16 Abril 2025
"Essa cegueira é o principal inimigo da humanidade hoje. Ela está presente principalmente entre nossos governantes, que são os mais afeitos de todos de presentismo e localismo e, portanto, impõe à cultura jurídica e política uma atualização radical de seus aparatos conceituais, a fim de permitir que se veja a realidade e se pense em possíveis soluções para os problemas", escreve Luigi Ferrajoli, jurista italiano em artigo publicado por Il Manifesto, 13-04-2025. A tradução é de Luisa Rabolini.
Trecho de “Progettare il futuro. Per un costituzionalismo globale” (Planejar o futuro. Por um constitucionalismo global, em tradução livre). O livro, publicado pela Feltrinelli, estará nas livrarias a partir de 15 de abril.
Em “Progettare il futuro. Per un costituzionalismo globale” (Feltrinelli, pp. 336, euro 27), Luigi Ferrajoli explora a necessidade de uma nova ordem jurídica internacional que possa limitar o poder dos Estados e das instituições supranacionais. O autor reflete sobre a crise da soberania do Estado, a erosão das democracias nacionais e a necessidade de lançar as bases para uma verdadeira constituição global que possa vincular o poder político e econômico às regras de justiça e, assim, promover a igualdade, os direitos e a paz.
Os poderes que contam, aqueles cujo exercício selvagem está ameaçando o futuro da humanidade, saíram irreversivelmente das fronteiras dos estados nacionais e, portanto, da esfera de seu direito e governo. Mudou, consequentemente, a natureza das agressões mais graves ao direito e aos direitos, que são todos de natureza global. O resultado é a inadequação do constitucionalismo atual para lidar com essas agressões. Devido às suas limitações espaciais, os governos nacionais e suas constituições são objetivamente impotentes diante das catástrofes planetárias em curso, que, além disso, estão destinadas a se agravar.
Não se trata apenas de má governança, ou de egoísmos nacionais, ou de vontade de dominação política ou econômica, e nem mesmo de simples miopia por parte das forças políticas. É uma questão dramaticamente objetiva, muito mais básica do que a questão subjetiva do presentismo e do localismo.
Mesmo querendo, nenhum ator da política ou da economia mundial, por mais poderoso que seja - nenhum Estado, por mais dotado que esteja com os mais modernos armamentos militares, nenhuma grande corporação multinacional, por mais gerida que seja por filantropos - jamais conseguirá enfrentar sozinho os problemas do aquecimento global, do desarmamento mundial e da desigualdade planetária.
Se a humanidade quiser sobreviver, os poderes globais e as agressões globais impõem um salto de civilização, ou seja, uma expansão do constitucionalismo para além do Estado, à altura dos poderes dos quais emanam as ameaças ao nosso futuro. É claro que essa expansão só é possível com base em um novo contrato social de natureza global entre todos os Estados e povos do planeta que estabeleça, de forma vinculante, as garantias universais de paz, os direitos fundamentais de todos e os bens vitais da natureza. Esse é o último e decisivo passo que deve ser dado na história do constitucionalismo e que, a partir daqueles princípios de paz e justiça, se levados a sério, é logicamente implícito e juridicamente imposto.
Infelizmente, a política está longe de dar esse passo. O aspecto mais insidioso e dramático das catástrofes atuais consiste na cegueira de nossos governos e de nossas opiniões públicas. (...)
Apesar dos cataclismos que se tornam mais graves e devastadores a cada ano, a mudança das estação, as grandes ondas de calor, os incêndios e as tempestades de granizo, as secas e as inundações, o derretimento das geleiras, a elevação dos mares e a secagem de rios e lagos, aqueles que poderiam entrar em acordo e se vincular de forma concordante a enfrentar os desafios globais não estão fazendo nada, exceto aprovar, como na Itália, leis punitivas contra os jovens que tentam abrir seus olhos com seus protestos.
Porém, uma lição deveríamos ter aprendido de uma emergência grave que atingiu o mundo inteiro nos últimos anos e mostrou toda a nossa fragilidade e interdependência comuns: a pandemia de Covid-19, que explodiu repentinamente em fevereiro de 2020. O vírus não conhece fronteiras e, em questão de semanas, invadiu o planeta inteiro, sem distinções de nacionalidade ou riqueza. Causou mais de 600 milhões de contágios e 7 milhões de mortes, paralisou e abalou a economia, alterou a vida cotidiana de todos os habitantes da Terra, deixou claro, com seu terrível balanço diário de doentes e mortos, a falta de instituições globais de garantia à saúde. (...)
Uma tragédia similar deveria ter oferecido duas lições, ambas vitais. Em primeiro lugar, mostrou o valor insubstituível da saúde pública e seu caráter universal e gratuito, que é a única garantia de igualdade no desfrute do direito à saúde como direito fundamental de todos. Somente a esfera pública é capaz de investir recursos na prevenção e na gestão de epidemias e de planejar - no interesse de todos, sem privilégios nem discriminação - serviços de saúde, para além das conveniências econômicas contingentes que condicionam a assistência médica privada. Em segundo lugar, dever-se-ia ter aprendido com a pandemia a lição da natureza global de todas as catástrofes que ameaçam nosso futuro e, portanto, da necessidade de respostas igualmente globais. (...) Em vez disso, não aprendemos absolutamente nada.
Muito pelo contrário, houve uma remoção geral, ou pior, uma negação generalizada da periculosidade do vírus e da necessidade de medidas defensivas - desde a obrigação das máscaras até as restrições à liberdade de circulação - e até mesmo do valor das vacinas. Imediatamente, os populismos de todo o mundo, tanto no governo quanto na oposição - na Itália e na Inglaterra, nos Estados Unidos e no Brasil - primeiro se voltaram contra as medidas prescritas pela ciência médica e, em seguida, deram voz e representação aos negacionistas para angariar votos. Isso revelou o alto nível de irracionalidade - desconfiança em relação à ciência e à razão e desconfiança e hostilidade em relação à esfera pública - que forma o obscuro background da antipolítica na qual todos os populismos, especialmente os de direita, se alicerçam. Na Itália, onde o vírus se
espalhou mais cedo e mais severamente do que em qualquer outro país ocidental, obrigando a respostas severas, mas necessárias, a direita negacionista que chegou ao poder chegou ao ponto de aprovar a criação de uma comissão parlamentar de inquérito sobre a gestão da pandemia pelo governo anterior, com o único propósito de censurar suas medidas, sem as quais o número de mortes teria dobrado. Se essa foi a reação de nossa classe política e de uma parte não desprezível da opinião pública a um fenômeno tão flagrantemente evidente como foi a pandemia, que por dois anos nos trancou em nossas casas e ameaçou a vida de todos, é fácil entender a cegueira e a falta de previsão diante de outras catástrofes globais muito mais graves, muito menos visíveis e urgentes, que pairam sobre nosso futuro.
As razões para essa inconsciência - ecológica, nuclear e humanitária - e para nossa insensibilidade moral são múltiplas. Há o negacionismo mais ou menos consciente de verdades muito inconvenientes, em qualquer caso alimentado pela aversão à esfera pública. Há a nossa indiferença, também gerada pela “ideia de homem” que, como escreveu Joseph Stiglitz, “está na base dos modelos econômicos predominantes, ou seja, um indivíduo calculista, racional e egoísta, que só pensa em si mesmo e não deixa espaço algum para a empatia, o senso cívico e o altruísmo”: um ser horrível, com o qual não gostaríamos de nos assemelhar e com o qual não gostaríamos de nos associar e que, no entanto, é proposto como um modelo de “racionalidade”.
Há também outro fator de impotência e descomprometimento: uma espécie de regressão infantil - antipolítica, antiliberal, antissocial, antiesclarecida -, apoiando a desresponsabilização e a delegação em branco aos poderes, sejam quais forem, das decisões que contam sobre o nosso futuro. Esse é o descomprometimento ilustrado por Kant em seu ensaio de 1784 sobre o Esclarecimento. “O esclarecimento”, escreve ele, “é a saída do homem de sua menoridade’, ou seja, da “incapacidade fazer uso de seu entendimento sem a direção de outro indivíduo”. São a menoridade e passivização que são promovidas hoje pela queda da participação política.
“É tão cômodo ser menor!”, continua Kant. “Não tenho necessidade de pensar, quando posso simplesmente pagar; outros se encarregarão em meu lugar dos negócios desagradáveis.” Aqueles “tutores que de bom grado tomaram a seu cargo a supervisão de seus semelhantes menores” mostrarão a eles - “depois de terem primeiramente embrutecido seu gado doméstico” e os impedido de “dar um passo para fora do carrinho em que os encerraram” - “o perigo que os ameaça se tentarem andar sozinhos”. (...) É nessa falta de maturidade que se baseia a indisponibilidade de olhar para a realidade, de tomar ciência de seus horrores e perigos, de pensar no futuro como um possível não-futuro, de conceber como possível o desaparecimento do gênero humano.
Essa cegueira é o principal inimigo da humanidade hoje. Ela está presente principalmente entre nossos governantes, que são os mais afeitos de todos de presentismo e localismo e, portanto, impõe à cultura jurídica e política uma atualização radical de seus aparatos conceituais, a fim de permitir que se veja a realidade e se pense em possíveis soluções para os problemas. Somente se for demonstrado que uma alternativa ao estado atual do mundo é possível, embora difícil, e que depende do empenho de todos, é que se poderá produzir um despertar da razão e o desenvolvimento de uma nova energia constituinte.