31 Mai 2021
"O feminino na Bíblia e a questão feminina no pensamento religioso, a noção de pudor e a de feminilidade são temas muito controversos em todos os monoteísmos (e não só), que fizeram correr rios de tinta e ainda hoje são objeto de grande debate", escreve Delphine Horvilleur, rabina do movimento judaico liberal da França estará entre os protagonistas da Torino Espiritualidade, programada de 17 a 20 de junho, em artigo publicado por La Stampa, 28-05-2021.
O feminino na Bíblia e a questão feminina no pensamento religioso, a noção de pudor e a de feminilidade são temas muito controversos em todos os monoteísmos (e não só), que fizeram correr rios de tinta e ainda hoje são objeto de grande debate. Eu escrevi um livro sobre o assunto, publicado na França há alguns anos e traduzido para o italiano com o título Nudità e pudore. L’abito di Eva (Nudez e pudor. A roupa de Eva, em tradução livre, Qiqajon 2021). Na origem deste livro existem certamente muitos elementos do meu percurso pessoal, do meu caminho rumo ao rabinato, profissão que durante muito tempo foi "no women’s land", um ofício em que não havia lugar para as mulheres. E como são tantos os papéis e profissões na história em que não houve espaço para as mulheres, quis ocupar o lugar ou "não lugar" que a questão feminina ocupa no pensamento religioso, estudando as fontes textuais, procurando a sua origem, e tentando entender o que ainda hoje nutre essa forma de resistência.
Sempre que penso nos temas do feminino e do pudor no pensamento religioso, tenho em mente uma imagem, uma caricatura que apareceu recentemente na imprensa francesa - talvez vocês também a tenham visto na Itália -, na qual se veem um padre, um rabino e um imã reclinados em um sofá, os três com os pés apoiados em uma mesinha à sua frente. E quando se olha mais de perto o cartoon, se vê que a mesinha é uma mulher de quatro e que todos os três têm os três pés apoiados em suas costas, enquanto uma vinheta aparece sobre as suas cabeças com os dizeres: "Vejam, finalmente sobre o essencial, estamos praticamente de acordo”. (...)
No meu livro me interessei particularmente pela origem da história, porque é preciso levar tudo de volta ao início, ao primeiro acontecimento, ao primeiro momento em que esse elemento aparece, na história ou num texto. Na Bíblia e não é difícil encontrar: na Bíblia a mulher chega bem no início, no Gênesis, no relato de Adão e Eva no jardim do Éden e aqui vamos para a famosíssima história da costela de Adão. Em francês existe uma expressão que não sei se existe em outras línguas: quando aparece um problema dizemos que "on rencontre un os" (literalmente, você encontra um osso), significa que nos embatemos em uma complexidade. É uma expressão muito interessante porque substancialmente no Gênesis "o osso" somos justamente nós, as mulheres, somos colocadas na posição de osso da história. É assim que tudo começa se nos referirmos a algumas traduções bíblicas, não todas porém, porque o hebraico tem a particularidade de ser uma língua polissêmica: significa que os termos podem ser traduzidos de uma forma ou de outra, que algumas palavras são traduzidas de uma forma e outras de forma praticamente oposta, e que a tradução às vezes pode ser o oposto do significado que lhe fora inicialmente atribuído. Há uma ambiguidade de significados possíveis que torna a tradução quase impossível e que transforma qualquer tradução desde o início numa escolha ideológica e política, porque aquele mesmo versículo poderia ter sido traduzido de outra forma.
Em Nudez e pudor me detive em particular na palavra que tanto gerou polêmica, que constitui a espinha dorsal do texto, ou seja, a palavra que foi traduzida como "costela". Eva foi criada a partir da "tzela" de Adão, o primeiro homem do Gênesis, e em hebraico pode significar muitas coisas. Em alguns casos significa exatamente costela, mas, se vocês prestarem atenção às ocorrências da palavra "tzela" em outras passagens da Bíblia, verão que essa palavra na maioria dos casos tem um significado diferente, não quer dizer costela, mas "ao lado de". (...) Eu me pergunto o que teria acontecido se os tradutores do mundo tivessem escolhido esta tradução em vez daquela que conhecemos, se eles tivessem contado a criação do feminino como "ao lado" e não "de uma costela de", se a primeira mulher da história, Eva, tivesse se posicionado desde o momento de seu aparecimento, ao lado de Adão e não como uma costela, como um elemento secundário. (...) Gostaria de fazer um exercício de imaginação com vocês. Imaginem se desde o início se tivesse optado por esta tradução, em vez da que herdamos: estou bastante convencida de que a civilização em que vivemos poderia ter sido muito diferente.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Se Eva não tivesse nascido de uma costela - Instituto Humanitas Unisinos - IHU