08 Julho 2021
"Eva, mãe dos viventes, teria assim a graça de Pandora, em cujo vaso vazio só resta a Esperança; teria a sabedoria dos corpos, dos partos e da tecelagem de Penélope; teria a inteligência, a audácia e a curiosidade de Ulisses. A partir daqui podemos pensar novamente as origens, para projetar um futuro em que mulheres e homens sejam efetivamente guardiões afáveis de si mesmos e do mundo", escreve Cristina Simonelli, teóloga leiga italiana, presidente da Coordenação de Teólogas Italianas, professora da Facoltà dell’Italia Settentrionale e do Seminário Arquiepiscopal de Milão, e autora do livro Eva, la prima donna. Storia e storie (Eva, a primeira mulher. História e contos, em tradução livre, publicado pela ed. il Mulino), que será apresentado pela autora hoje no Festival Rimini Antico/Presente. O artigo é publicado por Domani, 07-07-2021. A tradução é de Luisa Rabolini.
Eva, la prima donna. Storia e storie
Há uma mulher em nossa memória coletiva. Estamos convictos de que sabemos tudo sobre ela, como se estivéssemos de posse de uma carteira de identidade ou um daqueles perfis profissionais que dia sim, dia não, invadem a nossa caixa de correio. Nome: Eva. Estado civil: casada com um tal Adão. Profissão: dona de casa, coletora de maçãs nas horas vagas. Características: causa um monte de problemas, para o marido e para todos.
Um perfil como esse talvez pudesse ser adivinhado até mesmo naqueles quiz de televisão, nos quais as perguntas de natureza bíblica registram na maioria das vezes clamorosos fracassos. Por que voltar a mexer no que parece claro e discutir, até mesmo escrever sobre ela de novo? Porque significa voltar a falar de nós, do nosso ser mulheres e homens também no século XXI, das feridas ainda abertas da nossa memória coletiva e não apenas religiosa.
Vamos começar pelo nome: lindo, curto e incisivo, sem dúvida. No entanto, nasceu de um caso de traduções e passagens entre línguas que merece uma análise. De fato, seu nome na língua hebraica faz referência ao verbo viver, que se perde em muitas línguas. Na verdade, se perdeu primeiro em algumas traduções latinas, não em todas. De fato, era bem reproduzido por uma forma muito antiga e talvez não muito elegante que dizia: se chamará Vida, porque Mãe dos viventes (Vita quia mater viventium em um latim que parece quase um dialeto italiano).
O acaso quis que outros tradutores, e entre estes São Jerônimo, detestassem as repetições, ou que as coisas seguissem o próprio curso, o fato é que um nome de honra, tão próximo do que se diz alhures sobre Deus como Deus dos viventes, torna-se um nome como outro, mais tarde muitas vezes acompanhado de epítetos de vários tipos. Na realidade, algo semelhante aconteceu também para o masculino correspondente, mas no final acabou jogando em uma mesa menos nefasta: adam era no início um nome coletivo, que indicava todos os humanos como tirados da terra, que é indicada como adamah, justamente. Como para dizer, todos seres terrosos além de terrestres. Em certo ponto da narrativa bíblica aquele efetivamente se torna o nome próprio de um homem e assim acontece que o nome é retrodatado: desde o início falar-se-ia dele, e toda forma de humanidade - portanto certamente todas as mulheres - terá que tomar suas próprias medidas confrontando-se com aquele protótipo masculino.
Claro que tudo isso para as mulheres não foi muito bom, especialmente porque a ordem do relato bíblico sofreu uma espécie de interrupção que foi seguida por uma inversão de marcha: isto é, na narrativa em que se passa do caos às formas viventes, cada vez mais animadas e inteligentes até parar como uma coroa sobre a humanidade no “sexto dia”, a preferência segue um crescendo e quem chega por último é o mais importante. Na outra narrativa, no entanto, primeiro há a terra, depois um humano terroso, adam, sozinho e incapaz de se expressar até a chegada de um ser que fica na frente dele e o ensina a falar, uma mulher, de fato, que poderia ser vista, portanto como vértice da criação: ao invés, neste caso, a derivação parece se tornar um sinal de inferioridade!
Vejam bem, não seria justo dizer que a situação de estar em um patamar inferior que as mulheres experimentaram dependa dessas narrativas, porque na realidade é o contrário, ou seja, tudo se baseia em uma forma de dividir as tarefas e ordenar as diferenças em uma escala hierárquica, que se reflete nos relatos tanto quanto nas instituições.
Existe, contudo, um porém nada insignificante: dizer essas coisas em um texto religioso arrasta consigo uma consequência séria, porque o que é descrito corre o risco de ser sacralizado e, portanto, de aparecer como proveniente “tal e qual” de Deus. E quem poderia depois mudar isso? Bem, isso também vale até certo ponto, porque há tantas outras coisas escritas na Bíblia: acolher os estrangeiros, compartilhar com justiça os recursos da terra, não usar violência contra ninguém - mas esses aspectos infelizmente muitas vezes são ignorados, caem em um registro místico que parece ser válido apenas para os santos. Enquanto a inferioridade da mulher, esse sim que se destaca, junto com outros danos colaterais, como a ideia do necessário domínio dos homens sobre a natureza - e certamente todo grau de temperatura que sobe nos lembra do seu absurdo e perniciosidade.
Até aqui, pode-se dizer que temos uma sequência de imagens. Mas eis que começa o verdadeiro filme, ou melhor, o drama, que imediatamente ganha vida, como dissemos acima, com jardins e frutas, com licenças e proibições, com vítimas e culpados. É aqui que se originam os epítetos que acompanham o nome de Eva: no meio entre uma sinuosa serpente e um companheiro facilmente influenciável, ali está a mulher, causa da transgressão e de uma impressionante cadeia de males para todos.
Por um lado, ela seria moralmente frágil, porque deixa a porta aberta à tentação (que muitas vezes foi entendida inclusive em sentido explicitamente sexual, dada a forma do réptil, como na canção de Gianna Nannini sobre os homens desenhados no metrô). Por outro lado, ela seria uma incurável sedutora, já que o orgulhoso Adão não consegue resistir nem a ela nem às maçãs.
O relato é, na verdade, em sua forma básica, muito mais sofisticado do que essa minha apresentação: o episódio efetivamente coloca em cena a entrada na história, a passagem de uma inconsciência infantil - que portanto talvez nem possa ser chamada de inocência - para a vida como a conhecemos, feita de escolhas jamais indolores, de alegrias e tristezas, de consciência dos limites que se aprende dia a dia. Neste caso Eva - portadora de dons e dores, como a Pandora grega - é uma forma humana ainda mais radical do que Ulisses: não fostes feitas para viver como brutas, poderia se dizer transformando ao feminino o Sumo Poeta.
Eva, mãe dos viventes, teria assim a graça de Pandora, em cujo vaso vazio só resta a Esperança; teria a sabedoria dos corpos, dos partos e da tecelagem de Penélope; teria a inteligência, a audácia e a curiosidade de Ulisses. A partir daqui podemos pensar novamente as origens, para projetar um futuro em que mulheres e homens sejam efetivamente guardiões afáveis de si mesmos e do mundo.
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Criamos um monte de estereótipos porque não entendemos Eva. Artigo de Cristina Simonelli - Instituto Humanitas Unisinos - IHU