"Podemos dizer que tivemos, a partir da década de 1980, uma luta teológico-política em torno do conceito de liberdade e de libertação entre a teologia da libertação latino-americana e a teologia neoliberal (isto é, a teologia subjacente à ideologia neoliberal)", escreve Jung Mo Sung, teólogo e cientista da religião.
Eis o artigo.
No seu livro “O caminho da servidão”, de 1944, que fez Hayek se tornar a mais conhecida do neoliberalismo, fez uma afirmação que ainda ressoa na consciência e no inconsciente coletivo do mundo neoliberal: “Onde quer que as barreiras ao livre exercício da engenhosidade humana fossem removidas, o homem se tornava rapidamente capaz de satisfazer uma gama cada vez maior de desejos”. E, como complementou Bertrand Russel, “a liberdade em geral pode ser definida como a ausência de obstáculos para a realização de desejos”.
E quais seriam essas barreiras que impedem ou atrasam a realização dos desejos e a liberdade? Em primeiro lugar, para os neoliberais, o Estado com suas intervenções no mercado com regulações e políticas sociais em nome de realização dos chamados direitos sociais (por ex., programas de bem-estar social, educação e saúde para todos). Foi em nome da liberdade e do progresso que possibilita a realização de todos desejos que na década de 1980 se fez a “revolução neoliberal”: a libertação do mercado em direção à utopia de “Mercado Livre” (livre das intervenções e regulações do Estado).
Nesse sentido, podemos dizer que tivemos, a partir da década de 1980, uma luta teológico-política em torno do conceito de liberdade e de libertação entre a teologia da libertação latino-americana e a teologia neoliberal (isto é, a teologia subjacente à ideologia neoliberal). Precisamos reconhecer que a TLLA não elaborou suficientemente a noção de liberdade e o conceito e estratégias de libertação na sua origem, especialmente frente à nova situação que o neoliberalismo exigia a partir da década de 1980. Parecia para a comunidade da TLLA que as noções de liberdade e libertação eram evidentes para nós e para a sociedade. Só que não eram e não são hoje.
Vencida a batalha em favor da noção de “mercado livre” e a redução do papel do Estado na economia e na sociedade, os defensores da liberdade como a realização dos desejos estão na segunda etapa da luta: a liberdade de realizar os seus desejos também na esfera pessoal. Por exemplo, “eu tenho o direito de dizer o que eu penso e creio na esfera pública e política”.
Esse desejo de ter a liberdade de dizer em público o que pensa se contrapõe à pressão social de diz que você não deve dizer coisas que são “politicamente incorretos”. E o que seriam essas afirmações? Por exemplo, piadas ou comentários contra negros, gays, imigrantes, mulheres... em um ambiente “público”. É claro que essa pressão social foi fruto de lutas sociais e políticas das chamadas “minorias” ou dos e das que estavam em situação de subalternidade na sociedade. Podemos dizer que essa pressão era justificada ou rotulada como falta de “educação”. Isto é, além da falta de educação no sentido popular, também a falta de educação formal em que as pessoas aprendem as origens dessas situações e das ideologias que justificam o racismo, a subalternidade das mulheres, dos gays etc.
E quem foi o político que teve a coragem ou “sabedoria” de dar voz a essa visão de liberdade/desejo contra o politicamente correto? Trump, na sua primeira campanha pela candidatura no interior do partido republicano. Ele começou a campanha sem apoio de pessoas importantes do partido e com um índice muito baixo. Mas, logo foi crescendo e crescendo a ponto de hoje controlar esse partido. Pois, se uma mulher branca se sente incomodada com piadas e afirmações machistas de Trump, ela sabe que é o político que teve a coragem de lhe realizar o desejo de ir contra o que é o politicamente correto que lhe impedia de expressar a sua raiva ou medo dos imigrantes ou dos negros. E todos ou quase todos nós carregamos dentro de nós raivas e medos, incluindo os “intelectuais” que gostam de dar lições aos não “educados”.
Os neoliberais “educados” podem se sentir incomodados com as políticas de Trump e de outros governantes do mundo, mas assumem o caminho da realização do seu desejo pessoal como o caminho da liberdade. Por isso, calculam o custo e benefício. A política mais “dura” de Trump e outros podem entrar em conflito com a política econômica neoliberal, mas não com a noção de liberdade dominante hoje: a liberdade como a realização do “meu/nosso” desejo e o caminho da libertação derrotar os que estão no caminho.
Um desafio para os que se sentem na TLLA é enfrentar essa noção de liberdade/libertação.