08 Mai 2025
"Sair da autorreferencialidade implica uma teoria teológica da Igreja e de sua relação com o Mistério de Deus, que não seja monopolizada e quase obcecada pela questão da jurisdição: essa é uma ideologia oitocentista que até mesmo Francisco lutou muito para superar e com a qual seu sucessor terá que se acertar de maneira determinada, precisamente por causa de seu ofício", escreve Andrea Grillo, teólogo italiano, em artigo publicado por Come Se Non, 07-05-2025. A tradução é de Luisa Rabolini.
Se é verdade que o estilo com o qual Francisco escolheu exercer seu ministério foi em grande parte tomado emprestado do Concílio Vaticano II, então não é difícil pensar que uma das características fundamentais daquele concílio foi o fato de ter sido, antes de tudo, um “evento linguístico”. Essa definição, que devemos em grande parte aos teólogos norte-americanos (estadunidenses e canadenses, como O'Malley e Routhier), também pode ser usada, na devida proporção, para o pontificado de Francisco: da Evangelii Gaudium até a Desiderio Desideravi, cobrindo quase uma década, lemos uma série de documentos nos quais não raro apareceram, pelo menos nas passagens mais ousadas, uma audácia expressiva e uma imaginação teológica de novo tipo.
Devemos nos perguntar de onde vem esse “uso das palavras” que muda a experiência e que impacto teve e poderia ter no futuro na relação com as “coisas”. Podemos nos perguntar como se enquadra no ensinamento de Francisco a relação entre as palavras e as coisas.
O evento que vivenciamos com o papa “vindo do fim do mundo” se materializou imediatamente na linguagem da saudação, da vestimenta, da bênção, da oração, do tom de voz, dos gestos da mão: uma estreia de poucos minutos que foi uma espécie de declaração de intenções. O uso livre da linguagem verbal e não verbal caracterizou todo o pontificado, do início ao fim, do modo de começar ao modo de concluir e se despedir. O “léxico de Francisco” se nutriu abundantemente de linguagem comum, de “neologismos” tirados da fala popular, de originais exegeses da escritura, de interferências estruturais entre expressões da literatura, do cinema, da arte e palavras do magistério. Isso permitiu, ao menos nos pontos mais altos da expressão magisterial desses doze anos, a elaboração de “expressões doutrinais” caracterizadas por grande novidade, audácia, clareza inesperada: basta pensar em algumas formulações doutrinárias que se encontram na Evangelii Gaudium, na Amoris Laetitia, na Laudato sì, na Veritatis Gaudium, na Desiderio desideravi.
O léxico de Francisco teve dificuldade para se tornar o cânone eclesial. Aqui a semelhança entre o Papa Francisco e o Concílio Vaticano II é forte. Da mesma forma que o Concílio incidiu profundamente no léxico, mas afetou em menor grau o cânone eclesial, o mesmo podemos dizer do magistério de Francisco.
Usar a palavra “sair da autorreferencialidade” tornou-se uma coisa nova e fácil para quase todos.
Mas entrar em procedimentos e práxis não autorreferenciais continuou sendo coisa bastante rara e, certamente, mais difícil. Esse lado “realista” do papado de Francisco se desdobra com certa evidência diante de seu sucessor. Como fazer com que as palavras de Francisco se tornem “coisas” é o grande desafio do ofício papal e do corpo eclesial. Isso provavelmente implica uma “mutação” que o Concílio e Francisco apenas inauguraram. É a mutação do magistério negativo para o magistério positivo. Se não for cuidada, se geram textos equívocos, nos quais se encontram coisas contraditórias. Para dar dois exemplos: entre o Proêmio e a normativa da Veritatis Gaudium, entre a afirmação de princípios e a disciplina de Fiducia supplicans.
O ponto delicado é o seguinte: o Vaticano II e, depois, da maneira mais evidente, o papado de Francisco só atuaram no plano do “magistério positivo”. A escolha foi renunciar ao “magistério negativo”, ou seja, um magistério composto de “proposições condenatórias”. No entanto, se o magistério passa de negativo para positivo, muda o modo de se posicionar em relação à história. Não é mais suficiente “condenar o erro” para estar na verdade. É necessário oferecer palavras e fazer coisas de uma maneira nova, algo que começamos a experimentar desde 1962. Realmente antes, as coisas eram orientadas de forma diferente. No aprendizado de uma nova maneira de se colocar em relação à verdade, muda fundamentalmente a função do magistério. Ele não precisa perseguir todos os temas, mas deve reconhecer uma autoridade plural dentro da Igreja. Essa é uma maneira de receber a “sociedade aberta” que não pode se basear apenas em “slogans”, mas deve assumir a forma de “procedimentos”.
Para me fazer entender, gostaria de dar um exemplo. Se um papa afirma “quem sou eu para julgar”, mas não muda uma proposição doutrinária que julga de forma clara justamente o objeto de que se fala, cria-se uma tensão insuperável entre duas instâncias que caem em contradição. O espaço de mediação entre lei universal e aplicação particular (que chamamos de discernimento) pode ser uma solução frequente, mas não pode excluir, aliás, eventualmente exige, que se opere não apenas uma tradução da disciplina, mas também um repensamento e uma tradução da doutrina. Considerar intocável toda proposição doutrinária é uma forma ideológica de fidelidade à tradição.
Uma solução mais adequada dos “sujeitos magisteriais múltiplos”, que caracteriza a tradição eclesial, é uma tarefa em cuja definição a Igreja vem trabalhando há mais de 60 anos. Francisco introduziu elementos novos e importantes, dos quais não podemos mais prescindir. Mas ainda permaneceu muito fiel a uma dupla convicção: que a verdadeira conversão é dos corações e não das estruturas; e que a diferença entre doutrina e disciplina pode continuar a funcionar assim como a recebemos do passado. O legado que suas palavras cheias de profecia nos deixam é um “trabalho sobre as coisas” que requer uma sábia obra de tradução: as formas institucionais se tornam mediações delicadas e decisivas, porque o novo léxico assume forma a partir de coisas, de procedimentos, de evidências, de reconhecimentos. Um trabalho disciplinar sem uma elaboração doutrinária atualizada não pode ter sucesso. Ter trazido à luz essa tensão foi um grande mérito histórico do pontificado de Francisco. Encaminhar-se para a superar, colocando as palavras nas coisas no plano estrutural e institucional, poderá ser a complicação e o munus de seu sucessor.
Por fim, precisamente no que diz respeito à relação entre as palavras e as coisas, é famosa a “Nota prévia” que foi acrescentada em rodapé (mas com a pretensão de estar no topo) da Constituição Lumen Gentium. Quando examinada do ponto de vista da relação entre “palavras e coisas”, a Nota desempenha a função de reafirmar o cânone do Vaticano I diante do léxico do Vaticano II. O subtexto pode ser traduzido assim: “vocês até podem falar de ‘comunhão’ como verdade da Igreja Católica, e é bom fazê-lo, porque é uma linguagem antiga, bíblica e litúrgica, mas a comunhão eclesial é apenas ‘hierárquica’, ou seja, tem no ‘poder de jurisdição papal’ sua verdade primária”. Curiosa inversão entre “potestates”, em que um não-sacramento prevalece sobre os sacramentos, produzida pelo ordenamento jurídico diante da ameaça de uma nova linguagem, considerada perigosa. A longa sombra da Nota praevia continua a pairar sobre nossas palavras e gestos: até mesmo sobre nossos comentários no Conclave. O léxico de Francisco, sem uma reformulação adequada da Nota praevia, corre o risco de continuar sendo uma palavra que não consegue incidir sobre as coisas. Sair da autorreferencialidade implica uma teoria teológica da Igreja e de sua relação com o Mistério de Deus, que não seja monopolizada e quase obcecada pela questão da jurisdição: essa é uma ideologia oitocentista que até mesmo Francisco lutou muito para superar e com a qual seu sucessor terá que se acertar de maneira determinada, precisamente por causa de seu ofício.