10 Junho 2025
"Neste quadro calamitoso não existem saídas, sobretudo se centradas no eixo exclusivo de uma vitória eleitoral. Sem um partido político capaz de polarizar o processo de formulação de uma proposta de desenvolvimento sustentável, com participação da sociedade civil, a única possiblidade é a mobilização autônoma desta sociedade civil", escreve Jean Marc von der Weid, ex-presidente da UNE (1969-71) e fundador da organização não governamental Agricultura Familiar e Agroecologia (ASTA), publicado por A Terra é Redonda, 07-06-2025.
É uma ilusão achar que se pode ganhar eleições com estratégias eleitoreiras e governar com uma agenda “oculta” radicalizada.
Nos primeiros meses de 2023, escrevi uma série de artigos que intitulei “A Armadilha”, analisando as ameaças a um bom governo do presidente Lula na sua terceira gestão. Um destes artigos centrou-se na relação do executivo com o legislativo e apontou o desafio de governar com (ou contra) um Congresso dominado pelo Centrão e pela extrema direita bolsonarista. Agora, quando o governo Lula III se encaminha para seus derradeiros momentos, a menos de um ano para ser dada a largada das próximas eleições presidenciais, cabe verificar como ele enfrentou o dito desafio.
A imagem que me vem à cabeça para descrever o que vejo é a de uma mosca (ou borboleta ou outro inseto qualquer) presa em uma teia de aranha. Uma vez capturada, a mosca vai se enredando a cada movimento que faz para se livrar da aranha que se prepara para devorá-la.
Já se sabia que o problema era gigantesco. O Congresso, eleito no mesmo pleito em que o presidente Lula bateu Bolsonaro por menos de 1% dos votos válidos, tem a composição mais à direita da nossa história, só comparável à do final do império, quando dominavam os latifundiários escravocratas.
O atual Congresso herdou do período de Jair Bolsonaro um empoderamento inédito na história do Brasil. Temeroso de ser levado a um processo de impeachment, Bolsonaro se entregou ao Centrão e este tomou as rédeas do poder e passou a controlar o orçamento através das chamadas emendas obrigatórias (individuais, por bancada, por comissão e finalmente por pix e as secretas, controladas pelos presidentes da Câmara e do Senado) que, aliás, foram votadas no final do governo Dilma Rousseff, outro presidente muito enfraquecido.
Há quem considere que o quadro não é novo e que, tanto Lula como Dilma Rousseff tiveram que governar com maioria de oposição. A diferença com o quadro presente, entretanto, é grande, enorme. Nos primeiros governos populares, a extrema direita não existia no Congresso ou na sociedade, enquanto expressão articulada, muito embora o conservadorismo grassasse entre os parlamentares. Predominava, entre os eleitos do Centrão, o fisiologismo, ou seja, a defesa dos interesses materiais e político-eleitorais de cada um.
Os governos populares puderam, apesar de muitos problemas, controlar votações importantes através da compra de votos, primeiro pelo mecanismo chamado de “mensalão” e depois pelo dito “petrolão”. Como disse o ministro da Justiça de Lula no seu primeiro mandato, “nada que não tivesse sido feito por todos os governos no Brasil, o chamado “caixa dois”. O problema é que a justiça, sempre leniente com os governos de direita, usou e abusou de suas prerrogativas para acuar os governos de Lula e, sobretudo, de Dilma. Do mesmo modo, a grande mídia aproveitou a chance e malhou os presidentes, o PT e a esquerda sem dar descanso.
O preço pago pelos dois presidentes de esquerda e pelo PT foi enorme. De defensores da ética na política, se transformaram, aos olhos do eleitorado, em corruptos de carteirinha. Contraditoriamente, os corrompidos, deputados e senadores do Centrão, ficaram muito menos visados, embora alguns tenham sido também enquadrados pelos tribunais.
No presente mandato, a situação ficou muito pior devido ao já mencionado empoderamento do Congresso. O controle de significativa e crescente parcela do orçamento ficou nas mãos daqueles que no passado recebiam favores (ou mesadas) do governo em troca de votos. O poder do executivo passou a ser dividido com os presidentes da Câmara, Arthur Lira e do Senado, Rodrigo Pacheco e, atualmente, Hugo Motta e Davi Alcolumbre. Lira e Alcolumbre se mostraram os mais ousados na chantagem do executivo, enquanto Motta afia as garras e, na comparação com os outros, Pacheco parece até um cavalheiro republicano.
Com menos recursos e poderes para comprar os votos no varejo, o governo se rendeu ao Centrão e buscou cooptar os partidos fisiológicos (Republicanos, União Democrática, MDB, outros) entregando Ministérios para seus indicados. Não funcionou. Os partidos do Centrão aceitaram os Ministérios, mas não entregaram os votos que o governo necessitava. A cada votação, a maioria dos deputados e (em menor grau) dos senadores da base do governo votou contra o executivo.
Em longa entrevista recente, o presidente de um desses partidos apontou a razão das infidelidades. Segundo ele, Lula só entregou Ministérios de menor importância (leia-se de menor orçamento) para os aliados e reservou os filés para o PT. A queixa se estendeu à ausência de autonomia para os ministros nomearem quem eles quisessem, tendo que conviver com indicações do PT em segundo e terceiro escalões.
Os gulosos próceres do Centrão queriam Ministérios polpudos e de “porteira fechada”. E não se pode esquecer que mesmo os partidos ditos de esquerda, como o PDT e o PSB, nunca garantiram a totalidade de seus votos aos projetos do governo.
Nestes dois e meio anos, este convívio difícil foi ainda turvado por escândalos: mais uma vez o fantasma da corrupção entre os aliados (não só os do Centrão, já que o último e mais retumbante teve como centro o PDT) veio assombrar um governo petista. Para o eleitor comum, o fato de que as denúncias não incriminam o presidente nem os ministros do PT não interessa muito. A leitura é que o governo é (ou continua) corrupto e ponto final, ainda mais com o histórico da Lava Jato ainda fresco na memória coletiva.
Entre parênteses, a esquerda, e o PT em particular, consideram que a anulação das condenações da Lava Jato (puxadas pelo nefando Sérgio Moro et caterva) pelo STF limpou a sua imagem frente ao eleitorado. Ledo engano. A grande maioria continua acreditando na verdade das condenações e ignorando a narrativa petista que culpa os abusos dos tribunais e da imprensa pelas acusações.
A materialidade de muitas das provas e confissões torna a narrativa petista frágil e pouco credível. O eleitorado prefere acreditar que, “como sempre no Brasil, os corruptos sempre se safam”. E parecem pouco se importar com o fato de que Jair Bolsonaro e os bolsonaristas molharam as mãos sem corar de vergonha em inúmeros escândalos durante o seu governo. Na melhor das hipóteses, a atitude mais generalizada entre os eleitores parece ser a de considerar que os políticos são todos (esquerda e direita) iguais no quesito corrupção, “farinha do mesmo saco”, o que tornaria o tema eleitoralmente neutro em uma eleição.
Tenho lido muitas análises, indicando que Lula não tem alternativa a não ser fazer o que está fazendo, algo do tipo entregar os anéis para não perder os dedos. Esta tática de fazer concessões sem fim ao Congresso de direita, inclusive com os partidos de esquerda votando com a direita em vários projetos (“para o governo não ser derrotado”), é explicada pela estratégia de buscar promover um crescimento econômico vigoroso, com distribuição de renda e pleno emprego, junto com mais e mais programas sociais beneficiando mais e mais eleitores.
Na teoria, essa estratégia permitiria atravessar o deserto árido deste governo e chegar às eleições de 2026 com suficiente popularidade para reeleger Lula e ganhar força no Congresso e governos estaduais para o Lula IV governar em melhores condições.
Não é assim que a banda está tocando. Para começar, temos que avaliar que desenvolvimento está sendo promovido e depois olhar para o impacto político eleitoral dos resultados. Para resumir, não há propriamente um programa de governo, mas sim uma sequência de medidas que perpetuam políticas que já existiam e que tem por fim essencialmente um resultado eleitoral.
Uma das raras propostas de mudança estrutural, a reforma tributária, não passou de uma simplificação do sistema, mesmo assim com uma tal quantidade de privilégios e isenções, que o imposto simplificado manteve a taxação entre as mais altas do mundo. E a tentativa de cobrar mais impostos dos rentistas vem sendo desmontada pelo Congresso.
O executivo parece atolado em suas contradições internas e amarrado pela correlação de forças extremamente desfavorável no Congresso. E não se vê neste governo nem um pálido arremedo da pressão que a sociedade civil e os movimentos sociais foram capazes de fazer na oposição, durante os anos Sarney, Collor, Itamar e FHC. Lula III enfrenta a direitalha do Congresso com suas parcas forças parlamentares e uma constante negociação com o Centrão, sem o contrapeso que o presidente Petrus pode dispor na sociedade colombiana.
Como chegamos a esta situação? É preciso rever o caminho da nossa esquerda ao longo do tempo e como ela foi se transformando de revolucionária em reformista, de reformista em populista e de populista em eleitoreira.
A esquerda sempre colocou como objetivo a tomada do poder através de uma revolução política que levasse uma representação das classes oprimidas para um governo que teria como missão a revolução social. Os modelos históricos das revoluções francesa, russa e chinesa apontavam para a necessidade da violência para chegar ao poder, usando as liberdades democráticas (ditas “burguesas”) apenas como tática. Em todos os casos, as mudanças se fizeram com a criação de regimes ditatoriais e em grandes sacrifícios para as massas populares, sobretudo nos regimes de ditadura “do proletariado”).
A minha geração criou-se no culto aos processos revolucionários de tomada do poder. Com a derrota do reformismo populista do governo de João Goulart e o advento do regime militar por anos, a luta pela liberdade e democracia prevaleceu sobre a luta pela revolução social. Com a derrota da oposição guerrilheira, que tinha uma estreita base social na cidade e no campo, os sobreviventes abandonaram a busca pela tomada do poder pela luta armada e abriu-se espaço para uma luta política de massas pela redemocratização.
Esta luta foi vitoriosa, inclusive com os movimentos pacíficos de operários, estudantes, intelectuais e artistas (com pouca adesão do campesinato) e setores da burguesia que foram rompendo com um regime militar tornado inconveniente. Tudo culminou com o maior movimento de massas da nossa história, as Diretas Já, que levou muitos milhões às ruas em todo o país e selou a partida dos militares do poder. Foi uma vitória da não violência, mas o que estava em jogo era a forma de governo e não o predomínio de uma classe e de um sistema econômico e social, o capitalismo.
Todo este impulso político acabou canalizado para o processo eleitoral da Constituinte, mas o voto conservador mostrou a sua resiliência, ajudado pela legislação eleitoral herdada do regime militar e o Centrão acabou limitando os avanços na nova Constituição. Esta avançou muito nos quesitos das garantias políticas da liberdade e democracia, mas muito menos nos direitos sociais.
Toda a polêmica entorno ao tema da Reforma Agrária acabou, na essência, reafirmando o direito de propriedade. Foi considerado um grande avanço a inclusão do conceito do direito social à terra, mas o mesmo nunca foi devidamente regulamentado.
A esquerda reformada, aglutinada no PT, carregou consigo os sobreviventes da luta armada e da luta clandestina e muitos continuaram buscando radicalizar as transformações sociais através dos movimentos de massas. Esta visão de um partido centrado na mobilização social e na luta de classes prevaleceu na década de 80. No entanto, mesmo neste período, o PT esteve dividido entre o reformismo e o sonho revolucionário. Ocorre que o partido nunca chegou a abrir o debate sobre como chegar ao poder, se pela via eleitoral ou se pela via armada.
Esta indefinição levou o PT a usar o espaço eleitoral, inicialmente, mais como ocasião de propagandear suas ideias e propostas, importando pouco o sucesso eleitoral ou, pelo menos, não tendo neste o objetivo central. No entanto, a intenção de avançar nos espaços eleitorais se manifestou desde o começo. Já em 1982, o PT se recusa a fazer uma aliança eleitoral com o Brizola, no que foi facilitado pelo chamado voto vinculado, que impedia as coligações.
Mas o PT foi buscar um candidato a governador dentro do PDT, o ex-deputado Lisâneas Maciel, tentando se apresentar com um perfil menos radical e mais eleitoralmente “amplo”. Todo o resto da chapa do PT tinha uma cara mais petista, radical e sectária.
Esta ambivalência em relação aos processos eleitorais e seu papel em uma estratégia de chegada ao poder se espelhou na eleição presidencial de 1989. Lula vai para o segundo turno contra Collor (com 0,5% de votos a mais do que Brizola e 1% em relação a Covas), mas o PT não adotou a estratégia reformista que cobrava uma aliança pragmática com as forças simbolizadas pelos candidatos populistas, reformistas e de centro derrotados no primeiro turno (Brizola, Covas e Ulisses). O PT preferiu manter uma proposta de governo “puro sangue”, mais radicalizada, e acabou derrotado por Fernando Collor.
O movimento que derrubou Fernando Collor foi puxado pelo PT, mas todas as forças reformistas se aliaram nas manifestações, tal como havia ocorrido na campanha das Diretas Já. Entretanto, o convite de Itamar Franco para formar um governo reformista-populista incluindo PT, PSB, PSDB e PMDB foi recusado pelo PT, a principal força de esquerda no país. Sem alternativa de apoio para governar, Itamar compôs uma aliança de centro, onde o PSB demarcava o limite à esquerda e o PFL o limite à direita, incluindo o PSDB (então no centro esquerda) e o PMDB (então no centro direita).
O PT mirava a eleição de 1994, que estava próxima, e preferiu ficar na oposição, contando com o agravamento da crise econômica deixada pelo período Collor para ganhar o pleito com uma candidatura mais radical no seu reformismo. O Plano Real e o controle da inflação mudaram o quadro e o PSDB ganhou de lavada no primeiro turno, naquele ano e em 1998.
Ao longo dos anos 1990, o PT começou a guinada em direção ao centro que levou a frente de esquerda (PT, PSB, PDT e PCdoB) à vitória em 2002. Por outro lado, o PSDB, apesar de manter algumas propostas reformistas (começo da reforma agrária, programas sociais), foi caminhando para a direita, adotando no governo um programa econômico neoliberal.
Nestes anos, o PT formulou programas baseando-se em comissões que envolveram organizações da sociedade civil, movimentos sociais e militantes. Os programas foram, de modo geral, bastante aprofundados e tão radicais quanto era exigido pela realidade dos mais variados temas. No entanto, as campanhas presidenciais foram filtrando boa parte dos elementos mais radicais das propostas, frustrando tanto os especialistas que as formularam como a militância que com elas se identificava.
Pouco a pouco, a orientação da direção do partido passou a ser a conversão das propostas na direção de conteúdos mais palatáveis pelo eleitorado. A divisão entre a militância de base que, inserida nos movimentos sociais buscava radicalizar as mobilizações e as estratégias eleitorais predominantes na direção, visando ganhar deputados, senadores, vereadores, prefeitos, governadores e, sobretudo, a presidência da República foi se ampliando, com crescente predomínio desta última.
A transformação do PT em um partido populista clássico, com sucessivas concessões às classes dominantes em seus programas, permitiu que ele chegasse ao governo (mas não ao poder), sobretudo depois que Lula lançou a Carta aos Brasileiros, no segundo turno de 2002, documento que apontava para a manutenção da política econômica de FHC. No entanto, o resultado das eleições para o Congresso indicava que a direita seguia poderosa e Lula teve que governar em minoria.
Esta dicotomia poderia ter sido resolvida se o PT tivesse uma visão populista reformista coerente. Lula e o PT não tiraram as consequências dos resultados eleitorais, onde o voto do partido para a Câmara ficou nos 25%, o da esquerda como um todo em uns 30%. Lula vence por uns 3,5% de margem sobre Serra, um voto marcado mais pela rejeição ao segundo governo FHC do que propriamente lulista e muito menos petista.
O PT, se assumisse uma estratégia reformista, teria feito um governo em aliança com as forças de centro, em particular o PSDB e o PMDB. Para fazer a gestão que fez, cheia de concessões a forças conservadoras e até da direita, como o agronegócio, ele não precisava de um governo puro sangue de esquerda, muito pelo contrário. Mas o PT preferiu uma constante guerrilha com a mídia e o Congresso, insistindo em testar propostas mais radicais, em geral para satisfazer a base do partido. Perdeu em quase todos os casos e, pouco a pouco, foi abandonando estes “gestos” mais à esquerda e governando cada vez mais à direita.
O modus operandi do PT também foi se modificando ao longo deste período, quando sua prática vai se tornando cada vez mais centrada em ganhar eleições e menos em fortalecer movimentos sociais. As campanhas eleitorais já não dirigidas por quadros políticos, mas pelos cada vez mais incontornáveis marqueteiros. A mensagem passa a ser menos importante do que a forma adotada para transmiti-la. Os temas prioritários passam a ser definidos pelas pesquisas de opinião, assim como o comportamento dos candidatos. Com isso, o PT e o resto da esquerda parlamentar vão se dissolvendo na geleia geral do eleitoralismo.
A vida interna do partido também vai ficando cada vez mais parecida com a dos partidos em geral, com manipulação de eleições internas, distribuição de cargos, criação de verdadeiras “capitanias” sob controle de dirigentes inamovíveis. A militância de base envelheceu e se aposentou ou se decepcionou e se afastou.
É claro que continuam presentes nas fileiras do PT militantes de base ativos em seus movimentos, mas enquanto força política interna eles perderam o embate e, hoje os traços que definem o partido são outros: a luta pela reeleição em todos os níveis, o que garante um espaço de privilégios para uns poucos e o abandono cada vez mais escancarado de uma visão de transformação social.
Desde então a história se repete. A relação de forças política limitou o reformismo do governo que acabou mantendo as grandes linhas da economia herdadas do neoliberalismo pessedebista, temperado com programas sociais importantes frente às carências dos mais pobres, mas sem tocar nas questões essenciais, em particular a ênfase no apoio ao agronegócio em franca expansão enquanto a agricultura familiar foi perdendo espaços.
Com o PT no governo, os movimentos sociais (uma base essencial para suas vitórias eleitorais) foram sendo desmobilizados, quer pela convocação de muitos dirigentes para compor a burocracia de Estado, quer pelo mecanismo de cooptação pela participação de seus representantes nos inúmeros conselhos (consultivos) criados pelo governo.
As lutas reivindicatórias foram substituídas por negociações nos gabinetes e os movimentos se desarmaram ao longo dos 14 anos da esquerda no governo. O resultado visível foi a quase indiferença ao impeachment de Dilma e à própria prisão do Lula, reduzida às apaixonadas manifestações dos poucos milhares que assistiram ao desfecho dramático no sindicato de São Bernardo.
O PT e a esquerda em geral não se deram conta da armadilha deixada pelo sistema eleitoral herdado do regime militar, que deu um peso desproporcional ao voto dos “rincões”, politicamente mais atrasados, criando um descompasso entre a votação para presidente e a votação para o Congresso, problema que persiste até hoje.
No entanto, a dependência dos mais pobres dos programas sociais gerou uma mudança no apoio eleitoral do PT e do próprio Lula, com os rincões fidelizados (até recentemente) e o voto urbano, inclusive das bases operárias, se perdendo. E com a entrada do pentecostalismo na política atraindo os setores mais pobres da população para um voto conservador.
Voltando ao tema da proposta do governo Lula III, temos que concluir que não temos um programa de reformas econômicas e sociais sendo executado. As iniciativas do governo estão totalmente centradas na busca de popularidade e votos e toda e qualquer consideração estratégica sobre os rumos do país já foi sacrificada.
Por outro lado, a proposta de desenvolvimento adotada pelos governos populares ficou intocada, no essencial. A esquerda continua buscando o crescimento econômico tal como ele sempre foi, apenas visando, em bom reformismo, uma melhor distribuição de renda. Este desenvolvimentismo tosco ignorou a nova realidade mundial que vem impondo a necessidade de se reorientar a economia para enfrentar os novos desafios da sustentabilidade. A questão ambiental, em particular, continuou sendo vista como um empecilho ao desenvolvimento e deixada de lado a cada impasse.
Para neutralizar inimigos ou atrair aliados, o governo esquece tudo: as crises ambientais que nos afligem e anunciam ameaças catastróficas, a desindustrialização da economia, a fragilização dos direitos socais, e a uberização do trabalho, o esgotamento paulatino e inescapável das fontes fósseis de energia, entre outros.
A aposta do governo está toda colocada em aumentar o PIB, a renda e o emprego, seja como for. E as estatísticas parecem indicar que está ganhando. Este sucesso, entretanto, não está sendo convertido em aumento de apoio ao governo. O PIB aumenta (contra a torcida da oposição, da grande mídia e das redes sociais) moderadamente, mas o aumento deste índice não significa por si só melhores condições de vida para a população e sim mais lucros para os rentistas e capitalistas, sobretudo os do agronegócio.
Os índices favoráveis têm dependido do crescimento das exportações agropecuárias e de minérios, sem efeito para a população. O emprego cresce, sobretudo, na economia informal (comércio e serviços) e a renda, inclusive a que depende dos programas sociais, está sendo corroída pela inflação de alimentos (para a qual o governo não tem proposta) e pelos gastos nos BETs, o que já torna endividados 75% dos brasileiros adultos. Por outro lado, os serviços públicos de educação e saúde estão sucateados, a fila do INSS duplicou desde o advento de Lula III e o problema de segurança se agrava dia a dia e a população acha, erradamente, que a culpa é do governo federal.
A tentativa de tratar a perda de popularidade como um problema de comunicação é um equívoco grave. Por mais brilhantes que tenham sido as mensagens de alguns deputados e deputadas defendendo narrativas insustentáveis, o resultado foi pífio, desde o caso das blusinhas, o do PIX, o das aposentadorias e o do IOF.
Para fechar o caixão só falta lembrar que o governo apostou na liderança ambientalista internacional, a ser capitalizada na COP30. No entanto, está vendo ser desmentida a narrativa da diminuição dos desmatamentos com o anúncio recente do aumento exponencial das queimadas em 2024, com efeitos ainda mais deletérios.
Também está pegando mal, entre os ambientalistas aqui e no resto do mundo, a pressão bruta, do governo, da Petrobras e do próprio Lula sobre o Ibama e sobre a ministra Marina Silva, visando liberar a exploração de Petróleo na Margem Equatorial. O anúncio da adesão do Brasil ao bloco negacionista OPEP+, deixou os admiradores do Lula em toda parte boquiabertos e desapontados.
E, apesar de não ter sido uma proposta governamental, está claro que o governo e o PT negociaram com Davi Alcolumbre a aprovação do PL dito “da devastação”, o que derruba praticamente todo o licenciamento ambiental. Depois de ter deixado Marina exposta na cova das hienas do Senado, vários membros do governo e do PT, inclusive o próprio presidente se solidarizaram com Marina, repudiando os ataques misóginos e racistas, mas sem explicar como foi que a deixaram nesta situação, lutando sozinha contra a barbárie. E a solidariedade se resume à forma do embate dos senadores com a ministra, sem uma palavra sobre os elementos substantivos do litígio.
E, por fim, mas não por último, a COP30 pode ter que ser deslocada para outro país devido às precárias condições de infraestrutura de Belém para receber 50 mil pessoas para o evento. Ou, pior ainda, fazer o evento sem condições e sucumbir em um desastre organizativo sob o olhar da imprensa nacional e internacional.
O governo de coalizão de mentirinha tem a maioria da base se preparando para desembarcar e montar uma chapa de direita ou de extrema direita, com ou sem a família Bolsonaro à frente. Cada movimento do governo está sendo derrubado no Congresso, nas redes sociais e na mídia convencional. Tudo isso sem reação da sociedade onde grassa a desmobilização e o desânimo.
Enquanto isso, os partidos de esquerda estão se voltando para as eleições do ano que vem, sem um programa a apresentar que mobilize a sociedade. O que ocupa o espaço são as disputas pelas candidaturas a governador ou senador. E, se Lula resolver pedir o boné e ir para casa, a esquerda vai se estraçalhar na escolha do candidato substituto.
A “mosca” está se debatendo, inclusive com muito “fogo amigo” atingindo a Janja ou Fernando Haddad, e a cada arranco fica mais enrolado na teia.
No quadro presente, estamos reduzidos a um estéril debate dentro da esquerda sobre a inconveniência (às vezes qualificada de erro tático ou até de traição) de se criticar o Lula ou o governo, “dando força ao bolsonarismo”. E se a esquerda no governo não tem mais proposta nem programa para o país, a que está fora dele também não tem, senão de forma fragmentada.
Os movimentos identitários têm seus programas específicos até bem claros, bem como os ambientalistas. Falta, contudo, uma visão de conjunto das exigências do momento histórico, da humanidade e do nosso. E sem uma visão clara do futuro que nos ameaça e das propostas urgentes a serem implementadas para minorar as catástrofes em perspectiva, o eleitorado vai votar em quem for mais hábil em prometer o céu uma vez no executivo federal e em quem for mais esperto em prometer uma obra municipal qualquer, com recursos das emendas parlamentares.
E, para terminar, o que o Lula poderia ter feito em seu governo? Ignorar o Congresso e mobilizar as massas para pressioná-lo? Não creio que, com tal postura, o Lula durasse muito tempo sem ser impichado, mas a alternativa posta em prática neste governo também leva para o desastre e perda das eleições. No entanto, faria muita diferença cair defendendo políticas importantes e claras para o povo ou cair enrolado como mosca na teia de aranha, desacreditado e só.
Neste quadro calamitoso não existem saídas, sobretudo se centradas no eixo exclusivo de uma vitória eleitoral. Sem um partido político capaz de polarizar o processo de formulação de uma proposta de desenvolvimento sustentável, com participação da sociedade civil, a única possiblidade é a mobilização autônoma desta sociedade civil.
Um dos fatos políticos mais importantes da atualidade é a formação milhares de grupos de interesse, cobrindo todos os aspectos da vida econômica, social, cultural e política nestas últimas décadas, espalhados por todo os territórios do país. Propostas aprofundadas e bem elaboradas abundam, embora ainda segmentadas. Está na hora de se buscar a articulação de todos estes grupos fragmentados na construção de um projeto de país, começando pela adoção de um programa de desenvolvimento que abandone o modelo dominante e responda aos desafios das crises que nos assolam e se avolumam a cada ano que passa. Um programa deste tipo implica na busca da ruptura com o sistema capitalista, apontando para um regime socialista e democrático. Todo este processo, mesmo se ele conseguir se organizar, dificilmente dará conta de ganhar as eleições de 2026, mas precisamos romper o impasse em que nos encontramos hoje, presos na teia de lutar para manter um governo dito de esquerda, mas que perpetua o modelo social e econômico dominante, com todo o seu coro de impactos desastrosos.
É preciso aprender que não basta ir para o governo, é preciso ter o apoio político necessário para fazer o que é preciso. É uma ilusão achar que se pode ganhar eleições com estratégias eleitoreiras e governar com uma agenda “oculta” radicalizada.
Como dizia Pepe Mujica, “más importante que vencer es convencer”.