08 Abril 2025
Em seu último livro, Colloqui non più possibili (Piemme, 2024), a teóloga e biblista Marinella Perroni entrelaça memória e reflexão para contar seu profundo vínculo com Michela Murgia. Um diálogo interrompido pela morte da escritora, mas que continua a ressoar na busca comum por sentido, fé e justiça.
A entrevista é de Claudio Paravati, publicado por Confronti, abril de 2025. A tradução é de Luisa Rabolini.
Perroni, fundadora do Coordinamento Teologhe Italiane (Coordenação das Teólogas Italianas), propiciou importantes contribuições para a análise da Bíblia e, portanto, sempre promoveu a cultura do estudo do texto bíblico. O diálogo com Murgia representou uma constante troca de ideias, que, a partir da Bíblia, conseguiu aportar a temas contemporâneos da política e de sociedade. Para Murgia, a fé não deve ser relegada a uma “questão privada”, mas deve ser considerada um ato público e, portanto, político. O diálogo das duas autoras, intenso e nunca previsível, foi um laboratório de pensamento no qual o feminismo e o cristianismo se encontravam sem concessões nem simplificações.
Na entrevista, Marinella Perroni acompanha o coração dessa relação, entre sintonia e divergência, e reflete sobre o legado de um confronto que continua a gerar perguntas. No livro Colloqui non più possibili, descreve os momentos de compartilhamento e conversa com Michela Murgia como “imensas alegrias”.
Em sua opinião, qual foi o diferencial que tornou seus diálogos tão únicos?
A primeira palavra em que penso é sintonia.
Havia entre nós uma certa “sintonia em andamento”, que crescia cada vez mais à medida que nossa amizade progredia, também por meio de nossas conversas, que consistiam em uma troca mútua de pensamentos, na qual alternávamos entre tópicos, que geralmente diziam respeito à Bíblia e à Igreja Católica Romana. A nossa capacidade de nos repassar continuamente as questões e de nos envolvermos nos aprofundamentos criou uma sintonia cada vez maior.
Para mim, o aspecto mais interessante de Michela era que, quando falávamos de citações bíblicas, independentemente de ela ter estudado ou não aquele texto, ela conseguia dar a impressão de uma interpretação absolutamente respeitosa. Como ela mesma destaca em Ricordatemi come vi pare (Mondadori, 2024), havia aprendido as regras de exegese do texto bíblico, por isso tinha condições de interpretá-lo e extrair dele significados originais, profundos e, às vezes, inéditos. Cada uma de nós dava uma contribuição e estimulava um aprofundamento sobre um texto específico, em uma troca que poderia ter nascido de uma questão relativa à Igreja, à cultura geral ou à sociedade. A característica comum de nossas conversas, no entanto, era sempre o texto bíblico, porque ele nos fascinava.
Além do texto bíblico, vocês também discutiam fatos sobre a Igreja e a sociedade. Muitas vezes, a gente também partia dos noticiários, que poderiam falar da Igreja no sentido da Igreja na sociedade ou da Igreja na cultura. Falando em Igreja, sempre me refiro à Igreja Católica, porque Michela não estava acostumada a se definir como cristã, mas como católica. Ela tinha uma visão que não era apenas ecumênica, mas ouso dizer que era transecumênica ou transeclesiástica, e ela se definia como feminista e católica. E se definia mais católica do que cristã porque aquela cultura estava fortemente enraizada nela.
Michela Murgia a considerava uma de suas mestras de fé. Pode-se dizer que estava em um caminho de busca de Deus?
A partir de seu encontro comigo, Michela só teve a ajuda para encontrar pousada na Igreja. Eu tive essa função. Em sua interioridade tumultuosa, mesmo antes de nos conhecermos, havia a pressão, política acima de tudo, de seu relacionamento com Deus e da pertença eclesial. Quando a conheci, ela tinha cerca de 36 anos e não se sentia uma “cidadã plena” da Igreja. Em um determinado momento, porém, ela me disse que eu a havia ensinado a perdoar a Igreja e a se sentir parte dela.
A posição recíproca era de que a Igreja é casa e, mesmo que possa haver momentos em que você está encurralado, é importante nunca se sentir “fora”. Posso dizer que, graças a mim, ela recuperou o “direito de cidadania” de sua fé e que, quando declarou que nunca houve um momento em sua vida em que não fosse crente, era verdade.
Michela Murgia falava frequentemente sobre a necessidade de conciliar o feminismo com a fé. Como vocês abordavam essa questão juntas e que perspectivas surgiam de suas discussões?
Conheci Michela num 8 de março em um vilarejo remoto da Barbagia, onde havia um encontro sobre Igrejas e feminismo, ou seja, Igrejas e mulheres, no qual a prefeita destacava como a Igreja Católica sempre havia sido hostil em relação às mulheres. Depois desse discurso, falei sobre Paulo de Tarso, Cristina Simonelli falou sobre os Padres antigos e, em seguida, interveio Michela, que começou seu discurso dizendo que, em seu casamento, nunca teria aceitado a leitura da Carta de Paulo aos Efésios, onde o texto, textualmente, convida as mulheres a serem submissas a seus maridos. Sua interpretação do texto me impressionou muito porque era evidente o quanto ela conhecia a Bíblia.
Michela dizia com frequência que seu primeiro pai na fé tinha sido padre Antonio Pinna, seu professor de exegese, que conheci, e que me disse que nunca esqueceu sua análise do Salmo 103, se me lembro bem do número do Salmo, porque tinha ficado impressionado com a atenção dela ao texto e com sua capacidade de reelaboração.
Livro "Colloqui non più possibili con Michela Murgia", de Marinella Perroni (Editora Piemme, 2024).
É por isso que digo que aprendeu as duas coordenadas fundamentais da interpretação de texto: primeiro, que o texto da Bíblia ou é libertador ou não é, e segundo, que o texto da Bíblia deve ser examinado estratigraficamente, ou seja, entrando nele progressivamente. Esse tipo de análise ela a adotava automaticamente, cruzando os textos e colocando à obra todo o conhecimento que resultava em vários anos na Ação Católica.
Portanto, além da leitura dos textos, o que a distinguia era uma metodologia hermenêutica particular, a mesma que lhe permitiu dizer em Ricordatemi come vi pare, que para ela a Bíblia era a chave para a leitura da realidade, e que a realidade, como a Bíblia, tinha de ser lida de forma estratigráfica para ser compreendida em profundidade. E isso era verdade tanto para o texto bíblico quanto para as notícias do dia a dia.
É claro que, naquela época, o feminismo não era uma questão menor. Talvez a primeira conversa que tivemos juntas tenha sido sobre o direito de ser “biblicamente fundamentadas” e feministas ao mesmo tempo.
No livro, escreve que “a fé deve ser não apenas privada, mas um ato público e político”. O que significa?
Para Michela, a ferramenta fundamental era a inteligência crítica. Já aos seis anos de idade, quando era repreendida por fazer muitas perguntas, dizia: 'Se Deus me deu um cérebro, por que eu não deveria usá-lo?’ A partir daí ela sempre usou a inteligência crítica como ferramenta de análise de qualquer realidade, seja ela o texto bíblico, as crônicas ou um produto literário. Da mesma forma, sua relação pessoal com Deus era estritamente mediada pela inteligência crítica, por isso era mais centrada na dialética, no discurso, no aprofundamento e tinha uma abordagem crítica, não de recuo para a intimidade. Sua fé, de fato, não era construída sobre o intimismo, nem apenas sobre a relação pessoal com Deus, mas sobre estar na realidade, viver a realidade e interpretar a realidade. Fala-se de uma fé entendida como uma interpretação crítica do texto, da história, da atualidade, da realidade, de uma fé que se torna mediação política.
O feminismo, por outro lado, representava uma expressão importante de suas escolhas políticas, mas como isso poderia se conciliar com a Bíblia e a Igreja? Quando percebeu que esses elementos podiam se conciliar, ela começou a dizer que essa descoberta deveria ser disseminada “apostolicamente” e a transformou num catecismo, especialmente para aquelas mulheres que teriam gostado de viver sua fé, mas não a consideravam compatível com suas escolhas feministas. Isso deu origem a uma série de intervenções que mais tarde amadureceram e chegaram ao catecismo feminista de God Save the Queer (Einaudi, 2022).
Um dos principais temas do livro é que as conversas interrompidas podem abrir novos espaços de reflexão. Que temas você gostaria de aprofundar agora, mesmo depois de ter escrito o livro?
Essas conversas não são mais possíveis porque a morte não pode ser ignorada. Na verdade, uma coisa que me impressionou foi o fato de esse livro ter atraído a atenção de uma associação que trata da elaboração do luto. Portanto, o fato de pensar nessas conversas como uma forma de elaboração do luto me parece um aspecto muito interessante. A pessoa que morreu nunca mais volta, mas o fato de exercitar esse jogo de palavra e de comunicação que permite não tanto sentir que ela ainda está viva, mas sentir que o que vivemos juntos foi uma semente lançada e que ainda podia germinar. Essa é a lógica por trás das “conversas não mais possíveis”. É por isso que eu não acrescentaria mais nada ao meu diálogo com ela, porque o que foi dito é suficiente para restituir não apenas para mim, mas para todos aqueles que a conheceram, amaram e estimaram, uma imagem autêntica de Michela.
– Viaggio in Sardegna Undici percorsi nell isola che non si vede (Einaudi, 2008)
– Ave Mary E la chiesa inventò la donna (Einaudi, 2011)
– L ho uccisa perché l amavo falso con Loredana Lipperini (Laterza, 2013)
– Futuro interiore (Einaudi, 2016)
– Persone che devi conoscere (Emp, 2018)