Queremos um Brasil que tenha autonomia, um projeto nacional voltado para as grandes maiorias? Ou um Brasil que se alinha como sócio menor, dependente, obedece às estratégias definidas pelos Estados Unidos e entra sempre num processo de neocolonização? Porque o império, isto é, a visão global hegemonizada pelos Estados Unidos, quer fazer da America Latina uma grande reserva de bens e serviços naturais, de alimentos, de sementes, de minérios, de água, de florestas, para atender às necessidades deles, porque eles [Estados Unidos] já não têm mais essas realidades.
Há um processo de recolonização. Isto significa diminuir e, eventualmente, destruir a base industrial brasileira, para que o país seja apenas um produtor de bens naturais, especialmente de sementes, de minérios, exportar frutas, água, aquilo que a natureza dá. Isto é o preço do Brasil alinhar-se e obedecer à lógica que os outros definem. Então, a luta, hoje, é por dois modelos de Brasil.
Por mais que o PT tenha sido desmoralizado em tudo, o núcleo central do seu sonho permanece intacto - querer um Brasil autônomo, com políticas sociais transformadoras, inclusão das grandes maiorias excluídas, justiça social e democracia participativa. Estes ideais são irrenunciáveis. Talvez, o partido tenha traído, mas os movimentos sociais e nós, que participamos há 30 anos disso, não renunciamos a esse sonho. Lutamos para que haja condições dele [partido] se afirmar politicamente e não permitir que o Brasil volte a ser uma colônia do grande império, renunciando à sua autonomia, humilhando o seu povo e entregando as nossas riquezas ao benefício daqueles que já são ricos, aqui e lá fora.
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Para Boff renovação da Teologia da Libertação tem que ‘vir de baixo’ – PARTE I - Instituto Humanitas Unisinos - IHU