29 Abril 2025
“Às vésperas da eleição de um novo papa, a Igreja fica proibida de retroceder. Não importa quem seja o escolhido. Pode até ser um “moderado”, como falam os especialistas. Porém, o resgate do Evangelho traduzido pelo modus operandi de Bergoglio, deverá se impor à Igreja como uma questão de sobrevivência histórica!”, escreve Manuel Joaquim Rodrigues dos Santos, padre, coordenador do Clero da Arquidiocese de Londrina.
Quando o assunto é a pessoa de Francisco, tiramos os sapatos, porque o terreno que pisamos é sagrado.
Nós, padres e bispos, temos a obrigação moral de encarar este momento (kairós), como oportunidade de conversão. Há algo no ar que não podemos deixar de observar com muita atenção, uma vez que os ditos “sinais dos tempos” são de fundamental importância para a Igreja. A cobertura midiática, as inúmeras manifestações de pesar e dor pela páscoa de Francisco bem além do espectro católico, devem-nos alertar para algo que extrapola as portas da sacristia e molda as discussões sobre o legado de Bergoglio. O povo amava Francisco. E quando me refiro a esse ente coletivo eu quero dizer “todos, todos, todos”, como ele repetiu em Lisboa na Jornada Mundial da Juventude.
Houve uma explosão de dor e saudade pelo mundo afora. Como se alguém, no poliedro da geopolítica mundial, deixasse um vazio insubstituível. De onde veio esse fenômeno? A resposta a esta pergunta, desnuda o papado de Francisco. Enquanto nós vivíamos preocupados, se ele avançava muito ou impedia reformas e nos confrontávamos com atitudes aparentemente contraditórias em seu modo de agir; enquanto nos questionávamos se o papa sul-americano não deveria já ter acabado com o celibato obrigatório e aberto a possibilidade da ordenação de mulheres; enquanto temíamos que as suas reformas andassem demasiadamente devagar ou o acusávamos de “herege”, conforme o nosso ponto de observação; enquanto saturávamos grupos de Whatsapp com mensagens pró ou contra o bispo de Roma, ei-lo emergindo na sua morte bem acima e longe das nossas elocubrações, tantas vezes estéreis! O povo, que “às vezes também sabe aonde quer chegar”, capta na sua intuição, que já foi chamada de “sensus fidei”, a verdadeira herança de Francisco!
O mundo reverencia um par de sapatos! Esta é a grande verdade que irrompe dos corações feridos de uma humanidade desumanizada, que vê nas passadas de Francisco rumo às periferias existenciais, os pés do mensageiro que anuncia a paz. Sapatos gastos pelos caminhos do mundo, em favelas ou praias repletas de refugiados, tornam-se, para os anônimos e esquecidos, o grande símbolo do legado deste papa. O funeral de Francisco reequacionou as linhas que o vinham definindo, principalmente no meio eclesiástico. Afinal, de que reforma da Igreja estamos falando? Qual foi o imperativo dado a Francisco de Assis na igrejinha de São Damião, interpretado por este outro Francisco de Roma?
As vozes que nos instruem vêm das ruas. Alheias ao palavreado específico dos corredores povoados pela hierarquia, é o povo que nos ensina a verdadeira reforma de Francisco. É o povo teólogo, que nas ruas e nas praças, nos barracos e nos ônibus, traduz o que parecia nos ter escapado: Francisco mostrou-nos um Deus que podemos tocar. Um Deus que não nos julga. Um Deus misericordioso. Um Deus que não excluiu ninguém. Um Deus que não habita santuários humanos, mas no coração dos que mais sofrem. Um Deus que se evade dos palácios, para se acomodar nas periferias físicas e existenciais. Um Deus de carne, cujo silêncio é eloquente no compartilhamento da dor dos seus filhos. Um Deus que não se esconde sob doutrinas “complicadas”, mas se revela em gestos singelos. Um Deus humano, para pessoas humanas!
Há uma estonteante concretude do óbvio do Evangelho na figura de Francisco!
Às vésperas da eleição de um novo papa, a Igreja fica proibida de retroceder. Não importa quem seja o escolhido. Pode até ser um “moderado”, como falam os especialistas. Porém, o resgate do Evangelho traduzido pelo modus operandi de Bergoglio, deverá se impor à Igreja como uma questão de sobrevivência histórica! Foi o povo que o disse! Foram os sinais dos tempos de um funeral que configurou o maior recado que os cardeais poderiam receber. Quem de nós não ouviu de outrem, que “este sim! É o rosto agradável da Igreja”?! Até de protestantes! Francisco soube melhor do que ninguém resgatar os valores que importam nas primeiras décadas do século XXI.
Nesta mudança de época com as correspondentes inseguranças, agravadas por conflitos tenebrosos e mudanças climáticas preocupantes, o papa desceu ao “chão da fábrica”, aos lares, aos caminhos empoeirados do mundo e se tornou peregrino da esperança. Francisco pode ter sido o único grande líder destes tempos, na correta acepção do termo. Ao abraçar e beijar portadores de deficiência e ter uma palavra “humana e acessível” para todas as circunstâncias, ele quebrou as barreiras que mostravam um evangelho distante e mofado! A Boa Nova foi proclamada com alegria e coragem em tempos obscuros, em que o ódio, o negacionismo e o avanço da extrema-direita com os seus regimes autocratas e totalitários avançam. Francisco foi o papa certo na hora certa. O papado teve em Bergoglio o seu melhor e mais digno representante. Se se dizia que em João XXIII um cristão virou papa, com Francisco poder-se-á dizer com propriedade que o humano morou na Casa Santa Marta e foi papa!
O mais genuíno legado deste papa “do fim do mundo” foi a sua capacidade de traduzir o Vaticano II, Medellin, Puebla, Aparecida e a Teologia do Povo (de onde é oriundo) em formas de pensamento e ação, que “as gentes” captaram como nunca na história! Para uma Igreja que vem perdendo fiéis e que em uma década será minoria no Brasil, Francisco foi o seu maior presente! Todos esperamos que seja um papado tão paradigmático, que aos futuros papas se imponha como trilho, por onde a Igreja “semper reformanda” deslize junto aos simples, a “quem foram reveladas as coisas, escondidas aos doutos” (Mt 11, 25-27). Os cardeais eleitores não estarão em contato com o mundo externo; mas, o clamor que vem dos “porões da humanidade” deve ser acolhido na Capela Sistina.