12 Outubro 2023
"O que estamos vivendo, no fundo, é uma luta entre dois horizontes míticos: um que defende uma civilização baseada na igualdade fundamental de todos os seres humanos (RD) e o que nega esse universalismo em nome de um outro valor fundamental: 'a vontade de poder' (Nietzsche), a de usar qualquer força/poder para impor a sua vontade sobre os outros, fracos, os seres humanos de segunda categoria", escreve Jung Mo Sung, teólogo, cientista e professor titular da Universidade Metodista de São Paulo no PPG em Ciências da Religião, em artigo enviado pelo autor ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU.
Na última década, com a eleição do Papa Francisco e a sua posição clara e firme contra a lógica capitalista neoliberal que gerou a maior desigualdade social na história da humanidade e aumentou a crise ambiental – o que ele resumiu com a expressão “a economia que mata”–, a Teologia da Libertação, em suas várias versões, recuperou a sua relevância social. A versão da Teologia da Libertação Latino-Americana (TLLA) é a que mais elaborou, desde a década de 1970, reflexões teológicas críticas sobre o capitalismo (o seu sacrificialismo, a idolatria do mercado e do capital, o fetichismo, a necrofilia etc.), de como o seu projeto de acumulação ilimitada de riqueza nas mãos de poucos destrói as condições de possibilidade da vida da humanidade e de outros seres que compõe o que chamamos de meio ambiente.
Ao lado desses temas, estamos enfrentando nos últimos anos o surgimento e fortalecimento do autoritarismo, neofascismo e uma cultura de ódio ao “outro”, aos “diferentes”, e a negação da importância da noção de “verdade” e da ciência. No fundo, encontramos uma luta contra a noção de democracia política e social e a de "direitos humanos".
Sem entrar em muita discussão sobre as diferentes origens desses fenômenos, podemos detectar que as lideranças políticas como Trump, Bolsonaro, Marine Le Pen e Giorgia Meloni têm as votações que têm porque articulam uma aliança político-social entre os neoliberais e os autoritários, neofascistas e grupos religiosos moralmente conservadores. É a aliança contra os “comunistas” (todos que defendem os programas sociais em favor dos pobres) e LGBTQ+.
Essa aliança, que está ocorrendo em muitas partes do mundo, é mais do que um simples acaso ou resultado de um cálculo político planejado e elaborado por um “comitê central” da direita mundial. É claro que há planejadores da extrema-direita agindo no mundo, mas as ações deles não teriam a força que têm se não houvesse uma “afinidade eletiva” entre o neoliberalismo e o autoritarismo/neofascismo/conservadorismo religiosos. E a hipótese com que estou trabalhando é que essa afinidade eletiva é possível porque esses diversos grupos têm em comum um mesmo horizonte mítico. A segunda hipótese com que estou trabalhando é que nessa aliança o neoliberalismo tem o papel de parceiro dominante. O fascismo do século XX era centrado no Estado corporativista; o neofascismo está fundado no Mercado Livre, que é o eixo do neoliberalismo.
Para entendermos melhor a “novidade” do neoliberalismo, que surge como a força ideológica dominante no mundo na década de 1980, precisamos nos lembrar dos valores que nós, os “modernos”, acreditávamos (a) ser “verdadeiros” (por exemplo, a democracia sociopolítica e os direitos humanos fundamentais) e (b) que a nossa tarefa seria a de ampliar e aprofundar os direitos humanos fundamentais, baseados na igualdade de todos seres humanos. Assim, a expectativa era de que com a ampliação e o aprofundamento dessa igualdade teríamos mudanças nas instituições e valores sociais, por exemplo, o direito de casais “não tradicionais” de constituir publicamente uma família; o desaparecimento ou a diminuição do racismo; e a superação da pobreza como comprovação do êxito do progresso humano.
Infelizmente, a história caminhou em uma direção diferente do que esperávamos.
Os principais autores do neoliberalismo, Hayek e Mises, criticaram radicalmente a noção de “direitos humanos” e a da “justiça social” e, explicitamente, as negaram. Esses dois valores éticos fundamentais ao projeto da modernidade dependem da tese da “igualdade fundamental” entre todos os seres humanos, independentemente da sua condição social (raça, gênero, classe ...). O que significa conhecer a distinção entre o que é da “essência” humana e o que é cultural. Na tradição cristã, especialmente nos escritos de Paulo, a afirmação de que não há diferença “essencial” entre judeus e gregos, escravos e livre, homem e mulher (Gal 3, 28) depende da fé de Jesus e em Jesus. Participando nessa comunidade de fé não é possível converter as diferenças concretas que existem entre as pessoas em desigualdades discriminatórias.
Na modernidade, a igualdade fundamental de todos seres humanos foi justificada na noção de “essência” humana e, com isso, a igualdade de todos frente à lei. Isso aparece claramente, por exemplo, nas lutas de direitos civis dos negros nos Estados Unidos. Com o neoliberalismo, a igualdade fundamental se dá agora nas leis do mercado (um dólar, um voto), e o papel do Estado é transformado profundamente: deixa de ser um Estado que tem como missão o “bem-estar social” de todas as pessoas e passa a ter como a sua missão defender a propriedade dos “que têm” contra os pobres e invejosos ineficientes que querem tomar o que não têm direito.
As grandes transformações tecnológicas (5G, automação, IA...) e sociais (rede social, globalização, cultura de consumo...) têm aumento, e muito, a ansiedade, frustração, medo e ressentimento dos que se sentem perdidos em dois sentidos. Não sabem onde estão e para onde vão nesse mundo; e sentem que perderam os seus privilégios, prestígios e posição na escala social. Eles precisam ter bodes-expiatórios para odiar: os comunistas, gays, imigrantes, negros... E não importa se não existem mais comunistas no Ocidente, os comunistas são todos aqueles que defendem a igualdade fundamental de todos seres humanos. Por isso é que se diz, mesmo na Igreja Católica, que esse Papa é comunista.
O que estamos vivendo, no fundo, é uma luta entre dois horizontes míticos: um que defende uma civilização baseada na igualdade fundamental de todos os seres humanos (RD) e o que nega esse universalismo em nome de um outro valor fundamental: “a vontade de poder” (Nietzsche), a de usar qualquer força/poder para impor a sua vontade sobre os outros, fracos, os seres humanos de segunda categoria.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
A luta entre a igualdade de todos os seres humanos e a vontade autoritária do poder: reflexões teológicas. Artigo de Jung Mo Sung - Instituto Humanitas Unisinos - IHU