05 Abril 2025
Nossa associação Constituinte Terra propõe uma resposta às crises e aos dramáticos problemas globais que pode parecer utópica, mas que, ao contrário, é a única resposta realista: levar a sério os princípios do atual direito internacional, da paz, da igualdade e os direitos fundamentais estabelecidos na Carta da ONU e em tantas cartas de direitos humanos, e mobilizar a opinião pública mundial em apoio a uma Constituição da Terra que introduza as garantias e as instituições capazes de torná-las efetivas.
O artigo é de Luigi Ferrajoli publicado por l'Unità, de 02-04-2025. A tradução é de Luisa Rabolini.
Luigi Ferrajoli é um jurista italiano e um dos principais teóricos do garantismo, definindo-se a si próprio como um juspositivista crítico. Graduou-se em Direito pela Universidade de Roma “La Sapienza”. É autor de “Direito e razão: teoria do garantismo penal” (São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002). É professor emérito de Filosofia do Direito na Universidade Roma Tre.
A humanidade está vivendo talvez seu momento mais dramático.
Pela primeira vez na história, sua própria sobrevivência está ameaçada por desafios e catástrofes globais: o aquecimento climático, o perigo de um conflito nuclear, o crescimento da desigualdade, a morte de milhões de pessoas todos os anos por falta de alimentos e medicamentos básicos e o drama de centenas de milhares de migrantes, cada um fugindo de uma dessas catástrofes. A nenhum desses desafios estão sendo dadas respostas adequadas. Pelo contrário, estamos diante de uma crise da razão, uma crise do direito, uma crise da democracia e uma crise da política.
Em primeiro lugar, uma crise da razão. Nos Estados Unidos, temos um presidente com ficha criminal e condenações por crimes graves, que está destruindo o Estado de Direito e a democracia em seu país; que está cortando os já escassos fundos do modestíssimo estado de bem-estar dos EUA, ataca universidades e chama de “ilegais” os jornalistas e jornais que o criticam; que abandonou a Ucrânia, planejando sua rendição e pretendendo a restituição do financiamento para a resistência à invasão russa que os próprios EUA haviam fortemente incentivado, e, ainda mais abjeto, planeja uma limpeza étnica gigantesca: a expulsão de dois milhões de palestinos da Faixa de Gaza após a carnificina realizada por Netanyahu.
Bem, uma resposta sensata e racional da Europa a esse rompimento da Aliança Atlântica e à humilhação infligida por Trump a toda a União Europeia deveria ter sido uma iniciativa de paz autônoma em relação à Rússia, sob a insígnia do desarmamento mútuo gradual e garantias de segurança recíprocas. Teria sido alcançada uma paz que certamente seria mais vantajosa para a Ucrânia do que o projeto de partição que Trump e Putin estão negociando. Em vez disso, há uma corrida insensata por novos armamentos: a alocação de nada menos que 800 bilhões decidida por Ursula von der Leyen para o rearmamento, enquanto Macron planeja o envio de forças europeias para a Ucrânia e a Alemanha altera sua constituição para investir centenas de bilhões em armamentos. Estamos brincando com o fogo. Os gastos militares atuais dos países da UE já são três vezes maiores do que os da Rússia e bastaria unificá-los, enquanto nenhum aumento poderia elevá-los ao nível das 6.000 ogivas nucleares de Putin. Essa corrida para o “rearmamento” é, portanto, uma loucura: o tabu da guerra nuclear caiu e fala-se de forma leviana de um confronto entre a União Europeia e a Rússia que terminaria na destruição mútua. Em segundo lugar, estamos enfrentando uma crise do direito: do direito internacional e do direito constitucional. Os novos autocratas do mundo, Trump e Putin, Erdogan e Netanyahu, ignoram o direito e os direitos e só conhecem a lei do mais forte. Aliás, desprezam o direito, as constituições e a separação de poderes como limites ilegítimos aos seus poderes que querem absolutos. O aspecto mais impressionante do fenômeno Trump consiste na ostentação desse desprezo pelo direito e a desumanidade aberta de suas medidas executivas, todas assinadas na frente das câmeras.
Em um momento em que o crescimento das desigualdades globais e a crise ecológica, a redução da biodiversidade, o aquecimento climático, a destruição das falhas dos aquíferos e as poluições do ar, da água e do solo exigiriam, para serem enfrentados, um aumento da cooperação internacional, da complexidade institucional e do papel do direito como sistema de regras impostas aos poderes selvagens da política e da economia, o fenômeno oposto está sendo paradoxalmente produzido: a simplificação e a personalização dos sistemas políticos que estão sendo reduzidos à soberania de poucos senhores do mundo.
Em terceiro lugar, estamos diante de um colapso de nossas democracias, que nos últimos 30 anos foram esvaziadas pela globalização, tanto nas formas quanto nos conteúdos. Devido à assimetria entre o caráter global dos poderes econômicos e o caráter local dos poderes políticos, inverteu-se a relação entre política e economia. Não são mais os governos que garantem a concorrência entre as empresas, mas são as grandes empresas que colocam os governos em uma concorrência para o rebaixe, transferindo seus investimentos para onde podem explorar melhor a mão de obra, devastar o meio ambiente, corromper governos e não pagar os impostos. Assim, os mercados se transformaram nos atuais governantes absolutos, invisíveis e impessoais, de onde vêm as maiores agressões à convivência civil: as guerras, também promovidas pela pressão das grandes empresas produtoras de armas; o aquecimento climático, provocado pelo desenvolvimento industrial ecologicamente insustentável; o crescimento das desigualdades e das pobrezas, determinado pela imposição da redução dos impostos sobre os ricos e dos gastos sociais em benefício dos pobres; o drama dos migrantes e a crescente exploração do trabalho, por meio da escravização de trabalhadores nos países pobres e, nos nossos países, de trabalhadores migrantes mantidos em condições de irregularidade e precariedade.
Mas ainda não tínhamos chegado ao fundo do poço.
Hoje estamos testemunhando uma quarta crise, aquela da política, que se manifesta em uma nova regressão do capitalismo. A subordinação da política aos mercados gerada pela globalização ainda mantinha a distinção entre as esferas pública e privada. Essa distinção está desaparecendo gradualmente. Hoje, os grandes multimilionários não toleram a mera existência de uma esfera pública, ainda que subordinada a seus interesses, e querem se livrar dela. Eles são os novos donos do mundo e não se preocupam em esconder isso. Para a política e a esfera pública, esses novos senhores deixam pouco mais do que a função de organizar eleições e das campanhas eleitorais para legitimar as novas estruturas de poder como democráticas e a tarefa de reprimir o dissenso. É uma involução pré-moderna, que permite falar de um neofeudalismo capitalista, caracterizado pela concentração, nas mãos das mesmas pessoas, de poderes econômicos e políticos, de propriedade e soberania, de esferas públicas e privada, não muito diferente do que acontecia nas sociedades feudais.
O fenômeno Musk, proprietário de 7.000 satélites destinados a se tornarem 12.000 que orbitam nosso planeta e gerenciam globalmente as importantíssimas funções de informação e comunicação, é emblemático. Ele nos confrontou com um fato terrível e ameaçador: a propriedade privada de bens fundamentais da esfera pública e, portanto, um poder imenso, sem regras ou controles, que prefigura uma mudança de regime que consiste no domínio direto, sem nem mesmo a mediação da política, por alguns bilionários. Foi ignorado e violado o Tratado sobre Atividades no Espaço Exterior, concluído em Washington em 27 de janeiro de 1967 e aprovado por quase todos os países membros da ONU, começando pelos Estados Unidos e pela Itália, que o ratificaram em 10 de outubro de 1967 e 18 de janeiro de 1981, respectivamente. O primeiro artigo desse tratado estabelece: “A exploração e a utilização do espaço exterior, inclusive a Lua e outros corpos celestes, serão realizadas para o benefício e no interesse de todos os países, independentemente do grau de seu desenvolvimento econômico ou científico, e serão prerrogativa de toda a humanidade”. Essa é uma norma muito clara, flagrantemente violada pelo quase monopólio do espaço adquirido de fato por Elon Musk. Grande parte dos satélites em órbita ao redor do nosso planeta são, de fato, satélites Starlink, de sua propriedade.
Em resumo, ocorreu uma apropriação privada do espaço público atmosférico externo, tornando Musk não apenas a pessoa mais rica (US$ 473 bilhões), mas também a pessoa mais poderosa do mundo. Trata-se de uma mutação do próprio capitalismo neoliberal, que até hoje devastou a esfera pública e subjugou a política à economia, porém mantendo a separação formal entre as duas esferas. O fenômeno Musk sinaliza uma involução adicional: uma regressão ao estado patrimonial da era feudal, quando a política não havia se separado da economia como esfera pública a ela supraordenada. Hoje estamos diante do direto governo privado e, ao mesmo tempo, global de setores fundamentais da vida civil e pública. A esfera pública, a separação de poderes e os direitos fundamentais são conceitos estranhos e incompatíveis a ele.
Está claro que esses desafios globais, para que a democracia e os direitos não percam seu sentido, exigem respostas globais. Estamos acostumados a dizer que temos a mais bela constituição do mundo. Mas essa constituição assim como todas as outras constituições nacionais são válidas dentro de nossos estados, mas são completamente impotentes diante dos problemas globais.
Também temos uma embrionária constituição mundial, que consiste na carta da ONU e nas muitas cartas internacionais de direitos humanos. Mas essas cartas fracassaram, pois prometem paz e direitos humanos sem introduzir as relativas garantias, ou seja, as proibições e obrigações correspondentes aos princípios proclamados. Assim, elas se reduzem a declarações de princípio, fórmulas retóricas, infelizmente desacreditadas por suas violações sistemáticas.
Por tudo isso, nossa associação Constituinte Terra propõe uma resposta às crises e aos dramáticos problemas globais que pode parecer utópica, mas que, ao contrário, é a única resposta realista: levar a sério os princípios do atual direito internacional, da paz, da igualdade e os direitos fundamentais estabelecidos na Carta da ONU e em tantas cartas de direitos humanos, e mobilizar a opinião pública mundial em apoio a uma Constituição da Terra que introduza as garantias e as instituições capazes de torná-las efetivas. A primeira garantia é a da paz e consiste na proibição e na punição, como crimes gravíssimos, da produção e do comércio de armas - não apenas das armas nucleares, mas de todas as armas de fogo - e, portanto, na ilegalização das atuais empresas produtoras de armas, que são moralmente corresponsáveis por todas as guerras e todos os assassinatos.
Sem armas, as guerras seriam impossíveis e o número de assassinatos - hoje quase meio milhão - cairia. Como garantia para o meio ambiente, deveria ser estabelecida uma propriedade planetária, capaz de retirar do mercado e da dissipação os bens naturais vitais, como a água potável, as grandes florestas e as grandes geleiras. Por fim, devem ser criados, para garantir os direitos à saúde, à educação e à subsistência, serviços globais de saúde, educação e bem-estar, financiados por um imposto global progressivo sobre as atuais riquezas multibilionárias. Não se trata de uma utopia. A criação, em um mundo cada vez mais integrado e interdependente, de uma Federação mundial baseada em tal Constituição da Terra é a única alternativa racional e realista às catástrofes globais cujo resultado final poderia ser a extinção das condições de vida em nosso planeta e o desaparecimento do gênero humano.
Nesse meio tempo, a Constituinte Terra decidiu mover uma ação coletiva de natureza universal e planetária contra Musk por enriquecimento indevido. Ações coletivas são ações que podem ser movidas por todas as pessoas que compartilham a lesão dos mesmos direitos. Nesse caso, o grupo de pessoas titulares dos direitos violados é toda a humanidade. Bem, já existe, graças ao tratado de 1967 sobre os espaços extra-atmosféricos, qualificado como “prerrogativa de toda a humanidade”, cuja utilização deve ser feita em benefício de todos os países do mundo, um fragmento do domínio planetário previsto em nosso projeto de constituição da Terra. Daí a possibilidade de uma ação legal com o objetivo não apenas de verificar o enriquecimento indevido obtido por Musk por meio do uso de um bem comum de toda a humanidade, mas também de levantar a questão política da privatização indevida de uma parte extremamente importante da esfera pública.
Quanto à Itália, é principalmente a mobilização maciça da opinião pública que é a melhor defesa contra as crises atuais da razão, do direito e da democracia. É por isso que os cinco referendos revogatórios organizados pela CGIL para os dias 8 e 9 de junho deste ano são extremamente importantes: porque prefiguram uma resposta em massa a esse liberalismo fascista global, capaz de restabelecer os direitos por ele negados. São referendos importantes não apenas por seus conteúdos: contra a liberdade de demissão, contra a precariedade do trabalho, para a proteção da saúde e a segurança nos locais de trabalho e em favor da redução do período de residência legal necessário para obter a cidadania italiana de 10 para 5 anos. Eles também são importantes para mostrar a existência de outra Itália: de uma Itália civil contra a Itália incivil de Meloni; de uma Itália antifascista contra a Itália neofascista expressa pelo atual governo; de uma Itália do trabalho e da solidariedade contra a Itália dos patrões e dos sonegadores; de uma Itália constitucional, empenhada com a defesa dos direitos fundamentais, que são leis dos mais fracos contra a lei do mais forte, que se afirma quando eles são violados ou quando suas garantias são desrespeitadas.
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